Aspirar o pó mágico afastou seu medo, aniquilou sua consciência. Peter Pan drogou as crianças.
Versos de uma canção da compositora e intérprete Kate Bush fizeram-me recordar num instante, surpreendentemente, imagens da infância, ilustrações em páginas abertas, arrastando-me ainda hoje para fora de minha casa, de meu escritório, de minha residência na realidade.
Oh England, my lionheart!
Peter Pan steals the kids in Kensington Park.
Kate, como boa inglesa, traz consigo a marca desse personagem clássico, gerado pela imaginação do escocês James Barrie: o menino eterno, com o poder de voar, que ela recorda em sua sensível canção, enquanto expõe outros aspectos típicos de sua terra natal.
No primeiro texto desta série, sobre as escolhas dos personagens para as animações dos Estúdios Disney, esse herói travesso e malicioso é mencionado como exemplo de alguém que não tem família. E não tem mesmo. Perseguindo sua própria sombra, que lhe foge desafiadora, Peter entra pela janela do andar superior da casa dos Darling, onde volta a encontrar Wendy, seu porto seguro, sua âncora em meio a tantas aventuras avulsas. Wendy o ajuda com a sombra inquieta e com carinho a costura aos seus sapatos de pano para que ela não mais lhe escape.1
Os filhos menores dos Darling chegam em seguida, felizes por reverem seu amigo-herói voador. Não demora, Peter os convida a todos a partirem para a Terra do Nunca, inspirando-lhes novas e excitantes aventuras. Mas a sensata Wendy se recusa, explicando-lhe que é responsável pelos irmãos menores, que seus pais saíram de casa e confiam nela, que não pode (nem quer, enfim), decepcioná-los. Consciente, lúcida e centrada, a jovem Wendy Darling sabe que não deve ceder a esses ímpetos tentadores, pois suas decisões são fundamentadas na razão.
Entendendo que não conseguirá persuadi-la, Peter recorre ao seu plano B: a minúscula fada Tinker Bell, que traz consigo o pó mágico de pirlimpimpim. Com esse pozinho, todos passam a ter pensamentos felizes e adquirem o dom de voar. Wendy, até então ajuizada e boa argumentadora, se esquece imediatamente de tudo o que dizia um minuto atrás. Sim, agora todos estão prontos para a viagem. Já estão, de alguma forma, viajando em si mesmos, encantados e entregues, aptos a longos e arriscados voos – afinal, vão enfrentar piratas armados, deixar a proteção de sua casa aconchegante, correr riscos. Aspirar o pó mágico afastou seu medo, aniquilou sua consciência. Peter Pan drogou as crianças.
No começo do século 20, os problemas com os censores ingleses derivavam, em princípio, da acusação de subversão da juventude. Darling, a família querida, estruturada, integrada à sociedade vitoriana, não pode permitir que um menino de origem incerta, cujos amigos, também órfãos, usam roupas remendadas, vivendo à margem dessa sociedade (um marginal, portanto), passe pela porta da frente, divida os mesmos maneirismos e costumes de seu meio, muito menos que conviva com sua filha, tão bem educada. Por isso, Peter os visita clandestinamente, voando à noite, às voltas com sua sombra perdida, passeando sobre os telhados, entrando furtivo pela janela.
Disney não simpatizava com esse pequeno herói inconsequente. Chegou a declarar que Peter Pan era o personagem de que menos gostava. Ele o achava leviano, não se identificava com ele – e com toda razão, pois Walter era moralista e afeito às tradições.
Ah, finalmente a Terra do Nunca… Nunca mesmo. Sem tempo. A eternidade. E nós, preocupados com as boas maneiras… Nessa ilha está aportado um navio de guerra, protegido por canhões, sob o comando do destemido Capitão Gancho. Destemido, nem tanto. Há algo que o põe em pânico: um crocodilo que emerge de tempos em tempos, que uma vez comeu-lhe uma das mãos e agora vem em busca do resto: ele todo. O som do tique-taque anuncia a proximidade desse predador submerso, que volta a dar as caras, causando no poderoso capitão um medo anormal: mesmo cercado por homens armados, mesmo sabendo que o tal crocodilo não poderá alcançá-lo na prática, ele se esconde, se desespera, pois sabe que mesmo um homem de poder não poderá vencer sua própria morte.
Por que não um tubarão? Não ficaria melhor no mar? Ora, os tubarões praticam ataques rápidos, repentinos, o que é incompatível com a passagem do tempo. Mas o réptil rasteja. O crocodilo é lento, silencioso, paciente. Tique-taque, tique-taque… O tempo nos devora aos poucos.
Aí está, novamente, o embate entre dois inimigos irreconciliáveis: Gancho, o homem histórico, o homem como um de nós, que não pode evitar o tempo, e Peter Pan, o menino eterno, o herói atemporal, aquele que nunca envelhece2. (Portanto, nunca passa. Nunca morre.)
E a nossa linda fadinha? Como ela participa dessa trama toda? O que ela é de Peter? Sua irmã? Não, ela não age como uma irmã. Sua amiga então? Bem… Como claramente nos lembramos, ela o traiu, contou ao seu inimigo mortal onde ficava o esconderijo de Peter e dos meninos da floresta, apontando-o com precisão em um mapa e assim permitindo que Gancho endereçasse ao seu principal desafeto algo sob medida, um presente inesperado, a bomba-relógio que por pouco não explode na cara dele. De qualquer forma, isso não foi nada bonito da parte de uma amiga ou fada protetora – o que ela nunca foi, pelo jeito.
A frustrada tentativa de matar Peter Pan nos revela que não é com um atentado tosco, envolvendo tique-taques bem embrulhados, que se põe fim a um ser que venceu o tempo. Relógios não podem com ele. E nos mostra também o resultado de uma atitude obsessiva, reveladora da personalidade forte de Tinker Bell, minada pelos ciúmes de sua potencial concorrente – pois tudo isso tem origem na crescente hostilidade que ela dirige à intrusa Wendy e que a faz preferir ver seu Peter morto a dividi-lo com outra. Afinal, Tinker Bell é sua amante.
Essa pequena fada, tanto quanto as frívolas sereias da ilha, que sorriem, oferecidas, sempre acessíveis, ao sensual e descompromissado Peter Pan, é aquela que está à mão, que faz parte da turma, a garota disponível, ao lado dele há algum tempo. Wendy não: ela é uma novidade nesse meio. Não parece fácil como as sereias sorridentes. Não se mostra leviana, caprichosa ou temperamental como Tinker Bell. Wendy tem outro preço: ela é inteligente e digna. Pode até se casar.
1 Antes de Barrie, a literatura alemã contava com uma interessante referência, o personagem Peter Schlemihl, que vendera sua própria sombra para pagar dívidas, na novela fantástica de Adelbert von Chamisso, de 1814. Sem sombra, sem identidade reconhecível, ele passa a ser evitado pelas pessoas e acaba perdendo a esperança de se reintegrar à sociedade.
2 Para criar a imagem de Peter Pan, os desenhistas da Disney se inspiraram no famoso ator mirim Bobby Driscoll, que dublou o célebre personagem na versão de 1953. Driscoll teve um fim trágico: aos 31 anos, arruinado e esquecido, viveu seus últimos dias como um sem-teto. O menino que dera vida ao herói sem tempo foi mais tarde encontrado morto em uma construção abandonada, em plena Nova York, e enterrado numa cova comunitária para indigentes.
(O tema desenvolvido acima integra a palestra Veja de novo: relações entre textos visuais e narrativos, apresentada recentemente.)
Leia mais sobre o tema: Disney nos deixou órfãos
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