Office in a Small City por Edward Hopper

Uma das mil noites

No motel, o tempo para.
Mas nossa ansiedade não.

“Assim. Me aperta. Fica assim…”
Seus rostos estão unidos lateralmente, mas ele tem a impressão de quase poder vê-la de perfil, como num sonho sem as três dimensões distintas. Ela não: olhos fechados, vive alguma outra impressão, que ele tem receio de interromper.
“O que você quer?”, ele arrisca em voz baixa, carinhoso. Quase com medo.
Liana não se move ao responder-lhe num sussurro, como se houvesse mais alguém ali, perto deles, e ela tivesse que baixar a voz, ainda discreta, mas intranquila, pausada:
“Judia de mim.”

(O texto a seguir é a continuação do fragmento De falsas princesas, final transcrito acima.)

Você quer…? Você disse: judia…?”

“É, é isso. É uma maneira de falar, só. Sabe… Assim: me mata. Você me mata…”

“Ahn… Sei.”

Não, de verdade não é isso. Temos instintos. Temos desejos atávicos, que conservamos desconhecidos se não os assumimos, se não os despertamos, se algo ou alguém não os desperta em nós. É isso mesmo que ela quer: que ele encontre um meio de subjugá-la. Não propriamente sofrer agressões, mas sentir-se conduzida, pressionada, submetida, enfim, dominada. Judia de mim ressoa na memória dele. No mesmo tom, como se Liana o estivesse dizendo agora, como se ele a estivesse ouvindo agora, outra vez sim. Mas nem é preciso: isso já se fixou no inconsciente consciente dele, propenso a arquivar encantamentos, especialmente quando soprados por uma dessas sutis feiticeiras que uma vez ou outra lhe atravessam a vida. Ele só não sabe ainda que Liana irá permanecer.

É mais fácil nesse silêncio, o quarto bem isolado, aos fundos, um motel que lhes proporciona justamente o necessário para que desenvolvam em segredo essa sequência de amenidades pulsando sem controle. Ainda parecem estar sonhando. Envolvidos por algo que inspira segurança – uma impressão que eles assimilam, estranhamente, ignorando sua origem e o que de fato a sustenta. Luz com intensidade reduzida, escapando suave por todas as porções do ambiente, gerando sombras macias, e tornando melhores os atores em cena, esses que não vivem ainda uma espontaneidade mais próxima da plenitude. (Vendo-se de outra maneira, as sombras é que parecem harmonizar-se por todo o espaço, entre pequenos balcões e degraus de alvenaria.) Cama larga, com almofadas extras. Carpete no chão e nas paredes, como se tudo aí fosse confortável e desenhado para acalmar os sentidos, começando pela visão. Parte de uma dessas paredes reveste-se com recortes ornamentais de espelhos, insinuando lascas e imagens fragmentadas, nos quais Danilo se vê por um instante, abraçando-se a ela por trás, ajoelhados na cama, enquanto Liana finge não se interessar – mas parece procurar-se também, nos espelhos, entre uma e outra centelha imperceptível.

“Ai, me aperta assim… Mais forte.”

E o ar, de pouca circulação, retém, como em suspenso, cheiros e aromas característicos de cada um deles.

“Como você me aperta… Eu não quero mais sair daqui, sabia? Quero ficar assim pra sempre, sabia? Como a gente faz?”

Presa. Caçada. Quantas amenidades e sutilezas foram necessárias, entre os dias de trabalho e as horas livres, para que enfim ele a possuísse com a força desse abraço erótico.

“Não quero mais sair daqui”, ela repete, feliz.

Mas sai. Em outro momento, sob o peso do corpo dele, Liana sorri com alguma malícia antes de propor:

“Brinca de me pegar. Eu vou tentar fugir. Você não pode deixar. Vai…”

Ela gira a cabeça para os dois lados (e os cabelos se agitam, desorientados, confundindo o parceiro), torce as pernas, resvala sob a falta de jeito dele, que apenas lhe segura os pulsos, não conseguindo evitar que ela toda se solte, rindo, meio caída à sua frente. No movimento seguinte, escapam-lhe também os pulsos, deslizando sob o suor das mãos, e assim ela lhe escapa toda, facilmente. Mas, ao afastar-se de lado, engatinhando sobre os lençóis, a mão dele alcança-lhe subitamente um tornozelo, agora sim prendendo-a firme, agora sua força é outra, e ela perde o equilíbrio, cai da cama.

“Ah, me desculpa!”, as duas mãos à frente da boca, como se rezasse.

“Au! Minha perna…”, ela ri, disfarçando alguma torção incômoda, gemendo um pouco e rolando, só de calcinha, sobre o carpete felpudo.

“Me desculpa… Puxa, que… O que foi, onde…?”

“Não, nada. Só o susto. Uau: você me prendeu mesmo!”, sorrindo gratificada. “Aaau…”

Agora a força dele é outra, a brincadeira parece séria. Tentam se divertir e ainda assim continuam nervosos. (Diferente de um novo encontro, semana seguinte, em que ela terá a feliz lembrança de levar uma garrafa de vinho branco, o que mudará tudo. Claro, para melhor.)

“Doendo ainda?”

“Não, tudo bem”, massageando-se a perna.

Não é possível perceber se ela sente mesmo alguma dor ou de que intensidade. De qualquer maneira, talvez Liana resista mais do que o normal a algum incômodo só para não prejudicar o resto da noite. Ele não saberá.

“Deixa, não foi nada. Vem cá…”

Ela se recupera rápido, pelo jeito. E o prende num beijo, respira mais cansada por causa dessa agitação toda, e esses beijos acabam em inalações profundas, como se ela estivesse se afogando e voltando à superfície.

Por uma rodovia que sai ao sul, plana e poucas curvas, atravessando verdes e cortando ao meio margens de pedra de certa forma imponentes, que vão se reduzindo a plataformas baixas, diminuem de tamanho e tornam a crescer de maneira irregular, desfazendo-se, para outra vez dar vista aos verdes variados, chega-se ao motel. Ainda na cidade, mas fora das áreas urbanizadas, uns poucos metros de estrada lateral, perpendicular, entrando entre eucaliptos que escondem o automóvel, e já estamos bem perto. (Um dos pontos demarcatórios do percurso é a visão de um riozinho com corredeiras, que parecem inadequadas à calma do lugar, aparentemente rugindo sem trégua.) Ao longe, a linha azul-acinzentada de umas montanhas que ele não sabe dizer a que cidade pertencem. Mão dela sobre a dele, no câmbio, enquanto muda marchas, reduz velocidades: decidida e ansiosa. Indicado por um colega de Danilo, o motel passou a ser o refúgio com Liana, que também se encantou com o lugar.

Sempre um arrepio de alívio ao trancar a porta por dentro. Liana pouco à frente, e ele gosta de ver como ela vai se ambientando, dispersando seus passos por ali. Procura onde colocar a bolsa. Observa toda a suíte, como da primeira vez, quando deixara essa mesma bolsa de ombro sobre um grande degrau de alvenaria.

“E então?”

“Tudo que a gente precisa. Me sinto em casa.” Liana sorri e o abraça com força, quase se pendurando nele, faltando pouco para soltar os pés do chão, como num clichê de filmes dos anos 1950.

Mas que safada. Como pode dizer isso?

“Eu também”, Danilo anuncia, abraço forte trazendo-a toda a seu domínio, uma das mãos descendo a apertar-lhe a bundinha sob a saia.

“Quer tentar fugir outra vez?”, ele, desafiador, como se tivesse feito uma grande coisa, minutos atrás.

“Não”, ela sorrindo, avaliando a ingenuidade dele. “Quero ficar presa agora. Bem presa.”

Mas ele já está se aborrecendo, com tantos abraços. Afasta-a, com jeito, isto agora é bem melhor: vê-la nua, a dois palmos de distância.

“Não, mas primeiro… Deixa eu ver você, assim”, pegando-lhe os dois seios, com carinho. “Que lindos.”

“São pequenos”, ela sorri, modesta e consciente.

Sim, são pequenos. Mas por que sempre se defender? Ele gosta assim. Se ela soubesse que ele de fato gosta de seios como esses, mas não, ela não acreditaria, pensando, é claro, que Danilo lhe diz isso para não desagradá-la.

“Que lindos…”, repete, maravilhado.

Ela quase se repete também, como se precisasse sempre de uma justificativa ante um elogio, enquanto aprecia o toque das mãos dele, assistindo a cada variação de seus gestos. Ele agora pega-lhe os peitinhos entre os dedos, mais perto da órbita dos mamilos, torna a segurá-los por inteiro, acariciando-os como pode, tentando não apertá-los de uma vez, que é o que mais deseja no momento.

“Parece uma menina”, encantado ainda com os seios dela, mas não propriamente: é porque ela fecha os olhos, como envergonhada do próprio corpo, enquanto se permite ser avaliada.

“Me sinto uma menina”, ela diz mansamente, sem ironias e sem abrir os olhos. “Agora, assim. Com você.”

Descendo as mãos pela cintura dela, passando pelos quadris, faz que um dos dedos entre pela alça lateral da calcinha, soltando-a da pele, seria hora de tirá-la? Talvez não. Os ritos têm que se estender um pouco mais, não vamos acabar com tudo de uma só vez, certo? O fato de ela ainda usar a calcinha semitransparente, na prática um péssimo disfarce de sua nudez já tão visível, significa que ela pretende preservar algum tempo mais entre caprichos e carícias. Certo, ela tem razão. Esses rituais têm seu próprio tempo. Melhor assim. Como dizem por aí: “O que é certo, é certo!”, coisa que Danilo nunca entendeu muito bem, um item que está classificado em sua coleção de frases enigmáticas, mas que lhe vem à memória em um momento assim, como algo devidamente consagrado, engraçado e saboroso.

“E essa calcinha linda?”, deslizando um dedo por dentro do elástico, mas principalmente, tediosamente, por não ter mais o que dizer.

“Gostou? Faz tempo que…” Não, ela não vai continuar a frase, não vai. Liana abre os olhos, traz o rosto dele para outro longo beijo, uma maneira de dizer que não se sente à vontade sendo observada, pelo menos não sob aquele nível de fascínio. De qualquer forma, as mãos dele tornam a descer por sua cintura. Ela se vira de lado, volta-se, gira para o outro lado, entre movimentos tranquilos, como se o simples toque da mão dele acionasse um controle, bastando tocá-la para que se torcesse para um lado e outro, como se o seu corpo soubesse o que fazer, antes que ela própria se decidisse.

“Como é linda…”

“Não sou não… Ah, assim, meu ombro… Me beija aqui… Faz o que você quiser. Fica sempre perto de mim.”

(Mais tarde, ele contaria a um amigo: “Era impressionante. Ela se virava e se contorcia como se lesse os meus pensamentos. Como se só tocando a pele dela eu passasse uma mensagem, a posição que eu desejava, alguma coisa assim…”. O amigo, admirado, enquanto sorria e traçava outro gole de cerveja: “Olha, velho, uma mulher dessas… Você é um cara de sorte, viu?”. Não, não era. Tratava-se de uma chance preciosa, singular, daí porque marcava intenso sua memória e suas impressões. Nem mesmo tinha tanta sorte quanto esse seu amigo confessor, de quem sabia casos e aventuras mais frequentes e mais diversificadas, descontando-se aí alguma parcela de exagero e de mentiras masculinas habituais e previstas. “Como ela pode saber o que eu quero? Já pensou? Que coisa… É uma sintonia perfeita. Será que é isso que chamam de milagre?” O amigo começou a rir. Quase cuspiu a cerveja.)

Disfarçadamente, Danilo decide testá-la: pousa a mão na lateral de um dos quadris: ela se vira de bruços. Torna a tocar-lhe as costas perto do ombro; ela se volta, de lado, se contorce. Dança, de algum modo. Basta tocá-la. Gostou de vê-la de bruços. Vamos de novo. Funciona. É um código de sinais, subentendido. Que bom.

“E essa calcinha linda?”, ele repete, sem imaginação.

“Não sei”, ela brinca, voz abafada, como se tivesse enfiado todo o rosto no travesseiro. Enquanto ela não o vê, ele se livra da cueca, solta sua ereção, por sorte num gesto ágil, sem problemas – dá tudo certo, e é claro que ela percebe o que ele fez, mesmo não tendo visto.

“Não sabe, é?”

Mas agora ele passa a tirar-lhe a calcinha, descendo-a por trás, descobrindo a bundinha dela com dois movimentos, um pouco para lá, um pouco para cá, então passando pelas coxas, as pernas que se dobram, uma e outra, tudo lembra uma dança, pés enrijecendo-se numa linha reta, facilitando tudo. Carinhos e agrados sobre sua nudez exposta, ela apenas espera e se permite, ele agora não diz nada a não ser uns assim, assim… – repetidos e chatos. Finge massagear as costas dela, sobe e desce, apenas para não ser direto demais, finge não distinguir entre as costas e o resto, mas ele se delicia mesmo é apalpando com a mão cheia cada parte do traseirinho consistente dela.

“Assim… Assim…”, ele murmura, paternal, como se pretendesse acalmá-la, o que era claramente desnecessário – além de desaconselhável.

Dessa vez, ele não a toca especialmente, mas ela se volta, o corpo automático, porque percebe que ele não vai parar nunca com aquilo. Danilo nem percebe com que gestos Liana o conduz, e já está em cima dela, completamente. Está sentindo os próprios quadris sobre as pernas dela, gostosamente. Está massageando suas virilhas nas virilhas dela, sensivelmente. Está percebendo o calor e a tensão do que mais vive nele agora, agressivamente. Está percebendo o calor e a lubrificação do que mais vive nela agora, plenamente. Sente-se entrando firme, mas devagar, parcialmente. Sente-se entrando por inteiro, ainda devagar, concentradamente.

“Assim…?”

“Assim…”

Estão unidos. Prazerosamente.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

7. Eu, datilógrafo – sequência

5. Um título para isto – anterior

 Imagem: Gustav Klimt. Serpentes aquáticas II. 1907.

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Comentários

5 respostas para “Uma das mil noites”

  1. Avatar de Nora Selma B. Macedo
    Nora Selma B. Macedo

    A sensibilidade e a beleza que permeia a descrição desse “encontro” é tamanha que nos conduz a um nível consciencial de verdade e de plenitude.
    Per, parabensssss!!!!!!
    Bjão

  2. Avatar de Cleber

    Para mim, é o seu jeito de escrever de sempre, com a preocupação em usar as palvaras de maneira inteligente. E não apenas isso, claro, mas é o modo, a inspiração diferenciada e a forma, que dá qualidade e a diferença.
    Abraço

  3. Avatar de

    Boa Pere como o texto muito envolvente parabens, otima semana abraços.

  4. Avatar de

    Que saudade eu estava de ler você…….bjs

  5. Avatar de Djanira Luz

    Lindo e envolvente seu texto. Reflete toda delicadeza do momento a dois na plena intimidade dos seres. Um texto sensual sem qualquer apelo vulgar. Beijoquinhas de dias alegres na semana! rs

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