Office in a Small City por Edward Hopper

Arca com retratos do pai. Parte 2

A mudança. A casa de onde saíram mortos seus pais. O relógio da sala, última peça a ser transportada.
Ele se detém diante do pêndulo. E finalmente chora.

Para muitos, a infância é principalmente uma fase de traquinagens. Não para mim. Eu me lembro. Tudo em mim fica retido, antes de tudo. E fere ou fascina. O odor característico do papel plastificado, a tinta de impressão que até hoje reencontro em certos periódicos – eu começava a aprender dos textos, ao decifrá-los. O fascículo ilustrado com animais do Cretáceo, que ele me compra, em uma banca de esquina – eu começava também a aprender do tempo, com os dinossauros.

Vaga-lumes e o portão de grade do cemitério. Ali em frente, esperamos o ônibus. Tenho medo da noite lá dentro, mas não consigo evitar que meus olhos se aprofundem perigosamente naquela paisagem secreta. Só a penumbra mais próxima permite ver uns anjos macabros, santos sem cabeça, lápides trincadas de sepulturas há muito esquecidas. Também tenho medo de perguntar, pois adivinho o que há de sombra na mudez das perguntas que não me atrevo a conceber. Desejo saber mais sobre essa cidade à parte, a fortaleza de silêncio onde talvez habitem outros como nós, de uma maneira sinistra, e onde os vaga-lumes são a única luz – mas desvio-me a perguntar apenas sobre estes.

“Toda noite o Curupira acende uma luzinha verde, que é para proteger os bichos da floresta. É dela que os vaga-lumes roubam sua luz.”

Vejo a floresta escura, os vaga-lumes. Sonho que Deus é um anão como o Curupira, zelando por uma tênue lâmpada verde, no fundo de um abismo.

Já tenho incutida a ideia de Deus quando, certa noite, ele me leva com a lanterna a ver um inseto que se debate na teia instalada entre os ramos: uma criatura minúscula, indefesa, clara como se um véu a envolvesse. A aranha aproxima-se sem pressa. A vítima reage à luz intensa da lanterna, agita-se, como implorando por socorro. Meu gesto de salvá-la é interrompido.

“Não devemos interferir. É a obra do Criador.”

O poderoso aracnídeo alcança sua presa. Pica-lhe o abdome. Passa a mumificá-la, em sua habilidade gosmenta.

“Ele não morre agora. Vai ser devorado aos poucos. É a vida, a natureza. A vontade de Deus.”

Para o inseto, somos a única luz – a esperança de ser salvo como por um deus de dimensões que não alcança. Mas nós o deixamos ali, por conta de sua insignificância. Desligamos a lanterna. Voltamos.

A queimada de cana. A temporada das saúvas. Alguma notícia de seu pai entre a neblina e o sépia do que reencontro.

“Pepo vai fazer cinco anos, pai. Já sabe ler, agora quer escrever.”

“Deus o abençoe!”, alegra-se sua mãe, e me abraça em seguida, como se isso fosse uma realização dela. “Tão bom, tão carinhoso… Há de ser um bom cristão, no caminho reto da fé!”

“Quê!”, afasta seu pai, erguendo-me do chão como costumava fazer. “Este menino aqui é inteligente demais para ser cristão! Vai ser escritor. Hein, Pepo? E escrever a história da nossa família.”

Com cinco anos, seguro sua mão para atravessar a rua quando ele me revela, à espera do sinal dos pedestres, que vamos à casa de seu pai porque ele morreu. O tráfego flui ruidoso. A larga avenida torna mais amplo o dia de sol, a manhã de maio. Algo distorce, a distância, a ideia de perspectiva exata que me inspira a avenida. Algo começa a bifurcar-se para mim. Aperto os olhos contra a claridade do dia, esperando que me leve a atravessar a faixa. Seu pai está morto. Volto-me sem outro sentimento, apenas curioso: “E agora?”.

A mudança. A casa de onde saíram mortos seus pais. O relógio da sala, última peça a ser transportada. Ele se detém diante do pêndulo. E finalmente chora.

As crianças choramingavam, pediam aos pais que as levassem para aqui e ali. Eu não queria. Ele me prometia o circo italiano, a exposição dos dinossauros, nada me seduzia. Não queria. Não queria ir a parte alguma.

Ele se detém, diz que não passa dali. A estrada se bifurca. O vento nos lembra que tudo continua.

À parte alguma tendência solitária, sempre houve em mim uma obscura força de renúncia. Adulto, passei a ignorar propostas que moviam os mais práticos, os ambiciosos, os iludidos. Os de curta visão. Os que se sentiam e se propunham eternos. Não me interessavam a profissionalização, a prosperidade ou a ascensão social. Eu já havia descoberto e constatado que a vida não era tão longa nem tão importante, não como a queriam os homens. Por me faltarem as palavras, eu não poderia ter-lhe dito isso, quando pequeno. Por sorte. Não gostaria de ter-lhe dito isso nunca.

Pede que eu vá, não há por que ficar. A estrada se bifurca. Ele fica, como ficaram seus pais, seus avós. Como ficaram todos.

As infâncias não se parecem, como pregam os comodistas e os maus poetas. Nem as pessoas. Os homens proclamam conquistas de seu tempo, cantam as vantagens da modernidade, antes de passarem, por sua vez, ao esquecimento. Não eu. Como se sempre eu soubesse que iria tudo diluir-se. Que tudo tornaria à própria ordem de silêncio que nutre os grandes ciclos, as regras do jogo, o próprio jogo. Minha infância e a de meu pai não existem. O futuro toma forma na pessoa de crianças que ainda não se supõem possíveis, mas para quem o passado das famílias perderá naturalmente qualquer significado.

A estrada se bifurca. Não nos despedimos. Não sorrimos. Não nos lamentamos. Assim deve ser.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

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Imagem: Walt Disney Productions. Fantasia. 1940.

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