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Eu morri pela beleza – a arte de Emily Dickinson

Entre suas pérolas (ou pétalas de flor, como talvez preferisse, que ela nada tinha a ver com o mar), encontrei este texto a um tempo sombrio e carinhoso.

A poeta por volta de 1846
A poeta por volta de 1846

Emily Dickinson, poeta norte-americana do século 19, hoje muito conhecida e celebrada, conseguiu publicar apenas dez poemas em vida. Mesmo assim, sob pseudônimo, anonimamente. Viveu em uma pequena cidade do interior e nas raras vezes em que saiu de lá foi por razões de saúde. Higginson, um crítico literário da época, não gostou do que leu e a desaconselhou a publicar seus versos. Assim, praticamente toda a sua obra é póstuma – que pena, Mr. Higginson.

Sim, a arte de Emily, a arte dos inéditos. Há outros casos curiosos de autores que não conseguiram publicar seus textos em vida. Talvez o mais conhecido para nós, de língua portuguesa, seja o poeta Fernando Pessoa, que publicou seu poema Mensagem por ter sido classificado em um concurso literário – ele ficou em segundo lugar, perdendo para Vasco Reis. Conhece?

Perto disso, estão aqueles livros que tiveram o mínimo de repercussão quando publicados e, mais tarde, tornaram-se alvo de contínuas reedições, sob a chancela de inúmeras editoras. Isso aconteceu com o nosso Augusto dos Anjos e seu único volume de poemas, chamado Eu. Ele pagou de seu próprio bolso, aos 28 anos, essa realização modesta e imperceptível, quase invisível, numa época em que os meios de divulgação eram tão precários ou, no mínimo, custavam bem mais caro do que aqueles que nos são franqueados hoje. Augusto dos Anjos morreu aos 30 anos e não pôde presenciar seu reconhecimento como autor, que se deu ao longo de todo o século 20. Hoje ele é citado e repetidamente elogiado por sua singularidade e por sua ousadia. Mas as coisas não foram bem assim para ele nos anos seguintes à publicação de seus versos: quando apresentados ao ilustre poeta Olavo Bilac, este declarou, após ouvir de seu interlocutor que o jovem já havia falecido: “Era esse o poeta? Ah!, então, fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa.” Que pena, Sr. Bilac. Mesmo com sua visão limitada da poesia, não pôde impedir que a obra dele se encontrasse, um dia, ao lado da sua nas mesmas estantes das livrarias.

Se há algum lado bom nisso, talvez seja que os inéditos não tiveram de se render ao gosto do público ou à demanda do mercado livreiro, e puderam construir sua obra de acordo com sua tendência pessoal. Emily Dickinson, Fernando Pessoa e Augusto dos Anjos têm em comum a inovação, o rompimento com formas estéticas características de seu tempo, embora nem sempre seja esse o motivo do ineditismo.

Casa de Emily Dickinson em Amherst

Que pena, Mr. Higginson. Mas o tempo passou. E sua jovem interiorana rejeitada, essa tal Emily, chegou até nós. Entre suas pérolas (ou pétalas de flor, como talvez preferisse, que ela nada tinha a ver com o mar), encontrei este texto a um tempo sombrio e carinhoso – de qualquer forma sempre belo, como é típico dessa artista que pensava, vivia e projetava poesia entre as sombras de suas solidões, de seu anonimato.

Eu morri pela beleza…

Eu morri pela beleza,
e mal havia sido sepultada,
alguém que morrera pela verdade
era deixado no jazigo ao meu lado.

Perguntou-me com carinho por que eu havia fracassado.
“Pela beleza”, respondi.
“E eu, pela verdade, o que é a mesma coisa;
somos como irmãos”, ele disse.

E assim, como parentes que uma noite se encontram,
ficamos conversando entre os jazigos
até que o musgo alcançou os nossos lábios
e cobriu os nossos nomes.

I died for beauty… Tradução do autor.

Leia mais sobre o tema: O recurso da relva

Rapsódia em cinza

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Comentários

25 respostas para “Eu morri pela beleza – a arte de Emily Dickinson”

  1. Avatar de Lidiane Furlan
    Lidiane Furlan

    Sinto-me feliz por este blog. Li essa diversidade de traduções e me dava nó nas veias do cérebro nas muitas interpretações por mim e pelo que foi traduzido pelos citados. Grata!

    Ps: E pelo comentário, querido Perce, em relação à musica, sou uma musicista duma orquestra há 4 anos e me inclino aos elogios em forma de agradecimento. Cada um segue o que corre nas veias. A sua sensibilidade está em outras químicas. Beijos.

    1. Avatar de Perce Polegatto
      Perce Polegatto

      Lidiane, muito obrigado por seu comentário, por suas palavras.
      Sou grande apreciador de música clássica, embora não toque nenhum instrumento e não conheça muito da parte profissional. Por isso mesmo, tenho poucos e breves posts sobre música e sobre músicos.

      https://www.percepolegatto.com.br/2011/12/26/johannes-brahms/

      Minha ideia é escrever textos agradáveis e de fácil compreensão principalmente pensando nos que ainda não os conhecem.

  2. Avatar de Camila

    A verdadeira arte é aquela que causa estranheza.

  3. Avatar de Perce Polegatto

    Amauri
    Isso mesmo, concordo. Mas quando se fala em beleza, nem sempre isso se aplica à beleza física, por exemplo, pode-se encontrar a beleza na poesia, tanto quanto Einstein encontrava beleza na compreensão do universo.
    Abraços.

  4. Avatar de Amauri Faria
    Amauri Faria

    Polegatto,

    Esse negócio de Verdade e Beleza andarem juntas vem dos gregos — tem a ver com simetria, perfeição, reflexo absoluto da realidade.
    Hoje em dia entendemos de outra forma, mas no tempo da ED a coisa ainda tinha muita credibilidade; aliás, a república americana foi erguida em cima dos romanos, que atravessaram a História copiando os gregos.
    Amauri Faria

  5. Avatar de Keila T. Machado
    Keila T. Machado

    Oi Polegatto adorei o texto sobre Emily Dickinson, conheço a poesia e gostaria de falar para Leomária e para todos que a beleza é irmã da verdade no poema é uma metáfora que quer ressaltar que ambas não produziram nada para sociedade e o nome encoberto siginifica esquecimento.
    Acho que Emily quer dizer que vive numa sociedade puritana onde só é importante o que passa pelo crivo da religião, por isso ela não publicava suas poesias, pois sabia que não ia ser entendida e aceita, pois ela questionava os padrões da época e o próprio conceito religioso de imortalidade.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Keila
      Muito bem observado. Também acho que os padrões religiosos interferem na liberdade poética, aliás, na própria liberdade de pensamento. É possível que Emily não tenha publicado por isso ou que tenha sido recusada pelas editoras também por isso. Sim, muito bonito o que você diz sobre a beleza ser irmã da verdade. Albert Einstein escreveu que três preceitos orientavam sua conduta: a verdade, a beleza e a bondade. E para efeitos religiosos, o que menos interessa, como sabemos, é a verdade.

  6. Avatar de Célia de Lima

    Que mundo imenso e fascinante o que explodia nessa poeta! E com que beleza ela conta.
    Gostei muito daqui, Perce, desse e outros textos, obrigada. Estarei acompanhando. Abraços.

  7. Avatar de Carlos Daghlian
    Carlos Daghlian

    Prezado Perce
    Gostei muito do seu blog e fico grato ao amigo José Lira, que o recomendou. Quanto ao seu texto, faço um pequeno reparo: Emily Dickinson teve dez, e não sete, poemas publicados em vida. Como você sugere, Higginson, sem querer, contribuiu para a preservação da poesia de ED; ironicamente, embora um crítico importante em sua época, hoje ele é lembrado por causa dela. O poema que você traduziu, “I died for Beauty”, é um dos mais incluídos em antologias e dos mais traduzidos. Somente em português, de acordo com o site http://www.iblice.unespbr/emilydickinsoninbrazil , há vinte e uma traduções publicadas, a maioria no Brasil e algumas em Portugal, e uma inédita, de Ivo Barroso, todas disponibilizadas no site. As publicadas, que incluem uma de José Lira, até hoje quem mais traduziu Dickinson para o português, foram iniciadas por Manuel Bandeira (1943) e Cecília Meireles (1954). Sugiro que compare estas duas, para ver como Cecília Meireles soube melhor respeitar alguns detalhes do original: personificou as duas abstrações, beleza e verdade, contornando a questão do gênero (não usou o feminino que também não aparece no original) e não repetiu a palavra “túmulo” ou equivalente, pois Dickinson, depois de “tomb”, passou a usar “room”, isto porque, ao que tudo indica, ela aludia ao conto de Ovídio, “Píramo e Tisbe”, incluído nas Metamorfoses, em que os amantes conversavam pela fresta de uma parede entre dois quartos, narrativa de que Shakespeare se valeu e que Dickinson conhecia muito bem. Aliás, essa associação da beleza com a verdade tem despertado o interesse de poetas e filósofos desde a antiguidade, passando por Shakespeare e Keats, entre outros, chegando até o nosso Olavo Bilac, por exemplo. A sua tradução é mais uma e, com certeza, não será a última, pois traduzir este poema ainda é um desafio. Ele nos faz lembrar o caso do soneto de Arvers que foi traduzido mais de cem vezes para o português. Abraço amigo. Carlos Daghlian

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Caro Carlos
      Muito obrigado por sua colaboração, isso só enriquece os textos deste blog. Sobre a quantidade dos poemas publicados por essa admirável poeta, acabo de modificar a informação, segundo sua sugestão. (Em outra fonte, encontrei o número oito, mas de fato não pesquisei a fundo.)

    2. Avatar de Eloah

      Gostei muito do seu comentário e percebo que é expert no assunto tratado.
      Poderia, por favor, fazer algum comentário sobre a tradução desse poema de Emily Dickinson feita por Manuel Bandeira?
      Ficaria imensamente grata.
      Eloah

      1. Avatar de Perce Polegatto

        Eloah
        Não sou expert nisso, apenas um apreciador. As traduções são bastante parecidas e fiéis ao texto original, mas podemos observar alguns detalhes, por exemplo, a expressão carneiro contíguo, ao final da primeira estrofe, na tradução de Manuel Bandeira, o que sugere uma preocupação formal, em busca de vocábulos específicos, o que nem a própria poeta fez ao usar adjoining room, que simplesmente seria o recinto ao lado, o espaço adjacente, mas que também poderia ser traduzido como quarto mesmo, pois isso acrescentaria uma nota irônica ao ambiente, classificando-o como um dormitório ao referir-se a um sepulcro.
        Nesse ponto, Cecília Meireles usa apenas do outro lado, o que também não é uma boa tradução para adjoining room, por ser muito genérica, na minha opinião.

        1. Avatar de Eloah

          Que legal, muito obrigada!
          Não tenho muita experiência em frequentar e participar de blogs
          e outras formas de comunicação possibilitadas hoje pela internet e pensei que meu pedido nem tivesse chegado até você.
          Fiz uma tentativa muito tímida de fazer contato porque achei esta sua página interessante e de muito bom nível, assim como apreciei as respostas de alguns de seus seguidores. Tudo o que puder me passar a respeito das múltiplas traduções de “I Died for Beauty” para o português me será de grande valia.
          Agradeço o comentário e a atenção. Eloah

          1. Avatar de Perce Polegatto

            Eloah
            Seguem duas versões do mesmo poema:

            Tradução de Manuel Bandeira, 1943:

            Morri pela beleza, mas apenas estava
            Acomodada em meu túmulo,
            Alguém que morrera pela verdade
            Era depositado no carneiro contíguo.

            Perguntou-me baixinho o que me matara:
            – A beleza, respondi.
            – A mim, a verdade – é a mesma coisa,
            Somos irmãos.

            E assim, como parentes que uma noite se encontram,
            Conversamos de jazigo a jazigo,
            Até que o musgo alcançou os nossos lábios
            E cobriu os nossos nomes.

            Tradução de Cecília Meireles, 1954:

            Morri pela beleza, e ainda não estava
            Meu corpo à tumba acostumado
            Quando alguém que morreu pela verdade
            Foi posto do outro lado.

            Brandamente indagou: “Por quem morreste?”
            “Pela beleza” disse. “Pois
            Eu, foi pela verdade. Ambas são o mesmo.
            Somos irmãos, os dois.”

            E assim, parentes de noite encontrados,
            Conversamos entre as paredes,
            Até que o musgo nos chegasse aos lábios
            Nossos nomes cerrando em suas redes.

  8. Avatar de Giovanna

    Oi Pere! Lindo seu blog! Gostei da matéria, e o poema me deixou com uma sensação boa sobre o pós morte… Tenho um pedido: publica a versão em inglês também?

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Aí está, Gi…

      I died for beauty, but was scarce
      adjusted in the tomb,
      when one who died for truth was lain
      in an adjoining room.

      He questioned softly why I failed?
      “For beauty,” I replied.
      “And I for truth – the two are one;
      we brethren are,” he said.

      And so, as kinsmen met a night,
      we talked between the rooms.
      until the moss had reached our lips,
      and covered up our names.

  9. Avatar de Saura Izabete

    Oh! Perce
    Como quisera ter compreensão o bastante
    para um comentário inteligente, mas cada um dá
    daquilo que tem.Não conhecia a poetisa em questão!
    “VERDADE IRMÃ DA BELEZA”?, para mim tem
    uma conotação mítica ou seria mística? A verdade é limpida
    e cristalina e a beleza seu reflexo, subjetivamente caminham
    juntas… Falei bobagem?
    Ademais querido Perce,uma produção artistica excelente geralmente foge à compreensão do seu tempo…
    Luzentes abraços desta sua admiradora

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Ora, por que seu comentário não seria inteligente? Porque propõe uma interpretação? Quantidade de informações, que muitos comodamente chamam de cultura, não faz de uma pessoa alguém menos ou mais sensível.

  10. Avatar de Bruno

    e eis que me comovo nesta sexta à noite com um poema de quem ja ouvi muito, mas li quase nada…

    a um tempo sombrio e carinhoso – adorei o blog Perce e também admiro a poetisa africana citada anteriormente; não sei se vc leu, mas ela esta entre os 20 under 40 da new yoker

    abrço

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Bruno, que bom te ouvir. Você sempre foi um leitor especial, crítico, sem nunca abrir mão da sensibilidade. Eu podia adivinhar que um poema assim iria tocá-lo.

  11. Avatar de Danielly

    Sei que isso foge do assunto do seu texto, mas os últimos versos desse poema de Emily me levaram a Machado de Assis. Diz o narrador machadiano, em ‘Cantiga de Esponsais’, que “parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens”.

    Às vezes, os musgos cobrem nossos lábios quando ainda estamos vivos, às vezes parece que já nascemos com os lábios cobertos – sou particularmente assim. Uma profusão de sensações, de pensamentos, de sentimentos, de cores, texturas, sabores, mas o musgo cobre meus lábios e meu nome. O mestre Romão, de Machado, sofria com isso, essa era a causa única de sua tristeza. Eu aprendi a me realizar com as palavras daqueles que têm vocação e língua. Drummond, Rosa, Álvaro de Campos, por exemplo, conhecem bem tudo que há dentro de mim. Na literatura me realizo. Os musgos cobrem meus lábios, mas tudo já foi dito, me realizo ao encontrar aquilo que procuro expressar, e o êxtase é infinitamente maior: encontrar exatamente o que sinto, posto em exatas palavras…encontrar o inefável dito com toda a precisão. Às vezes penso que Drummond sentia demais, e devia doar; às vezes penso que não, pra conseguir escrever tudo aquilo, ele não sentia nada. Fato é: louvadas sejam as palavras daqueles que escreveram, escrevem e escreverão por mim.

    Um abraço,

    Dany.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Dany, isso não foge do texto não, tem tudo a ver, e seu inteligente comentário nos lembra de uma coisa muito interessante, que nosso mestre Machado, citado por você, soube descrever tão bem: essa distância entre o querer e o realizar (do ponto de vista artístico). Isso é a diversidade. Uns falam por nós, e enfim compartilhamos tudo. Pessoalmente, tenho grande admiração pelos músicos, pois sou incapaz de assobiar cinco notas numa boa sequência. Sinto-me grato pelo fato de que alguém consiga fazer música por mim. Mais ou menos isso. Mas acho que eu é que estou fugindo do contexto agora.

  12. Avatar de José Lira

    Caro Polegatto,

    Muito bom o seu texto. Eu só diria que Higginson não tem tanta culpa por ter negligenciado o talento de Emily Dickinson, pois ele estava muito à frente do seu tempo e muito além de sua compreensão. Mas você tem razão: o ineditismo de sua obra a protegeu de interferências externas, do gosto do público e da opinião dos críticos. Ela se fez só, e foi isso que a fez grande.

    José Lira

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Caro José Lira, você tem razão. Não podemos vilanizar um crítico literário porque seguia o conhecimento e a estética de seu tempo. Esse tipo de reação é muito comum em diversas fases da arte. Temos exemplos muito conhecidos no Brasil de importantes escritores e poetas que rejeitaram o Modernismo, por exemplo.

  13. Avatar de LEOMÁRIA MENDES SOBRINHO

    SINCERAMENTE, O ESTILO NÃO ME FAZ GRAÇA, PORÉM É UM POEMA.NÃO ACREDITO QUE O LIMO CUBRA OS NOMES E QUE O ESQUECIMENTO SEJA ETERNO.TÃO POUCO QUE A BELEZA SEJA IRMÃ DA VERDADE,MAIS , NA IMAGINAÇÃO TUDO É POSSÍVEL.EU AINDA NÃO ENTENDI PORQUE A BELEZA E A VERDADE SÃO PARCEIROS……….ÀS VEZES A APARENCIA ENGANA E A VERDADE MUITAS VEZES FICA OCULTA POR CAUSA DA VERGONHA E NÃO QUER SE ESPÔR.

    LÉA

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