Office in a Small City por Edward Hopper

De falsas princesas

O mito e sua escultura. Uma flor, uma pedra.
Quase a união mágica de tantos fatores dispersos, entre o instinto e a razão. Quase música.

Ao vê-la esticando-se para o alto, estendendo o corpo, apoiando um pé sobre a cama para alcançar um cabide vertical (Liana é baixa, mas não muito), as pernas tão bonitas bem ao lado do rosto dele, a tensão de uns músculos suaves logo acima dos tornozelos, as coxas praticamente uniformes em sua consistência, pelo que percebe como uma breve impressão, um instante que se dilata, Danilo sente algo poderoso – diferente do que vem sentindo há tempos, quando se força até o fim num ato de masturbação (porque, afinal, já o começou) ou quando apenas percebe o contato físico de outro corpo, o que desperta mesmo ereções, de maneira animal, involuntária, mecânica. Ali, com ela, é diferente. Visíveis, em um conjunto próximo, a cintura de Liana e o que sobe a partir dela: a lateral exata de seu torso, quase de costas – por isso os seios, logo acima, são contornos fora do campo de visão dele. Mas, ainda durante esse mesmo breve gesto de um só movimento, de um melhor ângulo e à altura de seus olhos agradecidos, dispõem-se, em deliciosa diagonal, a saliência quase nua dos quadris e a bunda mal revestida pela discreta e muito justa calcinha branca.

Ele leva a mão à parte de trás dessa coxa, como se a apoiasse, firme. Mas não era isso, Liana não precisa de apoio, ele é que precisa tocá-la. Liana desce ao chão, alguma oscilação nos cabelos. Tudo isso acontece em pouco mais de um segundo, um tique-taque suave, de um relógio especial que já vai parando, desativando o tempo para eles.

“Chega por hoje”, ela respira fundo e sorri, referindo-se ao dia de trabalho. Respira fundo, simpática. Dócil. Cansada.

Ali, é diferente. Aquilo é diferente para ele. Está surpreso consigo mesmo, é isso. Estranha-se, em um rápido momento. Sua salivação intensa, quase afogando-lhe a garganta, foi claramente afetada por essa impressão de distraída beleza, por esse êxtase crescente e imprevisto, que fez despertar, num instante, algo como deparar-se com uma novidade conhecida. Seus olhos paralisam, depois se movem, rápidos, ele tenta identificar de uma só vez, em um só golpe de intuição, o que afinal lhe causou esse sentimento tão intenso e tão bom. Mas é impossível. Não está raciocinando. Está vivendo.

“Você é linda”, ele diz, também dócil.

Sabe que ela não é linda. Mas aconteceu-lhe, nesse minuto atrás, um prazer associando tudo o que mais amou na vida, o encantamento por inúmeras coisas, a ciência tornando alcançáveis os enigmas, a arte refazendo imagens a cada geração de loucos, o reconhecimento, enfim, do belo abstrato tornado real. Recordação de distâncias. Brisa de alfazemas, sonhos eróticos. Jorro de águas claras. O mito e sua escultura. Uma flor, uma pedra. Quase a união mágica de tantos fatores dispersos, entre o instinto e a razão. Quase música.

Na mesma sequência, tendo os pés de volta ao chão, Liana agora dobra um joelho sobre a cama, depois outro – ela é discreta e silenciosa. Prossegue no mesmo movimento, aproxima o rosto, sem beijos, toca a face de Danilo com o queixo, com a orelha, avança até que os pescoços se encontrem lateralmente, apoia a cabeça no ombro dele. Parecem ter pressa em esconder o rosto um do outro, evitando assim alguma troca de olhares desnecessária. Mas ela se solta, se afasta um pouco, com um mínimo sorriso e um suspiro aparentemente de cansaço, não de alívio, porque ainda se disfarçam, tensos. Abraçados agora: como é possível que chegassem até ali?

“Isso, me abraça assim primeiro. São seus olhos…”, ela diz.

Porque, dias atrás, ela mesma se perguntou em voz alta, depois de um beijo lento, mas firme, e ainda afagando os cabelos desse homem também discreto, o que tinha visto nele afinal. E também respondendo a si mesma, sorriso muito tranquilo, escolhendo possibilidades. “Seu rosto, talvez. Seu jeito de falar comigo… (Toca a boca dele com as costas da mão.) Talvez não. Não. São seus olhos.”

Passa uns dedos delicados no contorno dos olhos dele, como se os redesenhasse para si mesma.

“Meus olhos?”, ele ri. E pisca, com cócegas. “Você sabe que eu sou míope. Além disso…”

Não, mas esse é o mesmo erro dela, de nunca se gostar. Aceite um elogio, enfim. Se é o que ela vê, se é assim que ela vê, isso basta. Por que sempre argumentar, por que sempre se justificar? Seus cabelos ficaram lindos, mas não como eu queria, esse vestido em você, mas é muito velho e ultrapassado, foi o que encontrei no armário, gostei muito dos seus sapatos, imagine, não uso há muito tempo, saíram de moda. É uma vida toda por merecer. São momentos e prazeres que precisamos nos dar, que a vida nos deve durante tanto tempo, que devemos aceitar, que devemos merecer.

“O olhar, o jeito de olhar, isso que eu digo, sabe? Seus olhos.”

A penumbra planejada do quarto de motel sempre os torna mais belos. É um truque, claro. Melhor dizendo, um truque claro – de claro e sombra. Mas funciona. Sabemos que é assim, mas aceitamos os sortilégios, como se não os conhecêssemos. O ilusionista, mais uma vez, nos convence. E mais uma vez Danilo enxerga Liana muito nitidamente, agora vendo melhor a sua pele, atraído pelo brilho mínimo de uns brincos, observando todos os componentes de seu rosto agradável e muito próximo, desaparecendo num beijo.

A imagem da garota da loja de fotos que ele, adolescente, amou. Uma noite, recorda isso tudo: ela volta como num cromo plastificado, em cores, em meio à sua loja de vidro. Primeiro, ele a viu de longe, por acaso. Passava por ali, perto da vitrine, ela atendia alguém, e seus cabelos agitavam-se facilmente, conforme movia a cabeça. Isso do movimento dos cabelos era o bastante para fazê-lo parar, deter-se ali mesmo, rever sua vida, que frágil a juventude. (E isso também explicava a quantidade de comerciais envolvendo cabelos. E movimento de cabelos. E a divulgação rotineira de tantos modelos de beleza e ideias preconceituosas.) Na segunda vez, dia seguinte, observou-a melhor e sofreu pelos olhos dela. Claro que a bela não percebia que era observada, ainda que desprotegida por transparências, em um ambiente tão iluminado: ela não via que era vista; que era admirada, fotografada mentalmente, a cada gesto, por esse rapazinho discreto, bem-intencionado, apaixonado, que ronda ao redor. Coragem, só uma semana depois. Entrou na loja, disfarçadamente, tocando, um por um, porta-retratos de gatinhos e noivas, fingindo entender alguma coisa daquela arte, porque se demorava analisando etiquetas de algumas máquinas fotográficas expostas. Ela o atendeu, é lógico, pois ele estava ali, ao balcão, à sua frente, tão disfarçado que se oferecia, pateticamente óbvio. Informa-se (como planejou por muitos dias) sobre uma idiotice qualquer, quanto fica revelar 12 fotos, e 24, e 36? E agora que via essa moça mais de perto, impressionava-se com a pele marcada de espinhas, quase todas esbranquiçadas (por isso não eram vistas a distância) e ressecadas, provavelmente por alguma pomada antiacne. Ela tinha uns olhos lindos, um sorriso estreito e agradável. Mas não, nada a sustentava mais. A pele era o bastante para desmotivá-lo, demovê-lo. Era incapaz de pensar que aquilo podia ser apenas uma fase (e apenas uma face), que aquela jovem poderia ostentar uma pele diferente em alguns anos, não, nem pensar, tanta mulher no mundo… Aos quinze anos, isso configura uma grande frustração, própria a roubar-lhe o sono. Criticava, com habitual e tolo sarcasmo, suas colegas sonhadoras, que idealizavam seus príncipes (por isso, ele concluía, defensivo, é que elas não se interessavam por ele, que era um homem real, na escola), mas não admitia que também fotografava e desenhava mentalmente delicadas princesas por onde ia. Não percebia a si mesmo. Não lhe ocorria que aquela loja de fotos, que aquele estabelecimento comercial à margem do centro, quase suburbano, com hora para abrir e para fechar, com seus tantos balcões e armários transparentes, com suas vitrines superpostas, guardava, em meio a muitos reflexos, sua encantadora princesa de vidro – o lugar funcionando também, à parte dos dias, como um reluzente palácio de cristal. (Mas, claro, não se esquecendo de visualizar os cuidadosos rituais de aplicação diária daquela agourenta pomada antiacne.)

Tão próxima. A pele em detalhes. É bom, por si só, estarem tão próximos. É bom tê-la tão próxima. “Como é bom ter você tão…”, Danilo quase diz. Evita dizer. Soa muito íntimo, estranho e tolo, como se ele estivesse se entregando de uma só vez. Que medo é esse, se não é mais um adolescente? De revelar-se? Pode ser. De entregar o jogo, sem restrições. Mas não precisa mais de princesas de vidro. Hoje essa mulher o conquista, e o atrai, e o retém, e isso lhe basta. Mas pare aí, diga a verdade, não seja injusto: não só ela lhe basta como acaba de tirar-lhe o fôlego. E é a única pessoa, no momento, em quem você pensa com o apoio de palavras bonitas. Nessa noite, ele não pensa que pode haver algo mais, algo além – como pensava todo o tempo quando adolescente. E ela, dividindo o que pode haver de melhor entre uma mulher e um homem, não se parece nada com uma princesa dos desenhos. Por isso, talvez, seja uma princesa de verdade.

Essa mulher madura, trinta e poucos anos, feições definidas, essa boca de lábio superior pouco mais avançado que o inferior, que lhe parece mais bela quando mais próxima, toma sua atenção e seu interesse por completo, justo você, que depois dos quarenta planeja estruturar-se sobre outra escala de valores, sem incluir mulheres, buscando um mínimo de conflitos, portanto… sem incluir mulheres.

“Você consegue parar de me beijar?”, ela ri. E brinca, beijando-o repetidamente, beijos rápidos entre sorrisos e falas mais ou menos previstas.

Gostaria de ter estado tão próximo (apenas isso, tão próximo) de todas as mulheres, meninas, jovens, adultas, que de alguma forma o encantaram no passado, ao longo da vida. Mas uma pretensão dessas nem mesmo em um sonho se satisfaz. Contraria o ciclo natural da vida, acaba perdendo a razão de ser. Nossos desejos aparentemente inocentes são exagerados. Apontam para alguma obsessão, alguma espécie de poder. Imagine, rever todas, possuir todas. São desejos infantis, são sintomas estranhos, ingênuos. Perigosos.

Novo movimento, ela se esquiva, conduz os braços dele, deixa-se abraçar por trás. Ajoelhados na cama, ele não sabe ainda o que fazer, só aceita reter o tempo, por enquanto – esse abraço forte e carinhoso se demora. Ele sente que avança e que ela o aceita ou se rende, ou que simplesmente avançam em harmonia, ou que ela é quem avança e ele é quem se rende.

“Fala…”, ela oferece.

“Não, nada. Pensei que você fosse dizer alguma coisa.”

O que você é, se não pode dizer tudo?

“Não…”, ela sorrindo agora pouco, em abrandar o constrangimento mútuo. “Não quero dizer muita coisa agora, não quero dizer coisa nenhuma agora. Fica assim comigo, só isso. Assim. Me aperta. Fica assim.”

Não é a primeira vez de nenhum dos dois. Mas é a primeira vez de cada um com o outro. E uns breves fantasmas da adolescência sempre passeiam por perto, lembrando-os de que ainda são gente. É a primeira vez juntos, em segredo. Isolados, em uma pausa do tempo, num recanto do espaço. Quase nus, num processo ritualístico que não deve ser lento nem rápido demais. Afinal, é a primeira vez.

 Por que voltava pela mesma rua, no décimo dia, na segunda semana? O que o movia a essa vontade clandestina e persistente? Já não a conhecera, já não a havia descartado de sua vida futura por causa daquela pomada antiacne, prescrita talvez por alguma feiticeira? Eram outras coisas, claro, ele se explicava. Agradava-lhe pensar que todos naquela rua passavam por ele, esbarravam nele, e nem de longe podiam desconfiar de nada, suspeitar, em uma rápida imagem que fosse, de algo sobre o que ele pretendia. Seria o amor? Fácil demais: joga-se uma pedrinha dessas num lago de águas incautas e perdoam-se as próprias estranhices, os próprios gestos mal justificados, resta agora apreciar os círculos na água lamacenta, belos e ampliando sempre mais seu alcance, à vista de todos. Os poetas fazem disso livros inteiros, com longos poemas divididos em partes e dedicatórias emocionadas, tão reveladoras de seus sentimentos gentis, de seus sonhos, de suas obscuras obsessões. Imagine, ficar passando assim pela vitrine para vê-la de novo, como se a possuísse à sua maneira, como se a bela lhe devesse algo. Imagine: rever todas, tocá-las, beijá-las todas. Imagine… São sinais de idealizações desorientadas, de qualquer doença incipiente – que podem originar uma série de versos enfadonhos ou alguma decisão hostil, com a arma devidamente carregada.

“Assim. Me aperta. Fica assim…”

Seus rostos estão unidos lateralmente, mas ele tem a impressão de quase poder vê-la de perfil, como num sonho sem as três dimensões distintas. Ela não: olhos fechados, vive alguma outra impressão, que ele tem receio de interromper.

“O que você quer?”, ele arrisca em voz baixa, carinhoso. Quase com medo.

Liana não se move ao responder-lhe num sussurro, como se houvesse mais alguém ali, perto deles, e ela tivesse que baixar a voz, ainda discreta, mas intranquila, pausada.

“Judia de mim.”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

5. Um título para isto – sequência

3. Dormindo com as bonecas – anterior

Imagem: Pablo Picasso. Mulher ao espelho. 1932.

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Comentários

5 respostas para “De falsas princesas”

  1. Avatar de Adhemar

    Da hora esse texto, mas ainda não li todo, texto grande em…rs

  2. Avatar de ERIVELTON

    E aí Perce? Tudo bom cara!

    Bem agora vou comentar as impressões da minha leitura. O texto, de certa forma, me remete a um sentimento de exploração da intimidade entre um homem e uma mulher que faz com que o sexo seja uma das facetas desse encontro de ambos, que oscila entre a vontade de se mostrar e o receio de se revelar. Embora seja um turbilhão de sensações paradoxais, nem por isso menos em certos momentos únicos de nossas vidas. Sei lá, acho que viajei um pouco! Abraços!

  3. Avatar de Nora Selma B. Macedo
    Nora Selma B. Macedo

    Per, com sua sensibilidade e maestria, você nos conduz por um caminho mágico, onde podemos experimentar um caleidoscópio de sutis emoçoes. E me permita roubar suas palavras: “é quase música” …ahhhhhhhhh!!!!

    Beijão Per!

  4. Avatar de Erika Luiza
    Erika Luiza

    Parabéns! Excelente texto. Você consegue revelar o inefável da vida em tua ficção, isso não é pouco!!
    Beijo, Perê.
    E.

  5. Avatar de Jady Alves

    Que gostoso te ler Perce, a gente viaja contigo por entre as linhas dessas tuas inspirações…
    Gosto disso…
    Beijo terno, Jady

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