Office in a Small City por Edward Hopper

Relâmpagos

Um menino contra seu próprio reflexo, gotas escorrendo de seus olhos ou lágrimas de chuva porque vê atrás de si uma mulher.

Quando penso em minha infância, vejo um menino atrás da vidraça, numa noite tempestuosa – rosto sem sorrir, olhos iluminados por relâmpagos que o fascinam.

O relâmpago irrompe das nuvens, ramifica-se no céu, e eu vejo um menino cultivando, entre outras maravilhas, sua árvore de ovos, a que no verão reluz como um arranjo de pérolas ao longe; no outono, deita cascas ressequidas; no inverno, põe-se uma árvore como outra nua qualquer (os que passam ignoram seu segredo de sementes); e, na primavera, ostenta grandes formações, dentro das quais se adivinham gemas suculentas. Dragões emergem das chaminés. Cogumelos na relva. Há também a marcha de partículas de poeira rumo ao Sol.

O relâmpago cai das alturas, precedendo o estrondo que lhe corresponde, move a terra, e eu vejo um menino mudo. Se não sorria, hoje menos se vê em seu rosto. Pensa que a madeira da janela tem atravessado o tempo, e os carpinteiros e os vidraceiros estão todos mortos. Uma janela que, sendo a mesma, abre-se para esta noite tempestuosa que é hoje noite (não mais), tempestade (não mais), vidro por si só.

O relâmpago fende a noite suspensa, e eu vejo um menino contra seu próprio reflexo, gotas escorrendo de seus olhos, ou lágrimas de chuva, pois vê atrás de si uma mulher. Simplória e malvestida, encosta-se a um muro, porque não tem casa, e ali, a despeito das adversidades, do desamparo e do trauma de abortos anteriores, chora de dor e de prazer ao externar seu êxtase. Começa a chover. É um menino.

O relâmpago bifurca-se, triparte-se no céu, e eu vejo um menino entretido em não apenas registrar, aproveitando-se do luminoso labirinto que lhe proporcionam as tormentas: vivenciar, supondo-se à parte do tempo e das casas, o que possa minar os homens como a umidade na fresta das molduras de todas as janelas e infâncias.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

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Imagem: ilustração de Fernanda R. Mesquita.

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Comentários

2 respostas para “Relâmpagos”

  1. Avatar de Danilo Diniz

    Eu encontro motivos nesses textos, para revigorar meus pensamentos de algumas coisas que deveriam ser simples e que muitas vezes insistem em dar errado, me traz à tona um sentimento de liberdade, de que por mais que em certos momentos o sentimento de que nada está como eu queria, às vezes isso me mostra o caminho da pureza de pensamento do fato único e simples que é presenciar a própria vida.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Sim, presenciar a própria vida, essa é a matéria-prima dos escritores. É preciso, tanto quanto possível, ser verdadeiro. Drummond escreveu: “A vida apenas, sem mistificação.”
      Podemos falsear a realidade em função da ficção, mas é inútil falsear os personagens, suas intenções, seus desejos. Porque eles são nós.

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