Office in a Small City por Edward Hopper

Treze pode acontecer

A memória do que seja especial permanece, as outras todas somadas se dissipam.
Para nosso próprio bem, concluo.

Bruno era quem demonstrava a melhor intuição para o rastreamento de bares, botecos, choperias, cachaçarias e similares espeluncas que gradualmente passaram a frequentar. Primeiro, nos fins de semana. Depois, a partir de sexta-feira. Quinta em diante. Vez ou outra numa terça, só uma breve e suave amostra de álcool, suficiente para acreditar-se capaz de renascer, prosseguir sobre a cidade e sobre os dias. (Júlio não conseguia dissociar seu sobrenome desses pensamentos por demais comuns, isso já o vinha fatigando, tais comparações.) Bar do Tomás, depois o Fronteira. Oásis, Noite Dentro, Girassol Lua, Cabaré 80, um e mais outro que pouco procuravam, configurando, não pela ordem, um guia de opções suficiente.

O Fronteira dividia suas preferências. Mesmo assim, realizavam a sequência mais repetida, por um motivo ou outro. O Noite Dentro os atraía da mesma maneira, porém por outras razões. O primeiro servia melhor às primeiras horas da noite, o outro a prolongava até quando se pudesse chamar a mesma noite uma noite.

Os frequentadores mudavam de hora a outra. Havia adolescentes perdendo-se entre adultos, adultos como eu e Bruno observando uns mais velhos, boêmios que fizeram da noite sua religião de liberdade, homossexuais masculinos e homossexuais femininas, havia também a hora dos divorciados e dos que seriam seus pais, por fim uma estranha fauna amanhecia entre as mesas, parte de uns e de outros, e o que tinham em comum era, sem dúvida, nada terem encontrado. Por esses dias, conheci Treze.

As vozes todas caracterizavam o aspecto ruidoso do salão, embora os frequentadores das mesas e os que preenchiam o balcão ao fundo, no Fronteira, não parecessem estar conversando tão mais alto do que se poderia esperar. Também como se aquele ruído-murmúrio, não correspondendo aos movimentos labiais dos mais próximos, partisse de algum outro lugar invisível, por trás de tudo. Júlio, recuando o queixo, soprava com o lábio superior estendido à frente, dirigindo o ar ao próprio peito, mesmo com a camisa já se fazendo metade aberta. Notou que sua cadeira havia mudado de lugar sem que percebesse. Assim como a mesa, algo fora do esquadro, tudo ali um pouco diferente de quando haviam chegado. Muitos se sentavam e se levantavam, outros passavam e desviavam cadeiras entre uma dessas ações e outra, por isso uma garota da mesa ao lado encontrava-se quase frente a ele, as cadeiras em sentido oposto, como se em seguida pudessem dar-se os braços e dançar a quadrilha. Ela virou o rosto como procurando por alguém, então viu-o de frente, achando divertida a maneira como tentava aliviar-se, tendo de fazer uma careta para ventilar-se verticalmente, pescoço abaixo. Ele também sorriu, não plenamente, como aliás nunca o conseguia, considerando a incômoda frustração de quem, mais uma vez, perdia a oportunidade de apresentar-se de melhor forma uma fêmea desconhecida.

“Não sei como pode estar tão quente aqui”, Júlio tentando justificar-se, não lhe ocorrendo outra qualquer coisa que dizer.

“Todo mundo escolheu este lugar”, ela lhe revelando o som de sua voz, muito feminina e espontânea.

Mesmo isso não deveria durar muito. Logo ela perceberia Bruno, haveria de deter-se por mais tempo nele, como era o habitual, quando estavam juntos. Ele, Bruno, conversava com um conhecido que, nessa noite, se sentara à mesa deles: comentavam algo sobre uma estratégia que se aplicasse a determinado tipo de negócio, Júlio não sabia nem queria saber qual.

“Também estou suando um pouco…”, ela declarando o óbvio, a testa e o pescoço refletindo certa luminosidade. Pulseiras finas tilintaram de leve em seu antebraço quando, com a mão, levou uns fios de cabelo para trás.

“Aqui a gente só paga as bebidas, não a sauna”, ele não muito convicto do efeito que poderia causar, e não causou.

“Sempre muita gente, não é?”

Júlio estranhou que seus cabelos, repartidos ao meio, descessem só até o pescoço e a nuca, não chegando a tocar os ombros, e assim mesmo caíssem frontalmente qual fossem mais longos do que aparentavam, como se não pertencessem a um mesmo corte, e pudessem prender-se atrás das orelhas. Que coisa observar isso tudo. Foi sem querer. Ela mesma não podia ter mais do que uns dezesseis anos, se tanto, imagine-se, quase dez anos mais jovem do que ele. Por essa época, começava a frequentá-lo a incipiente impressão de estar envelhecendo, afinal vinte e cinco anos não eram mais quinze.

“Quer que eu sopre você também?”

“Se não fizer você de escravo…”, ela aceitando a brincadeira.

“Quem sabe ser escravo não seja tão mau… Não nos fins de semana”, arrependendo-se das últimas palavras, com as quais nem ele sabia propriamente o que pretendia dizer, mas certamente não mais que outra tolice. Passou a soprá-la.

“Ah, que coisa boa…”, ela inclinando um pouco a cabeça. “Ah, como é bom…”, por pouco não choramingando de felicidade.

“Seu nome, qual é?”

“Treze.”

“O quê?”

“Treze.”

“Ah… Sei.”

“Minha mãe era supersticiosa. Acreditava em horóscopos. Mapas astrais. Até em anjos da guarda. Mas já morreu.”

Júlio mal acreditou no que acabava de ouvir. Outra como Bruno, acidentalmente irônica, ou talvez não, enquanto uns fios daqueles cabelos se erguiam, mostrando outros grudados em redor do pescoço e… – quem diria, em meio a uma pequena multidão, aparecer-lhe alguém que não caísse na antiga e sempre atual arenga das superstições, entre as mais difundidas e aceitas com naturalidade pela maioria.

“Sua mãe achava que era um número de sorte?”

“Ou de azar. Ficou sendo meu nome. Aqui, aqui atrás… Ah, que delícia…”

“Talvez ela estivesse pensando em Teresa. Ou, quem sabe, Thérèse.”

“Pois é”, ela agora desinteressada, com cara de que já lhe houvessem dito isso centenas de milhares de vezes. “E o seu, qual é?”

A mesa dela era ligada a outras duas, somando-se ali pelo menos uma dezena de pessoas. Que mais? O calor. O que você faz. Já nos vimos aqui, acho. Quem sabe. Sábados. Nem sempre. Às vezes. Eu também, mas acho que. Eu também.

Assim aconteceu-me Treze, outra de minhas breves esperanças. Outro pequeno sonho. E quantas noites se fiam sem qualquer razão, para que, num momento, mereçamos o que compense termos frequentado, umas vezes com ansiedade, outras com resignação, cada uma delas. Pois a memória do que seja especial permanece, as outras todas somadas se dissipam. Para nosso próprio bem, concluo. Você já pensou nisso?

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

22. Ana, Dulce, Treze, Cátia… – sequência

20. Um segredo, entre outros – anterior

Imagem: Paul Klee. Som antigo. 1925.

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