Office in a Small City por Edward Hopper

Lemuel

Vou registrá-los para sempre, em código. Vou transformá-los em pedra. Impedir que morram.
Vou escrever.

A máquina de escrever? Funcionando sim, como sempre, barulhenta e produtiva.

Enquanto os colegas repartem cerveja e conceitos efervescentes, Danilo os observa, observa também a si mesmo em meio àquilo tudo, e rumina. Necessidade de expressão. Todos querem falar de tudo. Por isso meus amigos fofocam, por isso existe a imprensa, os velhos índios e os escribas bíblicos – contando, narrando, registrando… Não importa propriamente o que eles dizem agora. Todos os dias e noites vão passar. Tudo isso vai deixar de ser. Todas essas ideias e discussões vão se perdendo no ar e no álcool, mas… Eu tenho um plano secreto sobre todos nós. Vou registrá-los para sempre, em código. Vou transformá-los em pedra. Impedir que morram. Vou escrever.

“Anda escrevendo alguma coisa?”, Souto sem grande interesse, apenas cordial.

“Mais ou menos. Umas ideias. Não sei no que vai dar.”

“Inspiração, tá faltando?”

“Não sei direito. É que essas coisas da vida não são boas para a literatura. E as coisas boas da literatura a gente não quer pra nossa vida. Parece um dilema sem solução.”

Morghini apresenta-lhes um colega que parece candidato a participar do grupo. Lemuel bem que voltou por algumas noites, tentando integrar-se aos rapazes. Foi bem recebido, encheram seu copo com cerveja, inclinando-o (ao copo), sem espuma, manifestando a devida atenção ao participá-lo do ritual coletivo. Mas não durou muito. Ele mesmo se autoexilou, cansou deles. Era estudioso, quietão, esquisitão, um sujeito para quem as pessoas costumam dizer, ou pensar em dizer, conselheiras: “Você precisa de uma terapia.”.

Danilo até gosta dele, mas não tem nenhuma porta de entrada para uma conversa mais solta, que Lemuel sempre se fecha, circunspecto, sem dar a entender como bem ou mal absorveu determinada ideia. Mesmo assim, vai conhecer sua casa, a convite dele, um fim de tarde.

A mãe, uma senhora de dentição proeminente, muito risonha, olhos grandes e afetuosidade espontânea, típica dos inocentes brutos do meio rural, parece ser uma pessoa verdadeiramente feliz. Sim, por que não? Algumas pessoas são verdadeiramente felizes. Seu universo está sob controle (sob seu controle), ela faz doces que todos admiram, sente-se gratificada com mil atividades domésticas e se apega a uns provérbios bíblicos, cercando-se de tudo que a conforte e a motive, dentro de sua escala peculiar de valores, orientada por itens de contraditória simplicidade que alguns chegam mesmo a confundir com sabedoria. Danilo pode apostar muitas moedas de ouro em que ninguém conseguirá convencê-la de que a guerra Irã-Iraque tenha alguma importância.

“Olha o docinho…”, vem sorrindo até a mesa onde eles conversam sobre quase nada.

Doces caseiros servidos em tigelinhas, colheres grandes assim mesmo, talvez para permitir a lambança sem limites que sugerem tais delícias. O convidado experimenta, ansioso. Sim, uma delícia. Mas, bem, são apenas doces, não têm nada de maravilhoso além do fato de serem os doces que são, têm até… Mmm-hum? Têm até um certo… fundo muito suave de… azedume, será? – mas muito, muito no fundo mesmo, apenas perceptível depois de umas tantas mastigadas, quase naquela horinha última de engolir. Sim, outra colherada, é aquilo mesmo. São gostosos por um bom tempo, até que… Mmm-hum

Lemuel o chama ao seu quarto, pega o violão, disfarça com uns acordes chatos e sem rumo enquanto lhe diz, meio contido, a ponto de soluçar: que não gosta dos doces da mãe, mesmo que tanta gente os aprecie. Por motivos que ele não sabe explicar, muitas vezes atira fora os doces, sem que ela fique sabendo, fingindo tê-los comido. Depois, vai para seu quarto e chora amargamente, abafando os soluços no travesseiro. É um doloroso sacrifício, renunciar àqueles doces e não poder dizer a ela. De qualquer forma, algo mais forte o obriga a isso, não só aquele fundinho incômodo no último paladar. (“Você precisa de uma terapia”, Danilo recorda.) Lemuel então lhe diz, quase chorando, entre seus acordes perdidos:

“Não existe nada no mundo pior do que jogar fora os doces da sua mãe.”

Rapaz! Isso é mesmo muito triste. Será que não podemos fazer nada? Lemuel continua puxando os tais acordes sem saber tocar nada direito no violão. De repente, cai silencioso, um tanto inerte. Outra vez circunspecto, mas angustiado, muito, muito mesmo, angustiado. Acordes no violão. O que sairá daí? Vamos esperar, ouvir… Nada. A música não continua, não se parece com nenhuma dessas que eles conhecem, enfim, não se parece com nada. Outros acordes. E assim por diante.

Danilo sai de lá ainda engolindo em seco, tão calado e constrangido como há muito não se põe. Aquilo parece ser uma das situações mais tristes que ele pôde presenciar, como nem mesmo havia concebido alguma vez. Carrega por uns quarteirões, até o ponto de ônibus, essa angústia indireta, sem saber como ajudar o novo colega de turma. Noite mal começando, postes acesos, passam-lhe na mente imagens e palavras, o sorriso aberto da mãe simplória, a cara fechada de Lemuel com o violão soturno, Souto a lhe perguntar se anda escrevendo alguma coisa, ele desanimado, respondendo que não sabe no que vai dar, você precisa de uma terapia, considera seriamente o que será de fato o significado da palavra inspiração, você não sabe por que quer escrever, você precisa de inspiração, você precisa de uma terapia, como se ele e os amigos fossem a própria referência da lucidez, olha o do-ci-nho!, não existe nada pior…

Mas Danilo vira a esquina, vê passar um ônibus ruidoso. Vê uma adolescente gostosa do outro lado da rua. Vê um morcego voejando de uma árvore para outra, rápido e desajeitado. De repente, algo estala entre suas ideias contaminadas de crepúsculo. Apressa o passo, agitado e feliz, vibrando entusiasmado. O ônibus certo está no ponto, à espera, ele quase erguendo a mão fechada, buscando socar o ar à sua frente como um desportista comemorando a vitória – ou a simples derrota do inimigo. “Ai, puta que pariu! Que coisa boa pra se escrever!”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

14. Triste do mesmo jeito – sequência

12. Mas como isso começou? – anterior

Imagem: Käthe Kollwitz. Autorretrato com a mão na testa. 1910.

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Comentários

2 respostas para “Lemuel”

  1. Avatar de Weiner Assis Gonçalv
    Weiner Assis Gonçalv

    Mais um erro entre tantos, minha ausência e estando ausente.

  2. Avatar de Weiner Assis Gonçalv
    Weiner Assis Gonçalv

    Perce, vai desculpando a minha ausência, pois, tenho estado ausente de Goiás, meu neto é que feito às minhas vezes. Como tivemos 16 dias de férias estaremos aqui até o fim do mês. Aproveitando o ensejo um forte abraço por seu dia, almejando que seus desejos e sonhos se tornem realidade, mais uma vez PARABÉNS.

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