Office in a Small City por Edward Hopper

Velhas novidades

Todos nós nascemos para o que não sabemos.
E vivemos pelo que acreditamos. Não é assim que dizem? Afinal, a vida é feita de música e guerra.

De toda parte, os caminhos pareciam convergir para conduzi-lo ao que fosse seu centro secreto, o que seria inverter as coisas: seu centro é que buscava realizar-se e se utilizava do que mais lhe acorresse ao redor. Como dizer algo assim a seu amigo Bruno, para quem todos os bares eram apenas território de caça? Fala-se em pré-história, evolução, instinto. Anunciam antropoides com dois e três milhões de anos, entre ramos ancestrais ainda mais longínquos. Calcula-se a idade de certos fósseis entre duzentos e duzentos e trinta milhões de anos, com isso fornecendo uma margem de acerto e erro de… trinta milhões de anos! Ora, talvez nenhum homem seja capaz de visualizar, abstrair, imaginar de fato o que seja sequer um milhão de anos. Nem um milhão de quilômetros. Nem de cidades. Nem de mulheres. Estamos aqui, agora. Tudo outra vez. Tudo apenas começando. Fósseis do futuro, se algo restar.

Mas levanta-se especialmente aquela jovem, essa fêmea, esta mulher, em meio ao real e ao imaginário, em meio ao espaço delimitado por tudo que configurasse o bar e os domínios nebulosos por onde se desenvolvessem todas as imagens possíveis. Ela não sorri. E seu olhar parece triste. Mas nada disso importa aos homens que a observam, nada disso diminui seu valor de mercado e seu potencial erótico. Trajes que lhe permitem exibir as pernas, as costas e os braços. E que mais lhe revelam, por supostamente pretenderem esconder, os seios, a cintura e as nádegas. Que trazem, ao fim do conjunto, seu rosto entre cabelos discretos e mínimos adornos, tanto quanto conduzem a seus pés, redesenhados por calçados tão justos que parecem ter assimilado a sequência de seus movimentos.

“Rapaz!”, Bruno estreitando os olhos como se lhe fustigasse um relâmpago. “De onde saiu isso?”

Isso. Ela. Os muitos olhos masculinos perseguem seus passos por onde vá. Ali está ela, especialmente. Essa que poderia ser outra qualquer, cujo corpo serve de motivo a comentários obscenos e secretas fantasias. Nascida de outra como ela, está viva e respira, mas que novidade, e envelhece sem perceber. Mas, caso seus pais não se houvessem encontrado: existiria? Seria outra pessoa? Ela mesma, de pais diferentes? Outro absurdo, já que se chegou até aqui: talvez um homem?

“Uma noite com ela”, Bruno ainda, “Júlio velho, não há mais nada nesta vida que… que…”

Mal podia continuar. Não sabia terminar o que havia começado. … que valesse a pena, provavelmente.

“Rapaz, quem inventou o salto alto…”, Bruno, mais uma vez, pensando em algo para completar a ideia. Saiu isto: “… está no Céu, sentado à direita de Deus.”.

“Ela não está usando salto. Você está bêbado, velho.”

“Foda-se!”, sorriu Bruno, sinceramente feliz.

Júlio, que compartilhava o mesmo gosto por calçados femininos, lembrando que nem sempre pareciam confortáveis para elas: “No Céu dos homens, você quer dizer.”.

“Seu problema, Júlio velho…”, Bruno desiludido com o efeito que causavam suas blasfêmias improvisadas, “Seu problema, velho, é ficar pensando em tudo, sabe? Pensar desse jeito ou daquele e… Ficar pensando em tudo…”

“Filosofar.”

“Isso.”

Bruno silenciava por um instante, passava a emitir agressivas inalações pela boca, toda vez que detectava alguma nova mulher, enquanto, entre um gole e outro, continuava desmontando o saleiro de plástico, quebrando palitinhos sistematicamente e descascando com a unha os rótulos das garrafas.

Por pouco, alguém nasce homem ou mulher. Depois, cegamente, passa a vida toda de uma forma ou de outra, em busca de seu oposto, não, oposto nunca foi uma boa palavra. O mundo é povoado por uma infinidade de pessoas que se julgam únicas. E não importa quem. Uma vez nascido, pensará um dia que sim, teria mesmo de ter nascido, sem pensar que poderia ser talvez seu irmão mais velho ou sua irmã mais nova ou, o que também é provável, irmão nenhum. Isso porque todo ser pensante pode dizer: “Eu”. Se fosse outro, veria o mundo por outro ângulo, praticamente o mesmo, e tornaria a dizer: “Eu”.

Júlio imaginava, quase sem querer, encontrar-se frente àquela mulher encantadora que já desaparecia no caminho tortuoso, rumo aos sanitários. Os cabelos dela eram tão castanhos, de tons claros lembrando ferrugem, e seu olhar tão vago, que as folhas das árvores cairiam ao redor, por onde ela passasse, pensando que já teria chegado o outono. Tolamente, como sempre tolos são os resultados de suas cenas inventadas, imaginou que ela se chamasse Ana Paula, por isso lhe perguntava: “Todos a chamam Paula, não é?”. “Sim”, ela sorriria discreta e um pouco triste. “Eu a chamarei Ana.” Decididamente. Certo, dava-se esse direito. Era ele quem a construía com seus próprios recursos, não como aqueles que a pretendiam devorar como meros fertilizadores, ansiosos carnívoros no plano intenso de sua excitação. Mas o resto não era diferente: queria devorá-la também, apenas com outros temperos. Apenas com algo mais de herbívoro, já que também se reconhecia um carnívoro como todos. E o desejo de fazer multiplicar seus genes era o mesmo daqueles que pretendiam multiplicar suas ideias, suas filosofias, suas religiões, dos que queriam converter a todos, garantindo a permanência de uma doutrina, de uma lei, assim como se criam cães e gatos, dando-lhes nomes ou apelidos humanos, substituindo sua descendência ou acrescentando-os a ela, como fazem os que multiplicam objetos industrializados, seus livros e suas palestras.

Sob a magia, as graças e a proteção do deus Álcool, sentia-se um pouco mais abstrato, depois que ela passara de volta, pelo mesmo caminho. “Ana, me diga: onde você estava esse tempo todo?” “Andando pela Terra”, essa jovem com um sorriso triste, “mas sem sair do lugar.” Claro, assim como todos nós: sem sair do lugar. Sem sair da Terra. “Sabe, Ana… Eu não estou bem. Por isso estou me confessando. Neste momento, sinto que estou sendo guiado pelo que há de maior em nós. Não importa o nome que se dê a isso, não importa. Só tenho certeza de que não é Deus. No mais, não sei. Todos nós nascemos para o que não sabemos. E vivemos pelo que acreditamos. Não é assim que dizem? Afinal, a vida é feita de música e guerra. E… o que mais? O que eu dizia mesmo? Ajude-me, Ana. Eu não estou bem. Minha vida está passando. Estou fazendo isso por você. Não? Tem razão. Faço tudo por mim. É hora de desistir, tranquilamente. Outros poderão ir além daqui. Não eu.”

Júlio nunca se esquecia de seu próprio aspecto animal, primitivo, instintivo, rastejante: nunca o negava. Porém considerava, e não para consolar-se, que quando se sentia excitado ou mesmo quando se masturbava, a associação de diversos elementos era o que fazia convergir àquele êxtase, contando o que chamavam beleza, sensualidade, detalhes de vestuário, lembrança de aromas, diálogos imaginados e até a entonação da voz, o que atestava a participação de inúmeros fatores sutis, complexos, quase poéticos, nesse caso tornando todo erotismo visível próximo ao invisível – o que pouco tinha de rastejante.

Um homem grisalho, na mesa vizinha, acabava de dizer a alguém que as mulheres não queriam apenas o seu corpo; queriam também a sua alma.

Outra noite se diluía entre seus sentidos, minados pelas muitas doses. Mãos firmes ao redor do copo, certifica-se da realidade. Coração impulsionando-lhe o sangue. Até quando? Os dias existem. Minha vida está passando. O que realmente me parece fantástico…

Diante do espelho, novamente os sanitários, sentiu que as imagens giravam, num golpe de insensatez e desequilíbrio, desintegradas por uma vertigem de que mal se recordaria no dia seguinte, e, por mais esta vez, o mundo acabou para ele.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

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