Office in a Small City por Edward Hopper

As cinco estações

Um sonho, não mais.
Não me lembro do que sonhei. Mas ela estava em meu sonho.

Primavera. O invasor

Privilegiado pelas árvores, o bosque à janela de meu quarto, de onde migravam brisas aromáticas como filtradas por estames novos, canto de cigarras entre outros, quando a natureza revia seu sofisticado universo: as vastas manhãs da adolescência pareciam mais lânguidas na primavera. Ao despertar, fixava longamente o que me parecia ser a amostra de um paraíso fechado, concebendo a interação dos seres que ali habitavam, viviam. Porém, minha janela, aberta à noite, atraiu, com seu quadro de luz, um inseto gigantesco que batia contra as paredes e voejava ruidosamente ao meu redor. No afã de persegui-lo, fui perseguido, e tive medo. Por um momento, divisei sua fisionomia fibrosa de monstro. Tentei espantá-lo, e fui vencido. Fechada a porta por fora, em outra parte ruminei a insônia. Pela manhã, o quarto vazio, cortinas leves flutuando como se por ali brincassem os fantasmas do vento. Vi outra vez o santuário de árvores para o qual teria retornado o súbito demônio; vi, de minha fortaleza sem deuses, sua fortaleza sem deuses: a porção de paraíso e inferno onde os monstros se disfarçam entre flores.

Verão. Canção dos vaga-lumes

E sua luz, sua breve luz. Duravam só o verão. Encantavam-me em criança; pedia a meu pai que os explicasse. “Por que vaga-lume, pai?” “Era caga-lume, virou vaga-lume.” Eu ria, pedia outra vez que ele recordasse a cantiga de atraí-los. Cantávamos juntos, perscrutando a escuridão, eu os chamava com gestos.

Vaga-lume tem-tem, vaga-lume tem-tem.
Teu pai tá aqui, tua mãe também.

Tantas vezes vi voltar o verão dos vaga-lumes, tanto a parceria de meu pai, que a vida me parecia maravilhosa e eterna. Ocorre-me hoje, passando rente aos ciprestes do mesmo cemitério onde o tempo guardou meus pais, a canção antes eterna, agora efêmera, com que os chamava na infância. Acendo um cigarro, detenho-me ante a grade, em torno da qual giram os vaga-lumes, e é como se, de lá, me chamassem desta vez.

… Teu pai tá aqui, tua mãe também…

Eu os vejo faiscando no negrume das árvores, no que lhes cabe entre os ciclos, e sua temporada de luz. Sua breve luz.

Outono. O passado do tempo paixão

Você me acusa, eu sei. Como sua mãe. Não, espere. Não se levante, fique assim comigo. Sua nudez me inspira calma, não volúpia. Quando a encontrei (a tarde de vento) senti que se atrairia por mim, fechando assim o ciclo de segredos que persistia desde uma geração e que tornaria a se abrir cada vez que se tocasse. Rompendo, libertando. Você entende? Corrige verbos que eu nunca soube conjugar direito. Sim, como sua mãe. Acusa-me de estar sempre atrasado, com certa razão. Naquele tempo (a tarde de vento) eu considerava os ciclos baseado em relógios e dias, faltava-me desvendá-los. Não só o tempo me espanta. Transcorrer sem que se ergam os olhos. Como poderia ser se não fosse assim? Um sonho, não mais. Não me lembro do que sonhei. Mas ela estava em meu sonho. Quando entrei em seu quarto, a cama desarrumada, travesseiros deformados por não sei que necessidades, lembro-me: outro quarto, o mesmo. Apenas fique assim, deite a cabeça. Já é uma mulher. Como sua mãe. Não me refiro às formas. O olhar. Quando a encontrei (a tarde de vento) senti que se atrairia por mim, sem supor que a decisão de rompermos a faria de outro que lhe faria uma filha que seria minha por ter sido sua sendo outra e a mesma desde o momento em que a encontrei (a tarde de vento) à sua imagem, semelhança e identidade, em outra geração, o que me permite romper, libertar, outra vez amá-la por tê-la perdido, possuí-la infinitamente.

Inverno. As manhãs

Bosque de ar nublado, árvores esparsas. Corpo de homem, cabeça e ombros de um cão negro que se aproxima em silêncio, uma nudez masculina de estátua, passos seguros. A criatura, um animal soturno, tem olhos vazios de agressividade. Sua calma é assustadora. Ergue os braços, chega a abraçá-lo, com um gesto lento. O grito.

“Sonhei que eu não era um homem. Que era um menino. E estava perdido num bosque que não conhecia, sem encontrar a saída.”

“Foi só um pesadelo.”

A irmã lhe serve um café, ele sai para outro dia de trabalho. Cuidado com emoções fortes, diz o médico. Mas nessa idade, o tempo contado para aposentar-se, a rotina insossa ao lado da irmã, rastejando sobre uma acostumada escassez de emoções, nesse caso nada há que… E a manhã nublada, quase onírica, da realidade por onde erra, sim, quase um sonho outra vez. Golpe de sangue no peito, perde a firmeza das pernas, afunda na escuridão que o faz indefeso, caindo do alto, caindo do solo e mais ao fundo. O grito. Braços que enfim o envolvem de maneira alentadora. O peito escuro e paternal aconchega a cabeça de um menino amedrontado.

“Sonhei que eu não era um menino. Que era um homem. E estava perdido por ruas que não conhecia, sem encontrar a saída…”

Supõe ouvir que foi só um pesadelo. Recobra a calma, a realidade das manhãs onde somente e com a mais pura intenção as coisas existem.

Beethoven não pode esperar

Entra em casa vindo de um mundo onde somente e com a mais dura nitidez as coisas existem. Sonha que não é um homem, pretende vencer o que o aflige. Na escrivaninha, reencontra (a tarde de vento) o que exige ser decifrado, esboços de labirintos, a gárgula do chafariz, cenários da infância onde, pela primeira vez, compreendeu que compreendia, de onde parte tudo o que mais tarde se torna ele, o avesso da razão, um despertar ao que intui secreto e além das coisas: o tempo. Um sonho, não mais. Música ao fundo. Soma de todos os segredos. Já é um homem. Não o seu rosto. O olhar. E sua temporada de luz, sua breve luz. Deserto de cantigas. Mas há o quarto que o abriga, o que supõe seu paraíso fechado, há o papel desafiando ao resgate. Por toda parte, o abismo de sua fortaleza sem deuses, arrebatador. Os mistérios não são ocultos. Mas recusamos sua evidência inquietante. Outra vez a febre, as mãos que tremem. Que música é esta? Que abismo é este, se maior abismo é tê-lo devassado?

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

8. Autorretrato 23 – próximo

6. Relâmpagos – anterior

Imagem: Willem de Kooning. Sem título. 1950.

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