Office in a Small City por Edward Hopper

O circular retorna a seu infinito

De que é feita essa realidade?
Manhã, luz de meus dias: que rosto é o meu? Que nitidez é esta?
 

O motorista me diz que não, que não vai para a Glória. Avenida da Saudade: passa pela Saudade?

“Só um pouco. Depois, vira de novo.”

Movimento de saída, variação das marchas. As mesmas oscilações regem todos os passageiros. Servem-me as barras horizontais enquanto percorro o interior quase vazio. Uma vez aqui, a mais cotidiana intuição torna previsíveis as ciladas da inércia e assim orienta-me os passos.

Na curva do largo, vê-se o que restou dos trilhos que um dia guiaram o bonde metropolitano, parte de duas barras fósseis emergindo do asfalto derretido e não restaurado, como em função de lembrar-nos a todos que aquilo, um dia, de fato existiu. Os trilhos ainda estão lá, sob o asfalto. Mas não existem. Os bondes talvez estejam preservados em algum museu. Os passageiros… As manhãs como a minha e as tardes mornas, cheias de compromissos, daquele tempo… O que sou, o que somos hoje: passageiros de outras mesmas manhãs, quando um ônibus-célula percorre a linfa de uma realidade intensa, nítida e quase palpável. De que é feita essa realidade? Manhã, luz de meus dias: que rosto é o meu? Que nitidez é esta?

Sei que poderia subir ao circular de hoje, sem que isso me movesse às palavras. E passar como todos, como tudo, como eu próprio fora do que conto. Ao registrar o ônibus de meus dias, o que me ocorre é estar resgatando o avulso sem remissão de todas as vidas. Talvez contribuindo para distanciá-lo ainda mais, no sépia sem cor do passado, sim, cada vez mais, tornando-o, como os bondes de ontem, ausência. Poderia simplesmente estar aqui: subir, descer, esquecer. Mas o fato é que o mundo me encanta. E ninguém toma um ônibus como eu.

O mulato de roupas encardidas parece pobre. Em outro assento, um homem de terno e valise também me parece pobre. Todos me parecem pobres. Alguém lê um jornal, o que é estranho: não se pode conceber um fato novo, algo que já não tenha ocorrido. Até os eventos que se supõem históricos mendigam sua chance de surpresa, já que não transcendem sua própria muralha de repetição. Por fim, ali está ela: de pé, junto à barra vertical, em um agradável conjunto de verão, a que servirá a distrair-me os olhos durante o percurso. Distrair-me, não mais. Ela não tem nome. É a mesma por muitos séculos.

De resto, não convém descrever pessoas. Basta lembrar que existem. A sugestão, por si só, faz-se mais rica e mais clara que a precisão de retratos possíveis. Que mais? O futuro. Haverá um tempo, sem nada parecido com bondes e ônibus, em que outro cidadão não poderá repetir minha experiência?

Enquanto viajo, vejo que o ônibus volta à mesma avenida, torna a contornar o largo e tudo outra vez por onde já passamos. Círculos, ciclos. Quero gritar para que desçam todos, algo me parece incomodamente errado, mas não. Sinto que não posso. O estranho fenômeno que nos limita em relação uns aos outros, distorcendo-nos as verdadeiras atitudes, impede-me principalmente mais esse lapso de liberdade. Faço sinal ao motorista e salto na próxima parada, bem antes de meu destino.

Na esquina, apoio-me em um poste. Sinto que tudo gira e se repete em minha memória. Perturba-me a indiferença alheia, pois sofro de acessos repentinos, quando me surpreendo apaixonado pela vida. Por isso, todos os ciclos que se interpõem entre o nascimento e a morte não me bastam. Ao contrário: a impossibilidade de constatar alternativas causa-me vertigens. Sinto-me agredido pelos sinais de uma revelação fulminante que faz de mim seu primeiro homem, ainda que cotidiano e esquecido. Compreendo que já não vale a pena tomar ônibus nem ir a parte alguma. Não, nem há mais metáforas sutis. Chegou o dia em que finalmente nos reconhecemos perante o vasto espaço-tempo. A literatura está esgotada, daí meu relato linear. Tudo o que existe é nada mais que a projeção transitória de uma fase ínfima à sombra dos eventos imensuráveis. E eu me encontro diante do que de fato está hoje acontecendo: a maior parte do tempo já transcorreu. A História está chegando ao fim. O universo começa a nos cercar e a nos tragar, em nossa insignificância, complexidade e misticismo vãos.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

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Imagem: Tomie Ohtake. Sem título.

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