Office in a Small City por Edward Hopper

Os jovens peregrinos e o profeta

Permanecemos atentos às nuvens, no fundo esperando que de fato ocorresse algo diferente e devastador: a chuva.
Fez uma noite abafada, opressiva, seca e sem vento.

A calma do campo era relaxante, mas não afugentava o tédio. Só à noite, uns grupos ruidosos apresentavam-se no palco. Durante o dia, não tínhamos porcaria nenhuma para fazer, por isso percorríamos os arredores do acampamento em caminhadas intermináveis, comentando as características do lugar e, pior, concordando em tudo. (“Cheiro do campo, né?” “É…” “Essa energia toda, não é mesmo?” “É…” “Olha só, daqui dá até pra ver o outro vale. Incrível!” “É…”) Geralmente, batia a fome quando nos encontrávamos bem longe das barracas, sobrando a todos memoráveis jornadas de volta, com o estômago à mão.

À tarde, excitados com uma súbita lembrança de Cândido, fomos correndo ao rio ver as pessoas nuas a se banharem junto à margem – mas todos ali usavam tangas, biquínis, maiôs, sungas e calções. Ficamos vadiando com gravetos na mão, arranhando troncos, derrubando folhas ou desenhando na superfície quando alcançávamos alguma água, assim mais uma vez confirmando o que, no fundo, nos recusávamos a admitir: que as coisas, de uma maneira ou de outra, como em todos os caminhos do mundo, começam uma aventura, terminam uma rotina.

Num desses infinitos passeios, encontramos um homem de barba grisalha, cabelos longos e difíceis, presos por um elástico estampado cujos motivos não podíamos distinguir – os motivos que enfeitavam o tal elástico, entenda-se, de estreito que era. Ele comentou, com notável minúcia e vocabulário esmerado, a posição e a forma das nuvens, a direção do vento, e assegurou que tais características climáticas permitiam-lhe prognósticos acertados sobre as chuvas ou quaisquer fenômenos em seu devido tempo. Nós todos acenávamos com a cabeça, com nossos sorrisos amarelos, imberbes e educados, assimilando respeitosamente suas previsões. Cândido pareceu particularmente impressionado e falou nele o resto do dia.

“Parece uma espécie de sábio, sei lá. Tipo assim de um profeta, um… Um mago!”

Ensinou-nos o tal homem que não bastava ser um iniciado em meteorologia, mas que era preciso ter olhos para interpretar os caprichos da natureza. Que a tecnologia dos satélites nada podia contra o conhecimento dos velhos indígenas, dos xamãs e feiticeiros que habitavam os quatro cantos do mundo, embora os cegos civilizados se recusassem a aceitar isso. Lembrou ainda – o que me pareceu completamente fora de contexto – que o homem urbano insistia em ingerir medicamentos com substâncias químicas as mais nocivas, podendo tais hábitos provocar distúrbios estomacais, pulmonares, cardíacos, assim desencadeando diarreias, enxaquecas e até câncer. Voltou aos temas meteorológicos e avisou que nos resguardássemos, pois tudo indicava que uma pesada chuva torrencial se abateria sobre a região nessa mesma noite.

“Brigado aí”, “Valeu pelo toque”, “Tchau mesmo”, todos nós muito bacanas.

“Vão com Deus.”

Protegemos os mantimentos, recolhemos o fogareiro e outras tralhas. Permanecemos atentos às nuvens, no fundo esperando que de fato ocorresse algo diferente e devastador: a chuva. Fez uma noite abafada, opressiva, seca e sem vento.

No dia seguinte, o tal mago, ou xamã ou sei lá o quê, nos encontrou no mesmo caminho. Estava descalço e aconselhou que também nos desfizéssemos dos sapatos a fim de sentirmos as emanações magnetizantes que subiam daquela região de poderosas pedras lisas – lisas e pontudas, como logo pudemos todos constatar. E enquanto caminhávamos mansamente ao redor, ele nos advertiu que a falta desses pequenos hábitos simples era o que causava no homem contemporâneo a ansiedade, o acúmulo do colesterol ruim, a impotência sexual e até o câncer. Fechássemos os olhos e assim deixássemos que se descarregasse toda a energia de nosso lado obscuro, de nosso lado contaminado, intoxicado, pois aquelas tais pedras atraíam para si os nossos fluidos negativos.

“Como sabe se não são os positivos?”, indaguei, entre os limites de meu tédio.

Ninguém me deu atenção. Daí em diante, passaram a conversar muito, trocando inúmeros pensamentos fantasiosos, como se fossem estes, mesmo os que flagrantemente se contradiziam, a mais transparente verdade. Criticaram muito as pessoas que se recusavam a reconhecer os resultados evidentes dos tratamentos alternativos e espirituais, por isso era que adquiriam cada vez mais úlceras, hipertensão arterial, distúrbios neurológicos e até câncer. Em certo momento, ele abriu os braços e pôs-se a girar, muito lentamente, dirigindo-se a toda a extensão do que nos cercava, dizendo que seu espírito, então inebriado de energias e impregnado de irradiações cósmicas, podia abranger as colinas azuis na distância como também abarcar as árvores muito vivas do outro lado e o horizonte restante – nem sempre com coisas muito bonitas além de um aglomerado de barracas e gente preguiçosa, mas isso, registre-se, não foi ele quem disse. Inspirou profundamente o ar e, dando continuidade ao que parecia estar sussurrando, como numa prece, declarou:

“Aqui a gente verdadeiramente entende finalmente o que de fato é na verdade o real sentido da vida”, isto finalizando com todas as letras e aprofundando-se ainda em um longo e eloquente suspiro.

Cândido e Clemente cerraram placidamente os olhos. Inspiraram, como ele, a brisa muito pura.

“E qual é?”, perguntei.

O homem, como interrompendo o suspiro em seu último estágio, voltou-se com serenidade.

“Qual é o quê?”

“O sentido.”

“Sentido?”

“O sentido da vida, o senhor disse.”

“Ah! O sentido…”, falou, já respirando como todos. “Sim. Primeiro pense sim. Diga sim a si mesmo. O sentido, veja bem, reside em valorizar a simplicidade e as pequenas coisas, perceba. E encontrarmos nelas um sentido maior para a existência, e isso é algo que nem sempre podemos compreender, entenda. Pois tudo está ligado de alguma forma, embora o homem moderno se recuse a acreditar nisso, sem saber que com essas suas teimosias é que vai sofrendo males em seu íntimo, acabando vítima de angústia acentuada, frustração sublimada, solidão ensimesmada e até câncer. Porque tudo está ligado entre si, e toda a ordem cósmica realiza-se a cada instante através dessas pequenas coisas, reflexo que são das dimensões maiores a nível espiritual, mesmo que alguém sempre o negue”, concluiu, arrematando com essa levíssima indireta.

“Só isso?”

“Pois então. Perceba bem. Sendo todos nós parte do universo, o sentido verdadeiro e de fato profundo reside em que somos irmãos das estrelas e primos das árvores, pois fazemos parte do cosmos a que pertencemos e, sendo assim, veja, a magia que reside por trás de nossa espiritualidade cósmica transcende nossa visão apenas limitada da natureza que nos cerca, entenda bem.”

“Ahn…”, fiz eu alongando o som do monossílabo e ensaiando uma expressão muito serena também.

Para mim, daria no mesmo se ele dissesse, em lugar de primos das árvores e irmãos das estrelas, que éramos irmãos das árvores e primos das estrelas, ou sobrinhos das galáxias e afilhados das nuvens, pois já não entendia mais nada daquele sentido que todos pareciam haver encontrado, menos eu. Eu tinha de acreditar, no mínimo, pelo menos, quando muito, entenda bem, já dizia eu a mim mesmo, num péssimo arremedo mental, que todos eles haviam de fato assimilado esse tal sentido, pois não reagiam. O que eu não podia admitir, cá comigo, é que se contentassem com tão pouco. E sempre houve tantas e tantas e tantas maneiras de se dizer algo…

“Ai, é mesmo…”, sorriu Cândido, como aliviado de todos os questionamentos possíveis. Sorte dele.

Prosseguiram ainda com toda aquela retórica poética e tão profunda que eu já não podia mais acompanhá-los, mas isso até chegarem outra vez aos sortilégios do clima, quando nosso colega de temporada repetiu detalhes do que lhe revelavam as formas do firmamento, entre cirros e cúmulos, prevendo assim uma noite calma, seca e abafada. À noite, esfriou um pouco. Ventou muito. E tivemos de recorrer aos cobertores.

A seta de Verena – Guia de leitura

39. Qualquer coisa morna – sequência

37. Os três patetas sem violência – anterior

Sobre o livro

Imagem: Henri Rousseau. Paisagem exótica. 1910.

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