Office in a Small City por Edward Hopper

Os mocinhos da matriz

Sim, os antigos e sempre renovados rituais de acasalamento.
Só que ele não ousa dizer isso, que as pessoas preferem sempre sustentar em punho a lança do amor.

Lá vão esses rapazes ousados, rumo a uma cidade próxima, a trabalho, acompanhando um gerente que tem muita esperança no futuro deles. (Ah, se ele soubesse…)

As meninas da filial, que eles estão a poucos quilômetros de conhecer, representam, para alguns, uma agradável esperança. Para Danilo, certamente. Acredita no destino, sabe que mais cedo ou mais tarde encontrará a mulher de sua vida, embora não tenha tido ainda uma namorada sequer. Os mais velhos mencionam algum detalhe envolvendo suas ex-namoradas, e isso é o bastante para serem respeitados, afinal já tiveram algumas mulheres, não importando o que isso signifique claramente. Em todo caso, um sinal de que são homens bem-sucedidos, sem dúvida. O prefixo ex, nesse caso, não tem nada de triste. (Mas não deveria ser triste? Afinal, um amor que se acabou…) Ao contrário, soa sempre como um mérito do conquistador, afagando brevemente seu ego de macho, como alguém que expõe suas medalhas e troféus. Além disso, o amante experiente, do alto de seus vinte e poucos anos, trata com muita naturalidade sua parceira atual, como se dissesse: “Ora, isso é fácil. Claro que ela é minha, não vê? Se não fosse ela, seria outra, tão gostosa quanto ela. Elas sempre se interessam por mim, como não? Nem preciso fazer força, está vendo? Trato-a com a maior indiferença e tudo bem, é assim que funciona, não é óbvio?”. Danilo observa as namoradas desses colegas autoconfiantes e por vezes muito serenos até. Parece-lhe misterioso que elas os desejem e que se submetam a eles, pois são uns chatos sem assunto, sem cultura, sem opiniões próprias, inclusive sem poesia. Será mesmo que eles nunca se declaram a elas com carinho? Que, ao menos uma vez, não tenham implorado que elas ficassem, que continuassem com eles ao menor sinal de rompimento? “Danilo, essa aqui é a Gisele. Meu colega Danilo…” “Prazer. Gisele”, a lindinha se apresenta novamente, como se o poeta não houvesse escutado seu nome cristalino, inspirador, deslizante. “Prazer”, o bobo sorri, teatral e encantado. Uau… Por algumas delas, ele faria qualquer negócio.

Ah, mas as garotas da filial irão conhecer agora um homem dedicado e honesto, culto e cheio de ideias sobre o mundo. Certo que isso poderá assustá-las, no começo. Mas logo só haverá espaço para admiração e flerte. Eles são a novidade por ali. Só de terem vindo de uma cidade maior já conta pontos – pois isso é parte do jogo de valorizações hierárquicas que circula impunemente pelo mundo: meu país é mais rico do que o seu, minha cidade é mais importante do que a sua, portanto…

Cidade menor, interior do estado. O gerente dirigindo com segurança, experiência de quem viaja, os rapazes olhando preguiçosamente para os dois lados, assimilando aquelas ruas nunca antes vistas. Para alguns deles, uma memória frágil que se vai fixando. Para outros, desde sempre destinadas ao esquecimento.

Estão todos a trabalho: técnicas de rotina, comparação de procedimentos, implantação de novos métodos… E no meio disso tudo algumas dessas colegas se aproximam, promissoras. Sorrisinhos, cochichos, boatos: os rapazes da matriz. Danilo conversa muito com essa que lhe mostra a seção de operações novas, na qual eles analisam cadastros com o perfil do potencial dos clientes, uma menina esbelta, de cabelos lisos, braços delicados e longos, olhos com aquele rímel azul-escuro de vampira, adorável, adorável. Mas como ele não sabe o que dizer, além das chateações normais do expediente, ela própria vai desfiando sobre si mesma, há quanto tempo está ali, o que faz o seu pai, por que não foi estudar fora, o que costuma fazer naquela cidade sem graça, e afinal que se sente muito solitária porque… (ah, lá vem…) porque… (lembre-se do que o gerente vinha falando durante a viagem, de nunca perder uma oportunidade na vida) porque o seu noivo (o quê? noivo? au!) é piloto de avião (putz, quem pode com essa? eu aqui, conferindo e classificando cadastros em ordem alfabética) e fica muitos dias fora, sabe?

“É mesmo? Que triste, não? Quanto tempo fora?”

Ai, mas esses cabelos lisos, esses braços branquelos, esse rímel de vampira à luz do dia…

“Ele vem de dois em dois meses, mais ou menos. Pilota um 747. Fica mais na capital, quando não está no exterior. É, menino, não é fácil não.”

Danilo se dá conta, com um engasgo rápido, de como é difícil fingir ter pena da situação. Mas vamos lá, um esforço, vamos ao teatro.

“Vida dura, não é? Admiro quem trabalha tanto assim. Acho que a gente tem que se dedicar mesmo, a vida exige isso de nós, não é? E o mercado de trabalho hoje em dia…” – patati, patatá.

“É…”, ela assimila sem entusiasmo. “Você falou tudo. É isso aí. É isso aí mesmo. E a sua namorada, faz o quê?”

Minha o quê? É tão natural assim que ele tenha uma namorada? Puta vida, que humilhação. Faz o quê? Nem sei, vamos inventar logo alguma coisa. Mas… E se for justamente a deixa para ele contar que está sozinho, que está sem ninguém, e por isso mesmo começar alguma coisa ali? Ela pode estar se insinuando, afinal aquele noivo tão distante… Rápido, rápido. Se perder essa oportunidade da sua vida, pode ser que nunca mais…

“Ela… Eu…”

Interrompidos por outros. A conversa se encerra. Rotina outra vez: métodos, trabalho, como isso tudo é importante, não? A tarde passou, o dia minguou, o sonho acabou. Como eram importantes esses procedimentos, essas reorganizações, esses monitoramentos, essas reengenharias, esses cursos de reciclagem, como era importante essa merda toda, nem fale. Souto, Verne e Valdinei também conversam com ela, com a vampirinha branquela dos cadastros. Todos conversam com ela, aliás. Quem vai deixar passar? Todos fingem neutralidade, todos se disfarçam, fazendo-se desinteressados. Ao longo da tarde, Danilo conversa com outras, menos atraentes, também ele fingindo neutralidade. Todos conversam, trocam amenidades, sorrisos. Todos mentem.

Sim, os antigos e sempre renovados rituais de acasalamento. Só que ele não ousa dizer isso, que as pessoas criticam esse tipo de abordagem, preferem sempre sustentar em punho a lança do amor, como se isso fizesse alguma diferença para os hormônios, eles que verdadeiramente moldam o mundo, atribuindo cotas de desejo variáveis para cada um – mas nunca se omitindo completamente. Essas aproximações não passam de resultados de processos civilizadores, em um grau de sutileza e teatralidade que não só visam ao sexo como meta evidente, mas levam os homens a produzir poesia, música e guerra, efeitos colaterais da engenhosa, soberana, implacável, fascinante seleção natural. E assim, antes da masturbação, usa-se o recurso do sorriso e do melhor perfil, da mentira inocente, da entonação que envolve, da voz que canta.

Viagem de volta. Anoitece na estrada. As primeiras luzes de umas pequenas cidades e propriedades rurais faíscam mansas entre os vales de vastidão medida, crescendo em sombra. Um tédio.

“Vocês viram que meninas bonitinhas?”, Souto, no assento do carona, querendo arriscar conversa, torcendo o pescoço para trás. “Precisamos viajar mais vezes, patrão.”

“Que garanhões”, o gerente ri.

“Todas elas pareciam interessadas em nós”, Souto sem ironias, voltando-se para a estrada à frente, algo esperançoso.

“É mesmo?” Valdinei com seu cinismo cintilante. “Achei que só você tivesse percebido.”

“Gostei daquela magrinha de cabelos lisos, a…”, Danilo muito cuidadoso, fingindo ter esquecido o nome dela. “Do departamento de operações novas…”

“Há! E quem não gostou?”, grunhe o gerente, participando da orgia.

“Um-hum…”, Danilo engolindo duas vezes, no escuro. Que fazer com essa dor? O que é essa dor? “Val, ela até pareceu meio interessada em você, pelo que notei”, com isso escondendo-se mais ainda, arriscando transferir tais impressões falsas, jogando uma isca ao amigo, pensando que pode atiçar-lhe a atenção ou despertar-lhe o instinto.

Sem resultado. Valdinei vai agora com a cabeça deitada para trás, olhos fechados, boca meio aberta, queixo pendente, talvez tentando dormir, parece morto. Fica assim. Nem responde.

“E a amiga dela, aquela baixinha?”, Verne com sua voz macia. “Lindinha. Uma graça. Aliás, você ouviu aquela de cabelinho liso dizendo que o noivo só aparece de vez em quando, que ele é piloto de um Boeing?”

“Essa de cabelinho liso é justamente a mesma. É dela que nós estamos falando, Verne, porra!”

“Ahn… Entendi. Então… A gente podia tentar sair com elas, aquela amiga dela também. O Souto marcou os telefones.”

Valdinei, sem mover uma pestana. Morto.

“Marquei, quer ver?”, mão no bolso da camisa, Souto tentando distinguir uns papeizinhos nas trevas, desdobrando esperanças.

Sem se mexer, Valdinei pensa por um segundo. É muito para ele: em um segundo, pode chegar a um milhão de ideias. Do jeito que está, com a cabeça caída, nariz apontando o teto, rebenta numa gargalhada irresistível. Apruma-se, está desperto sim. Surpreende a todos em meio ao murmúrio monótono do veículo, ao longo da rodovia noturna: ri de tremer os ombros, de perder o fôlego.

“Que noivo o cacete! Que piloto o cacete!”, os olhos inteligentes, mais acordado que todos ali, e agora afrouxando a gargalhada, quase rindo. “Ai, meu pai! Danilo, essa safada nem tem namorado, pode apostar. Que filha da puta, ela disse isso? Quá quá quá quá…”

“Você acha mesmo? Como… você sabe? Ela disse que ele é piloto, só isso, por isso que…”

“Piloto o caralho…”, gargalhando gostoso, entre soluços, não consegue parar. “Piloto o caralho! Ai, Jesus, estou chorando, olha aqui… Ai, eu não dou conta, meu pai… Uma vaquinha interiorana, doida pra cantar e catar alguém. Doida pra dar. Até casar, quem sabe. Quá quá quá quá… Essa putada só inventa coisas.”

Um gênio. Danilo admira demais a perspicácia dele. E era aquilo mesmo: não tinha piloto coisa nenhuma. Ficaram sabendo de um colega que só estalou os dedos, ela foi com ele até a cidade dele, ali perto. Que safada, que vaquinha, que… arrependimento de não ter tentado.

Dias depois, sozinho em seu quarto, Danilo relê João Ruiz de Castello-Branco, devagar, tom sereno e em voz média, como gosta de fazer.

Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Pensando na vampirinha magra e carismática, de rímel azul-escuro. Acaba comovido com aquilo tudo. Tomado pela intensidade de uns sentimentos imprevistos. Invisível em seu castelo branco. Como é possível? Se ela não presta, por que eu a amo assim? Por que gosto de chamá-la senhora e imagino uma varanda medieval sob a lua? Por que essa palavra antiga e mágica, esse nenhuns, me inspira trepadeiras floridas, treliças e rosas e gestos suaves? O que, afinal, atravessou esses tantos séculos até alcançar-me agora?

Partem tão tristes os tristes,
tão fora d’esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

O que terá sido extinto, nesse caminho todo, que ele não ousa confessar aos outros?

Para o ansioso Danilo, não demorarão a chegar os anos seguintes (por isso mesmo é que são os anos seguintes), quando a Fada Azul o tocará com o dom de atrair misteriosamente alguns exemplares do sexo oposto, além de dotá-lo com uma pitada extra de atrevimento e mentira. Suas espinhas diminuem sozinhas, hormônios agora a seu favor, sua postura é mais elegante, menos curvada – porque gostava de imitar uns caubóis do cinema e uns colegas que faziam o mesmo, projetando os quadris para a frente, as costas para trás, ombros para a frente outra vez, pernas jogadas para os dois lados, um jeito forçadamente descontraído de mostrar que era homem. Seu sorriso aparece com diferentes intensidades, mais adequado à gama de situações. Nunca sorrir muito a uma mulher que não lhe interesse – para não iludi-la, não criar nela expectativas. Nunca tratar todos igualmente, como acreditava e cultivava até então, heroico e tolo, em sua adolescência que, para seu próprio bem, não existe mais. Agora, tem outras cartas na manga. Agora, possui seu próprio carro, um Chevette usado que lhe parece magnífico. Agora, aprende a jogar, escondendo-se e revelando-se na medida certa, entre cauteloso e ousado (estratégico é como gosta de se definir, sem que ninguém saiba), o que não o livra de situações constrangedoras, gafes irremediáveis, humilhações imprevistas e tolices impulsivas, o que mais tarde se constataria facilmente, bastando um olhar a um novo passado próximo. Não importa. De qualquer forma, ele está agora em meio a esses anos promissores, em meio ao jogo do desejo e da conquista, dos fracassos e das frustrações, e logo terá, enfim, suas ex.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

21. Enquanto seu ônibus não vem – sequência

19. O aprendiz de feiticeiros – anterior

Imagem: Olly Lawson. Estudo para cabeças.

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