Office in a Small City por Edward Hopper

Vanda pela manhã

Vanda não parecia o tipo de mulher propensa à gestação e à maternidade.
Mas era uma mulher. O risco era o mesmo.

Júlio entendeu pela metade o que vinha sendo escrito em suas costas. Julgou que a última palavra fosse tesão. Deixou de sentir o movimento de um dedo sobre sua pele. Fingiu que dormia, permitindo que ela prosseguisse, ela não prosseguiu, e ele então fingiu que acordava. Ao abrir os olhos, a primeira impressão foi a de não estar em sua própria cama. Antes que o tempo escorregue por nossos dedos… Pensou ter sonhado com essas palavras. Ou as teria acabado de reinventar, pois tratava-se de antigas palavras, numa certa sequência, talvez sob influência de letras de canções, emergindo de outras línguas, provérbios distorcidos, versos sem dono. No momento, não tinha certeza de nada. Viu, pela porta aberta, o brilho anêmico da lâmpada esquecida acesa na sala. Claridade do dia. Domingo, se bem se lembrava. Adeus, Gauguin.

Virou-se de costas. Vanda esticou-se por cima de seu tórax, para alcançar o relógio de pulso sobre a cômoda.

Nua, é claro. Ou você esperava que ela se protegesse com um robe ou um lençol improvisado, como nas fitas de cinema, ao deixar a cama na qual acaba de exercer, simples e escandalosamente, sua nudez?

Ela devia ter acordado há pouco. Cabelos num rabo de cavalo, sentada sobre as pernas, voltou-se para ele apertando o nariz entre os dedos e fazendo a voz do rádio.

Nove e meia na capital, muito bom dia! Esta é a estação mais alegre da cidade.

Olhou ao redor, em busca da calcinha, que havia ficado na sala, e Júlio, num gesto quase natural, levou a mão a prendê-la pelo pulso, evitando que saísse da cama.

“Isto não são horas de levantar.”

Trouxe-a para junto de si, via melhor seu rosto e os seios. Passou a guiá-la pela cintura. Ela estava bastante excitada quando ele resolveu ensinar-lhe um truque para que não lhe escapasse ao sentar-se de costas, o que ela assimilou com facilidade – ou, quem sabe, porque já o conhecesse e não quisesse desapontar o parceiro, esse experiente conquistador.

Júlio preparou um café, que tomaram na cozinha. Sentados à pequena mesa, ele observava Vanda quando distraída, espalhando manteiga na torrada ou reabrindo o açucareiro, ainda com a sensação física de tê-la penetrado recentemente. A luminosidade dessa manhã… Um feixe de matizes que… A luz decompunha-se de acordo com a refração dos vidros no parapeito e… Por que tantos esforços de definições? Era simplesmente o sol. No rosto dela, a claridade refletida por inúmeras superfícies próximas transmudava os tons naturais, fazendo-lhe olhos mais claros e cintilantes. Júlio notou algumas sardas e pequenas espinhas, além das olheiras. Olheiras, não rugas. À noite, ele poderia jurar que sua pele fosse lisa como um pudim.

“Um sol assim dá um bronzeado lindo”, ela tolamente. “Você é que está branco feito um fantasma.”

Olheiras. Eram olheiras.

“Sempre me dizem isso”, ele de má vontade.

Fechava os olhos por um instante, via uma série de imagens desencontradas e quase simultâneas que se embaralhavam e se esvaneciam, num resquício de sono e sonho mal resolvidos. Vanda foi à geladeira. Quase casualmente, Júlio observava as mãos dela. Depois, os pés. Antes que o tempo escorregue por nossos dedos. Então ficou olhando seu traseiro, suas costas. A camisola curta e transparente não impedia que ele a visse nua, exceto pela calcinha escura, de frente um minúsculo triângulo negro que era a própria máscara do que se propunha esconder, simulando uma nudez ainda maior, justamente por servir-se a disfarçá-la. Como por acaso, os olhos dele fixaram-se em seu ventre. Vanda não parecia o tipo de mulher propensa à gestação e à maternidade, era solta e desprendida, isso pouco inspirava dos cuidados e afetos associados à figura materna. Mas era uma mulher. O risco era o mesmo.

“Que foi?”, ela de mãos na cintura.

“Foi o quê?”

“Meu umbigo excita você?”

“Não. É uma pena.”

“Então tenho alguma coisa na barriga.”

“Não, espero que não.”

“Você não para de olhar…”

Júlio parou de olhar.

“Van, quero te perguntar uma coisa.”

Ela se sentou ao lado dele, mas não por isso. É que a mesa era pequena, a cozinha estreita, e ela já ia se sentar mesmo, deixando ali, ao lado das torradas, a geleia vinda da geladeira.

“Mas que seriedade. Pergunta.”

“Você se previne de alguma forma, quero dizer… Qual é a graça?”

“Não, nada. Gostei dessa sensação. Você me olhando assim, preocupado.”

“Não estou preocupado.”

“Ah, não?”

“Claro que não.”

Ela riu outra vez, enquanto se abastecia de leite. Glub, blurp… Encheu a caneca.

“Vanda, eu estou só perguntando. Só isso. Você se previne ou não?”

Tique, tique, tique, tique, tique, tique… – mexendo com a colherinha. Tinha adicionado chocolate em pó.

“Se eu disser que não?”

Ela estava gostando da brincadeira. Olhava-o de frente, detida em um gesto, faca na mão.

“E se não? Hein?”

“Van, eu não gosto disso.”

“Disso o quê?”

“Você sabe.”

“Não sei não. Do que você não gosta?”, os olhos dela brilhavam de astúcia. “Do que você não gosta, hein? Parece que gostou de tudo.”

O bom senso já antecipava a Júlio que ele não sairia ileso. E por que prosseguir num assunto tão aborrecido? Só lhe restava a rendição.

“Esquece isso, gata. Foi só a curiosidade.”

Ergueu a xícara, como a dedicar-lhe um brinde. Um idiota. Dizia a si mesmo: cuide-se, por favor, não faça mais isso – significando “não corra mais riscos” e não “não faça mais sexo”.

“Geleia do quê?”, ele de volta aos bons disfarces.

Vanda finalmente sorriu e espalhou a manteiga onde queria. E, sim, um sorriso agora tão doce que se poderia passá-lo também sobre a torrada: sweet, soft, soft e… crack-it! – ela a mordeu com vontade, soltando farelos.

“Então. Você achou que eu ia me arriscar assim, sem mais nem menos? Ih… Sujou aqui, olha.”

“Como, sem mais nem menos?”

“Você sabe. Eu com dezenove, estudando…”, chupou um dedo, rapidinho. “Você, vinte e três, não é?”

“Vinte e cinco. Quase. Mas não seja por isso.”

“Vinte e cinco. E nessas”, uma risadinha breve, baixando o rosto. “Só me faltava…”

E nessas? Ela quer dizer… Ele ainda… Ah, foda-se, Vanda. Júlio sorveu mais café, com cuidado, muito quente. Não estava disposto a se diminuir por causa dessas bobagens, algo como não ter uma profissão rentável, uma condição financeira que no momento pudesse ao menos inspirá-la com uma possibilidade de… Enfim: foda-se.

“Fui promovido, sabia? Vou para a Bélgica. Você vai sentir minha falta.”

Muito. Ela nem riu. Júlio fechou os olhos por um instante, revendo a confusão acumulada de suas horas de sono não resgatado. Pareceu-lhe ver uma criança, depois uma pessoa jovem. Um casal. Uma cama. Um túmulo. Pensou naqueles que ainda não haviam nascido. Quem eram? Ninguém. Nada. Nos que haveriam de participar de um futuro a que nenhum deles teria acesso, repassando as mesmas relações, embaralhando-se e esvanecendo-se, na esteira dos conflitos que ainda estariam por vir, entre os sonos e sonhos sempre mal resolvidos da humanidade.

O ruído na sala interrompeu sua vertigem.

“O jornal. Eles tentam enfiar por baixo da porta.”

Vanda voltou à cozinha com o jornal caindo aos pedaços, por tentar abri-lo enquanto andava. Ninguém consegue abrir um desses jornais andando.

“Vou ler o seu horóscopo.”

“Sério? Olha, e se nós, em vez disso…”

“‘Leão. Grandes novidades no plano sentimental.’ Viu só? ‘Bom para viagens e visitas a entes queridos. Procure evitar atritos com seus colegas de trabalho e lembre-se de ser um pouco mais compreensivo com as pessoas.’ Um-hum!”

Colegas de trabalho. Os redatores nem se propunham o cuidado de reescrever o horóscopo de domingo. Só para leoninos plantonistas.

“É você quem assina esse jornal?”

“Não, é a Lea. Eu nem leio jornal. Só o que me interessa.”

“Astrologia.”

“Não é só astrologia não”, ela em outro tom, como se fosse preciso defender-se. “O caderno de moda, cinema… E a coluna espírita, às vezes.”

“Hum?”, mastigando. “Não sabia que você era espírita.”

“Não sou. É que eu encontro coisas lindas lá, gosto de ler. Mas eu não sou espírita não. Minha mãe é católica e eu sou mais ou menos. Posso saber qual é a graça?”

“Vai, me empresta aqui esse jornal.”

Percorreu as manchetes da primeira página, entre as quais havia algo sobre a fome no Terceiro Mundo. Outra bomba que matou… Tudo isso? Cidade revoltada com o estupro de uma criança por um… Greve trabalhista termina em massacre perto de… Isso, de ontem para hoje. Tudo cabe em um dia. Mundo sempre em andamento. Sonhos, sonos mal resolvidos, noites por realizarem-se. Antes que o tempo escorregue por nossos dedos. Júlio havia dobrado as páginas de maneira desastrada e irreversível, os cadernos escapavam-lhe sobre os joelhos, sem esperanças de reorganização. O que estaria acontecendo àquela mesma hora, no mesmo mundo? É mais tarde do que você imagina. Tudo caindo aos pedaços. Só saberia no dia seguinte. Ninguém consegue abrir um mundo andando. E mesmo que conseguisse…

“Perguntei se você quer mais açúcar, cara!”

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

55. Testamento entre suas últimas manias – sequência

53. As folhas tenras da alface – anterior

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Comentários

4 respostas para “Vanda pela manhã”

  1. Avatar de Daniel

    Parabens pelo blog professor, ta muito bom

  2. Avatar de Jady Alves

    Perce,

    E os nossos limites estão onde?
    Nas aventuras dos dias comuns, onde fazemos desses dias, dias especiais, onde o que nos acontece não são frutos de meros acasos, são possibilidades de vivências que nós mesmos nos proporcionamos. Para que isso aconteça devemos aproveitar as oportunidades que a vida em nosso dia a dia nos oferece. Ler os teus escritos fazem parte dessa gostosa oportunidade, você nos favorece gostosas aventuras em nossos dias comuns, beijos e obrigada por isso querido escritor..

  3. Avatar de Perce Polegatto

    Jady, fico contente de verdade se posso proporcionar uma boa leitura a alguém, mas isso também depende de quem lê. E você, sem dúvida, é uma leitora especial, capaz de perceber essa dosagem que tento encontrar entre o humor e a angústia, o cotidiano e o universal, alguma sutileza entre uma coisa e outra. Dei o nome a este blog A aventura do dia comum porque é em nossos dias que tudo acontece. Tudo mesmo. A brincadeira tola e a possiblidade da morte. Morremos num dia qualquer, e tudo o que podemos vivenciar acontece agora, neste entardecer, no meio da noite ou na manhã seguinte (na companhia de uma Vanda ou sozinho em alguma parte), mas é sempre no hoje que podemos – e devemos – experimentar nossos limites.

  4. Avatar de Jady Alves

    Delícia te reler… Um livro que absorvi com prazer. Mil pra você Perce.
    Muito, mas muito prazer!
    Beijos,
    Jady

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