Office in a Small City por Edward Hopper

A Lua não era outra

As estrelas não podem ser cadentes, as estrelas não “caem”, pois são sóis.
E no espaço cósmico não há para onde “cair”.Não queria ficar assistindo a imagens do passado no cinetoscópio precário da memória.

O pai, leitor de almanaques, filosofava à sua maneira sobre tudo o que existe – que é só o que temos. Pegava-o sob a Lua: imagine, a mesma que aqueles egípcios viram há tanto tempo… Ele contemplava também, menino. Hoje pensa que ela continua aí, girando pesada, ao largo do nosso planeta. Quantos deuses e deusas foi a Lua antes que nos contassem que não passava de uma bola de granito e basalto, desprovida até de atividade vulcânica, nada de vida, nem um micróbio. Imagine. E era uma deusa.

Esse fragmento, do conto Sem adeus, em Marcas de gentis predadores, resulta inclusive de informações que adquiri casualmente pouco tempo atrás, se bem que não se alteraria muito, caso eu não as conhecesse. Hoje, tais informações podem ser vistas como simples conteúdo didático.

Kepler

Essa lua, que tanto nos serviu à poesia, aos mitos e até aos ciclos menstruais (a palavra tem origem em menstruu, cuja raiz se refere a lua) tem sido mapeada e explorada com cada vez maior precisão. Não é culpa de ninguém, é a vida. Nós, humanos, iríamos mesmo devassar tudo isso um dia – é a nossa antiga, intensa, conhecida e irrefreável curiosidade. Parte dessa magia que envolve a Lua começou a se perder quando Galileu e os obstinados astrônomos das gerações seguintes passaram a esquadrinhá-la com pequenos telescópios manuais. O personagem-narrador de A conspiração dos felizes lembra aos colegas de mesa que “o primeiro texto do gênero [ficção científica] chamava-se Somnium, descrevia a superfície da Lua e fora redigido há mais de três séculos não por um literato mas por Johannes Kepler.” Os encantos da Lua iam sendo, gradualmente, transferidos para o campo da pesquisa científica.

É que a Lua foi formada a partir dos elementos da Terra. Ninguém sabia disso até quatro décadas atrás. O impacto de um asteroide ou de um protoplaneta gigantesco, do tamanho aproximado de Marte e denominado Theia pelos astrônomos, que há cerca de 4,5 bilhões de anos atingiu a Terra lateralmente, provocou uma extraordinária reação, arremessando porções significativas da crosta terrestre para o espaço. A matéria arremessada escapou ao campo gravitacional do planeta e formou nosso único satélite natural, cujo nome todos sabemos há muito tempo. (Aliás, nossa lua se chama Lua, inicial maiúscula, não vamos mais discutir isso. E o nosso sol, como já se espera, se chama Sol.)

Essa teoria, chamada Big Splash, hoje consensualmente aceita pela comunidade científica, foi proposta pela primeira vez em 1975 pelos pesquisadores do Instituto de Ciências Planetárias de Tucson, Arizona, e do Instituto Harvard-Smithsonian de Astrofísica, após examinarem rochas e diversas outras amostras de solo lunar, coletadas pelos astronautas das missões Apollo, entre 1969 e 1972. Pedregulhos e torrões arenosos trazidos dos confins da Lua não são muito diferentes desses que costumamos chutar, por falta do que fazer, no fundo de nosso quintal. Penso agora que talvez seja preciso rever essa expressão confins da Lua, afinal…

De acordo com os processos de datação das rochas, a Lua tem aproximadamente a mesma idade da Terra. Teorias anteriores sugeriam que a Lua era um planetoide errante que teria sido capturado pela força gravitacional da Terra, permanecendo, desde então, preso a sua órbita. Mas os corpos celestes vindos de outras partes do espaço são ricos em irídio, elemento raro em nosso planeta, porém comum em meteoros que por vezes entram em nossa atmosfera e cujos fragmentos caem em alguma parte, de preferência longe de nossa cabeça. Lembrando: esses meteoritos, nós os chamamos estrelas cadentes, uma daquelas alegres heranças linguísticas que mantemos por tradição e porque gostamos de poesia, como não? As estrelas não podem ser cadentes, as estrelas não caem, pois são sóis. E no espaço cósmico não há para onde cair. Claro que todos nós já tínhamos pensado nisso, não é? Então, vamos fazer um pedido: que continuem caindo os meteoritos, mas somente desses pequenos.

Voltando à Lua – ou à Terra, enfim. Nosso planeta possui um núcleo composto por ferro e níquel, enquanto sua superfície é constituída por granito e basalto, que também compõem essencialmente a Lua. Se a Lua fosse também um planeta, teria um núcleo semelhante ao de outros planetas massivos e sofreria um processo de resfriamento semelhante ao da Terra, apresentando inclusive atividade vulcânica, o que não ocorre.

A pegada mais distante deixada pelo homem.

O resultado dessa colisão de proporções titânicas, quando nosso planeta e nosso satélite-mascote estavam ainda passando por desastrosos processos de formação, é o que podemos apreciar hoje, encantados, em uma noite tranquila e inspiradora de primavera. Não vamos nos despedir dela ainda: seu afastamento da Terra é da ordem de 4 cm por ano, o que um dia vai levá-la de nós, libertando-a para sua imprevisível viagem pelo espaço cósmico. Mas ainda é cedo. Por enquanto, é bom lembrar do valor e da inequívoca especialidade de nossos momentos. E da raridade do que somos, cada um de nós, diante disso tudo. Vamos respirar fundo e aproveitar, meus amigos, enquanto as coisas andam mais calmas por aqui.

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Comentários

2 respostas para “A Lua não era outra”

  1. Avatar de Bruno

    quem não cantou a lua, gosto muito das luas de vinicius de moraes e até do satélite desmistificado de bandeira…

    porém, é com a lua de Cyrano que fico!

    um doido que cai da lua para deixar casar sua amada…doação e amor!

  2. Avatar de José Carlos Gueta

    Caro Perce,

    Gostei muito do seu texto, pois sou fascinado por tudo que se refere ao nosso imenso universo, particularmente à Lua, nossa vizinha, que segundo os cientistas está se distanciando gradativamente da Terra, e sem ela a Terra não seria o que ela é hoje, para os homens e para os animais “irracionais”, que a veneram.

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