Office in a Small City por Edward Hopper

Um único tiro

Ela vai cercá-lo sem tréguas enquanto a coisa toda não for esclarecida.
Ela pensa que você matou Ana Lúcia, é óbvio. Bem… Não tão óbvio, mas…

“É, eu estava com ela, já disse”, pegando o nariz de Liana, rindo. “Eu não disse não, menina?” Beijos na orelha e no pescoço dela, a mesma estratégia adolescente de tentar neutralizar a companheira, fazendo-a arrepiar-se num frêmito de desejo, uma palavra, uma expressão que ele adora imaginar enquanto isso acontece de fato. Fssss… – um frêmito de desejo.

Ela não se arrepia.

“Não disse não. Você me enganou… Para com isso, me dá um tempo. Nossa, acabou de me pegar de quatro, com essa vontade toda, não está cansado não?”

Danilo desiste, com um suspiro. “Estou sim.”

Somos tão carinhosos, ele pensa, por toda parte, cumprimentamos nossas colegas com beijinhos no rosto, às vezes bem abaixo da orelha mesmo, às vezes no cantinho da boca quando elas se mostram, discretamente fingidas, dispostas a isso, que quando estamos com uma mulher nua temos que oferecer algo mais, sempre algo mais.

“Já gelou o vinho, será?”, Liana apontando um movimento de cabeça em direção ao frigobar.

“Não, claro que não, você pôs lá faz só dez minutos. Não. Precisa ficar mais.”

“Vou pegar uma água, quer?”

“Por que não trouxe água de casa também? Quanto mais a gente economizar, mais vezes vamos poder voltar aqui. Ou até conhecer um motel melhorzinho.”

“Este motel é ótimo, vai. Não precisamos mais do que isso. E para de falar besteira. Economizar água, imagine…”

“Não entende uma brincadeira, deixa.”

“Deixa, deixa mesmo, o caso é o seguinte. Agora eu estou mais curiosa ainda sobre essa história da Ana Lúcia. Depois dessas suas mentirinhas todas, me atiçou de vez. E essas brincadeiras suas só servem para distrair, não têm graça nenhuma, mas é claro que você já percebeu isso.”

Ele agora quieto, antebraço atravessando os dois olhos, como se os estivesse protegendo do sol. Rendido. Tudo bem, conte logo. Ela vai cercá-lo sem tréguas enquanto a coisa toda não for esclarecida. Ela pensa que você matou a Ana Lúcia, é óbvio. É evidente. Bem, bem… Não tão evidente, mas… Parece ser esse o caminho do pensamento dela, agora contaminado de suspeitas, carregado de sinais que se associam, se justificam e se anulam. Justo você, que não tem paciência para tramas policiais e não se interessa mais por jogar xadrez. Justo você, justo isso. Diga alguma coisa a ela, pergunte alguma coisa, quem sabe afasta essa chateação toda por algum tempo.

“Como foi no trabalho hoje?”

Fácil. Simples.

“No trabalho? Ah… Aquela coisa de sempre. Um cliente processando o ex-patrão; uma divorciada negociando a guarda da filha… Toma, quer ou não?”

“Quero”, pega o copo d’água.

Liana se senta na cama, ao lado dele, que permanece deitado, cabeça meio entortada entre dois travesseiros.

“Você estava com ela. E aí? Você viu o que ela fez? E… ahn… como foi?”

“Tenho certeza que já contei, mas tudo bem: eu estava com ela sim, no dia do crime, no dia do… do…”

“Danilo… Por que não me conta? Olha pra mim. Qual é o problema?”

“Sério, não tem problema. Estou olhando, não está vendo? É, eu estava com ela. Por causa disso, tive que ficar uns dias dando depoimentos e tudo o mais. Só isso. Foi horrível. Horrível ter acontecido assim. Horrível eu estar lá, no meio de uma coisa dessas. Mas ficou comprovado que eu não tinha culpa de nada, é claro – e ainda bem. Ela surpreendeu a todos nós. Eu não esperava aquilo de jeito nenhum, não mesmo. Até hoje me lembro do som do tiro, um único tiro. Ensurdecedor, assustador. Horrível!”

“Não fica assim… Não fica assim não. Vem cá, olha. Isso já passou.”

“Assim como? Ah! É que espirrou uma gota de água bem aqui, olha… Pronto. Pronto?”

“Não sei”, olhando o ponto úmido no rosto dele, ao lado do nariz. “Pronto?”, um arrepio de irritação.

“É, você tem razão de ficar assim. Eu menti um pouco, é verdade. Mas não tudo. Não queria que você ficasse pensando nada errado de mim, você entende, não é?”

“Eu não estou pensando nada de errado, amor, não estou desconfiada de você, sério. Só que isso me surpreendeu. Você vinha contando tudo de um jeito e agora…”

“Quer mais água? Eu pego.”

“Não, agora não. Agora me diz. Você… viu tudo? Como foi?”

“Não, não vi. Eu tinha ido ao banheiro, a porta estava aberta. Mas o banheiro era na lateral do quarto, não dava pra ver nada de lá. Não era como este aqui, envidraçado, todo bem planejado, pra gente ver você tomando banho, peladinha…”

Tapa no ombro dele.

“Não estou a fim de graça agora. Ah, me conta. Agora isso, em primeiro lugar.”

Danilo se rende, desiste das piadinhas.

“Era um hotelzinho barato, já disse. Impressão minha ou não, pareceu que o prédio todo tremeu com o trovão do tiro. Rápido demais, barulhento demais. Assustador.”

“É mesmo. É assim mesmo, eu sei.”

“Você já ouviu um tiro de verdade?”

“Já. Mais de uma vez.”

“Quando?”

“Uma vez, quando fiquei no meio de um assalto e… Não, não, espera aí, não vamos desviar do assunto, nem vem!”

Certo, certo, vamos lá. Desista disso, ela não é boba, você sabe. Essas tentativas tortuosas são inúteis. Balas perdidas não se prestarão a substituir a ansiedade dela por conhecer mais de perto o fim dramático de Ana Lúcia – com um único, desastroso tiro.

“Eu nem sabia o que pensar de imediato. Fiquei completamente atordoado. Parecia um animal assustado. Quase hipnotizado. Imóvel. Mas claro que, no instante seguinte, voltei ao quarto. Tinha que voltar. E ela estava ali, deitada. Só isso. Uma perna pra fora da cama. A arma não estava na mão dela. Vi depois que estava no chão. E… muito sangue. Pouco se via da cor original da camiseta dela.”

“Tadinha. Que horrível.”

“E eu pensava que tudo aquilo tinha acontecido por causa da confusão de sentimentos dela, pelo menos era o que eu podia pensar, sem saber mais do que isso. Lembra quando te falei que a Ana Lúcia considerava os sentimentos como uma imperfeição, um defeito nosso? Lembra?”

“Hum… Lembro.”

“Eu perguntei a ela uma vez se ela acreditava em Deus, em alguma coisa.”

“E ela?”

“Devolveu a pergunta. Perguntou o que eu achava. Se achava possível um ser tão poderoso não se importar com a felicidade humana. E permitir tanta desgraça na Terra.”

“Uau…”, Liana de rosto imóvel, sem levantar a voz. “Essa menina, hein?”

“Enfim, ela perguntou o que eu achava que Deus era, se era uma fumacinha azulada entre as galáxias ou um vasto imperador invisível. Ela não usou propriamente essas palavras, mas era algo assim. Eu lembro que disse a ela uma coisa que pensei muitas vezes depois: que Deus talvez fosse todos os nossos sentimentos juntos, por isso era tão confuso e absurdo. Ela me olhou, boca fechada a ponto de sorrir. Ou rir. O máximo de nossos sentimentos, eu enfatizei. Como se quisesse convencer a mim mesmo, em primeiro lugar. Nossos sentimentos. Todos os nossos sentimentos. Ao máximo. Ela começou uma risadinha, ahah…, meio indecisa. Os olhos dela agitavam-se de um lado a outro, dentro da órbita, e o rosto imóvel, fixado em mim. Acho que ela não sabia se iria me ofender ou se poderia rir de uma vez, declaradamente, das minhas definições, eu sei, pouco, pouquíssimo convincentes.”

“O que ela fez?”

“Deixou correr: ahahahah… Depois, aos poucos, se interrompendo, ahah… ahahah… Mas não porque se preocupasse em pensar seriamente nisso. É que estava cansada de rir. Estava perdendo a graça. A piada se desgastando. Deus se extinguindo. O riso se esgotando.”

“Puxa…”, com pena.

“Ela falava rápido em certas situações. Mesmo quando tentava ser calma. Eu lhe dizia: ‘Você fala rápido, não é? Mesmo quando tenta ser calma.’. Assim. E ela dizia: ‘Falo rápido mesmo, mudo de ideia rápido, entendeu?’. Às vezes ela parecia se interromper, sem motivo aparente. Mas não, não era isso. Era o seu jeito de não dizer tudo até o fim. Alguma coisa bastava, era o jeito dela de encerrar uma fala, uma frase. E era assim, me confessava isso assim: ‘Eu falo rápido. Tenho ideias enquanto estou falando, mudo de ideia. Depois não lembro direito o que pensei.’. Então, eu via que ela parecia cansada. Não sei como descrever. Cansada, talvez, de nunca chegar a alguma coisa clara, conclusiva. Talvez. Não sei.”

“Tadinha…”

“Quando ela chegava a esse ponto, uma espécie de cansaço atravessava a beleza dela, às vezes. Alguma coisa, aos poucos, ia… se esgotando nela.”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

25. Invisíveis no intervalo – sequência

 23. A foto deles do Beatles – anterior

Imagem: Iberê Camargo. Carretéis. 1978.

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