Office in a Small City por Edward Hopper

Suínos, símios, restaurante

Sabemos que somos os maiores predadores da Terra, o que não éramos antes.
E não só isso, não apenas predadores. Estamos armados.

Três ou quatro restaurantes médios, cardápio variado e preços razoáveis, serviam de solução fácil às exigências de sua fome noturna, isso quando se animava a sair a pé pelo bairro, também por desejar romper com a tirania dos sanduíches que muitas vezes despedaçava sobre a cama ou à mesinha-estante-criado-mudo. Era preciso, ao menos, experimentar. Lembrar de conferir a grana no fim do mês, enquanto fecha o zíper, calça os sapatos, uns mocassins já amolecidos pelo uso, mas vale a pena tentar, que os sanduíches também têm seu preço.

Bruno querendo saber, ele que era adepto de legendários lanches gordurosos, que mais se assemelhavam a composições de pão com maionese e molho, apenas, e que se podiam dilacerar barbaramente frente à TV, aonde ia o colega com o tempo de nuvens e ruas molhadas.

“Descobri uns lugares, não muito longe nem muito perto. Precisa andar um pouco, não compensa esperar o ônibus.”

“Você acha mesmo que…?”

“Não sei.”

“Vou pegar uma camisa.”

Em um desses restaurantes, passando por um duplo balcão que servia aos fregueses de uma ruidosa lanchonete, abria-se o amplo salão de um refeitório claro e aparentemente limpo. O dono do estabelecimento, que normalmente rondava o caixa, assistia à passagem do estranho com indiferença. Em outra ocasião, observou-o à mesa com a vaga sensação de tê-lo visto antes. Uma semana produziu o que se poderia chamar um sorriso claramente comercial. “Boa noite, Júlio. Pode ficar à vontade.” O nome nos cheques com que pagava as contas. Refeitório iluminado, sorriso. Muito simpático. Bruno o seguiu nessa noite, depois em inúmeras outras – ou quase sempre.

“Ainda tem lugar”, disse ele com uma faísca de felicidade nos olhos e sem nenhuma gratidão para com os sanduíches.

Mesa entre um casal de meia-idade, dois policiais e um grupo talvez de executivos ou advogados, gravatas afrouxadas e paletós vestindo as cadeiras, todos ali discretos em seus movimentos e atitudes. Que exemplo de sociedade pacífica é um lugar desses, observava Júlio. Civilização, mas que palavra! Ninguém ali saía saltando sobre as mesas ou atirava um talher na cabeça de um semelhante. Tudo mais ou menos medido, esperado, como se pode perfeitamente confirmar num manual prático sobre o bom comportamento dos símios. Ao menos se havia alcançado alguma coisa, afinal: tais acordos telepáticos de contenção recíproca, após uns tantos mil anos. Tudo isso, bem entendido, no salão de um restaurante.

E ficavam todos ali, por um breve momento, sob o domínio de algo que os fazia iguais, a fome, não importando se entre os fregueses se encontravam o assessor do diplomata, a diretora do curso, o equilibrista do circo, a prostituta secreta ou o corretor imobiliário, e como a vida lhes parecia a todos comum, óbvia e lógica, como se furtivamente se olhassem, dizendo: assim é, este sou eu, esse é você, assim somos, também tenho fome, sabia? Quer saber meu estado civil, nacionalidade, cútis, altura? Para quê? As estantes também contêm produtos com rótulos, códigos de barras, etiquetas de qualidade e selos de aprovação, tudo para ser consumido – e o que não consumimos, apodrece, para sorte dos fungos. Por isso, volte amanhã, não deixe de se movimentar e viver. Assim somos você e eu, está vendo? Nossos grupos valorizam a nação e seu herói, o atleta e sua medalha, passam-nos às mãos, sem nenhuma reserva, um breve catálogo de soluções fáceis a que nos agarrarmos com toda vontade, começando pelos cursos & pelos livros, os cargos & as carreiras, o carro zero & o cruzeiro, status & grife, pátria & religião, yin & yang – e quatro bilhões de outras invencionices, entre os cansativos alfa e ômega.

Entre as mesas do fundo e algo além, mostrava-se um homem muito velho, magro e silencioso, com manchas na pele, perfil adunco, copo pela metade. Tão absorto que faria alguém observá-lo uma vez mais a fim de identificar algum mínimo gesto e assim constatar que se estava diante de uma pessoa, não de uma imagem. Desde que haviam chegado, ele permanecera na mesma posição, imóvel, imperturbável, apenas olhando à frente. À frente, mas não propriamente para alguma coisa, desconfiava Júlio. Que coisa poderia olhar um homem daquela idade e com tais manchas acinzentadas? Manchas da velhice, supunha, dessas que se destacam como flutuando sobre o rosto de um homem quando cadáver. Júlio absorvia uma incômoda impressão de repugnância por esse freguês incomum, feito a um canto, não especialmente por qualquer aspecto físico, mas por inspirar-lhe uma figura sem vida, quase a ampliação de uma efígie de moeda, recortada e colada ali, ao fundo do refeitório, sem outro propósito que o de perturbá-lo, a Júlio, veladamente. O garçom retornava àquelas mesas, sem pressa. Ao silencioso freguês, tratava pelo nome, enchia-lhe o copo sem que fosse solicitado, com isso fazendo ver que o homem provavelmente se instalasse ali noite após noite, vendo a vida correr – força de expressão apenas, nem mesmo tanto. Como todos, ele fora um dia gerado à sua revelia, lançado a participar do mundo por algum tempo, antes de consumir-se quimicamente rumo à dissolução pessoal que o faria desembocar em alguma parte da Terra. Entendessem os inconformados por nova dimensão ou pós-vida espiritual, em todo caso um lugar, que pouco faria de toda a sua experiência terrena, o processo apenas reciclando o mistério por outros mil anos.

“Júlio, tá me ouvindo, viado?!”

Não. Um dia contaria a Bruno que eram eles aquele velho de manchas, entre outros mistérios epidérmicos, à flor da terra e aos poros do planeta, desde agora o relevo na moeda antiga, a efígie desgastada pela cárie e pelo óxido – ou não faria essa maldade com ele? Que sempre souberam do envelhecimento alheio, a terceira idade dos outros, não sendo o bastante o fim da adolescência e da inocência, entre os adultos o advento de rugas benignas, mas nunca com eles, para quem a velhice punha-se tão distante quanto uma cidade qualquer. Eles, que por vezes procuravam refeitórios iluminados, a fim de satisfazer sua necessidade demasiado elementar de ingerir alimentos, desde proteínas de mais de uma origem a temperos absolutamente dispensáveis, para que pudessem sair de lá errando outra vez sobre o mundo e sobre as cidades, que afinal são as células de outro fabuloso organismo.

“Essa verdura deve ser de ontem”, Bruno enquanto mastigava.

Na mesa ao lado deles, os advogados (ou gerentes? ou o quê?) riam escandalosamente de algum gracejo que Júlio, mesmo não o tendo ouvido muito bem, acreditava não ser muito espirituoso. Um dos homens saboreava um lombo de porco, demoradamente. Vinho, com a mesma tranquilidade. A sobra de comida em seu prato, quem sabe devolvida aos porcos, engordando-os para que se encaminhassem novamente aos matadouros, enquanto a espécie humana reinava pacificamente sobre as outras. Sim, grandes novidades. Sabemos que somos os maiores predadores da Terra, o que não éramos antes. E não só isso, não apenas predadores. Estamos armados.

Aquele homem, comendo calmamente, decretava, com seu gesto, que ele, entre os seus semelhantes, era destinado a um futuro de permanência e poder, de absoluto domínio sobre as demais formas vivas, sem qualquer resistência. Júlio, silencioso e grave, o observava enquanto isso. Sem dúvida, o maior acidente da história natural. A acelerada e assombrosa ascensão da inteligência. O homem limpou os beiços com discrição. Deliciou-se com outro gole de vinho. Cada pequena ação lembrava que estaria intocado pelos próximos cem séculos, como estivera nos últimos cem. Prolongava sua sobrevivência individual até um dia ser sepultado em terra seca e calcária, longe da lama que servia aos suínos. Matadouros e uma antiga questão de tempo. Bruno e Júlio ali: atravessando outra juventude entre milhões. O velho de manchas no fundo do salão, que Bruno finalmente descobria por acaso, não escondendo sua cota de repugnância. Não havia tantos privilégios afinal.

“Mas que velho…”, Bruno sem encontrar adjetivos. “Velho do caralho!”

A única coisa que Júlio podia justificar como motivo de um arrepio de inveja era que aquele homem parecia imune a questionamentos. Spinoza observou que o ser humano estava condenado a pensar. Então, por que não teria sido esse velho inerte condenado por Spinoza? Mas isso eram julgamentos sem base real, impressões subjetivas: era como se Júlio soubesse que aquele homem não pensava. Que havia sido alguém condicionado pelo meio, pelas necessidades que as pessoas trocam entre si, assim moldando seus ritos religiosos ou sua maneira de rir de uma anedota entre amigos. E Júlio prosseguia, sob a maldição de Spinoza. Necessário que houvesse um vasto contingente de medíocres ou desinteressados para que, em meio a essa absurda homogeneidade de valores e costumes, surgisse um Einstein ou um Schubert. Desde algum tempo, as estatísticas demográficas imitavam as grandes populações de insetos ou mesmo a ideia básica dos espermatozoides (mais indivíduos, maiores chances), um investimento no futuro da espécie, não só a preservação dos grupos, mas a possibilidade de um novo especializoide, já que a natureza não pode (não pode? por que não?) correr riscos. A humanidade representada e refeita em cada homem. Estruturas que se repetem. Átomos que se unem, formando cada parte de seu corpo, para um dia se libertarem uns dos outros, tornando-se parte de qualquer indivíduo ou paisagem. Outra gargalhada ruidosa, da mesa ao lado. Voltando-se por um momento, Júlio viu-se refletido no vidro noturno de uma das janelas. Só uma sombra escura, o contorno negro de ombros arcados lembrando um grande símio, cabelos despenteados acentuando a súbita impressão de primata ou monstro. Macacos sem pelos, pensou. Com poucos pelos, melhor dizendo. O que somos, um aperfeiçoamento apenas. Aperfeiçoamento mesmo, fique-se com tal palavra, por que não? Alguns grupos de chimpanzés enterram seus mortos, cobrem-nos com folhas e ramagens, memorizam procedimentos importantes e rejeitam tarefas repetitivas, o que revela outro vasto sintoma de tédio e crise. Mas sei que não sou um primata qualquer. Nem um homem qualquer. Sinto-me hoje especial. Ao menos hoje, entre esses. (Outra risada intolerável.) Sou um macaco que odeia.

“Não, não precisa. Só o telefone. Tiveram uma boa refeição, uma boa noite…? Já vou, já disse que vejo isso depois! Certo, Juliano, obrigado. Voltem sempre.”

Voltavam a pé, ruas ainda movimentadas. Sobre o viaduto que ligava os bairros e abria a estonteante visão de uma longa avenida muito abaixo de seus pés, onde a perspectiva de uma corrente de contas iluminadas seguia em marcha nos dois sentidos, Bruno contou a Júlio de uma garota que certa vez saltara de lá para a morte. Reportagem na TV, notícia de uma noite, não mais. Havia algo de púrpura no que preenchia a distância.

“Acho que foi deste lado, aqui. Não. Do outro. Lembro bem da imagem. Não, não tenho certeza.”

Júlio apertou com força a barra de proteção. A jovem desconhecida e seu gesto sem retorno. Um instante: o suficiente para ela. Baque no fundo do asfalto. Veículos que mais deformassem seu corpo, em seguida. Sangue e hematomas ilustrando essa sua última imagem. Desmantelando para ela, e para sempre, uma realidade de tão pouco.

“Por que sempre alguém maluco faz uma coisa dessas, hein, Júlio?”, Bruno arrotando em seguida.

“É uma atitude como outra qualquer, nós entendendo ou não.”

Arrepiando-se e arrependendo-se em seguida, tão surpreso consigo mesmo por tê-lo dito daquela maneira quanto não convencido de que algo daquele gênero pudesse configurar uma atitude qualquer. O que o levava a defender-se assim, tão prontamente, de perguntas que o desafiavam? – e esta talvez fosse a pergunta que principalmente deveria fazer-se.

“Me dá aqui outro cigarro.”

Voltavam sem pressa, bem alimentados e quase felizes. Júlio recordou gravemente o grito da noite anterior. Moro numa cidade de muitos recursos, recitava a si mesmo, como em fuga, como orando por proteção, nas trevas. Moro numa cidade de muitos recursos… De muitos recursos… – onde toda noite se cometem crimes. Pensou que o giro-rolo-compressor do planeta em questão, apesar de tudo, ignorava obstáculos avulsos e estatísticas de minorias. E que a vida haveria de realizar-se. Pelo menos, queria ter certeza disso. Mas… por quê?

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

17. O número zero e as dez mil coisas – sequência

15. O meio-dia cinzento – anterior

Imagem: Rembrandt van Rijn. O boi estripado. 1655.

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2 respostas para “Suínos, símios, restaurante”

  1. Avatar de Erika Luiza
    Erika Luiza

    Fabuloso!

  2. Avatar de Marinalva Marques
    Marinalva Marques

    Perce, tu és um dos grandes do Brasil, te adoro! Saibas que tudo o que eu disser sobre ti será suspeito, pois sou tua fã em tudo o que escreves, como escreves e como pões teus pensamentos em palavras.., dando-me mais e mais inspiração para continuar a escrever meus poemas e contos. Aff…!!!

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