Office in a Small City por Edward Hopper

A seta de Verena. Abertura 1 (Guardo-o como quero)

Talvez tudo seja aí, tudo mesmo, pois já não brincava sua velha amiga Sylvia que, ao fechar os olhos, encerrava o mundo?

Você se levantou e não pôde evitar o dia. Você se desvia do espelho que também encontrará em pouco, mas não deve admitir que seu rosto esteja inteiramente arruinado. Afinal, bem perto de onde vive, e por grandes extensões de terra, seus semelhantes compartilham misérias tão mais graves do que as suas, embora de outro gênero. Tão mais urgentes são tais necessidades, tão exaustiva a marcha diária por conseguir o tão pouco que almejam, tão perverso o silêncio dos que os mantêm sob tais condições e sob controle, isso de tempos imemoriais até cercá-lo hoje, são tragédias pessoais e secretas, desde já riscadas da história, são medos que se repetem, são esperanças evanescentes em um mundo onde os homens saudáveis trapaceiam, matam e roubam, vestindo-se de suas pátrias e reverenciando seus deuses, são histórias que nos fariam a todos envergonhados só por sermos também seres vivos, chamamos a nós mesmos pessoas, lembre-se, são grandes gritos desesperados entre silêncios devastadores, não se espere, portanto, que, em meio ao desamparo de tais solidões, alguns desses peguem a ler. E você escreve.

Você escreveu, por pouco não se perdendo de vez de sua normalidade e de sua lucidez, quase como a destruir-se silenciosamente – e pensar que ninguém o tenha obrigado a isso! Você conheceu inúmeros outros que também escreviam, outros que supunha seus pares, mas aprendeu que mais trabalhavam pelo elogio recíproco, pela autoafirmação, pelo dinheiro e pela vaidade, que uma coisa alimenta a outra, mas tudo, claro, sob a capa mágica da mais constrangedora modéstia, sim, eu disse modestos, mas só eu sei que não o são, e que nunca o foram de fato, porque eu os conheci. Eu os conheci! E não devemos nos esquecer dos verdadeiros humildes, o problema é que estes ignoram o mundo maquiavélico que se move por trás e ao largo de sua simplória visão, o que não quer dizer que estejam de todo livres de sua parcela de responsabilidade. (Vale até arriscar, conforme penso por minha conta, que, quanto mais humildes, mais me parecem culpados.) Há também os espécimes de outro gênero, dos que seguem com o sublime ideal de contrapor a arte e a beleza às dores do mundo, que eles próprios ajudam a conservar feio e confuso, assim tentando destacar-se por meio do que julgam belo, mas isso só até morrerem um dia, que esse dia existe.

Vem de uma noite em claro, mas não transparente. Você sabe que não consegue dormir de bruços, por isso já pressente a velha insônia, aliás, já instalada, como em tantas outras vezes se deu, e hoje tinge de uma estranha coloração os minúsculos rios que cruzam o seu cérebro, seu cérebro, sim, esse aglutinado singularíssimo, talvez tudo seja aí, tudo mesmo, pois já não brincava a sua velha amiga Sylvia que, ao fechar os olhos, encerrava o mundo?

É preciso reconhecer: o que você procurava, de fato, eram respostas, por isso aventurava-se às perguntas. E apesar de sua breve jornada, visando a inúmeras possibilidades de transcendência, essas que durante milênios serviram tanto à guerra quanto ao amor, mais essa coloração à parte, tanto familiar como repulsiva, sim, apesar de tudo, e irmã dos vermelhos, e você, em função de sua grande necessidade de palavras, procurando sempre mais o silêncio, tudo se soma às grandes incoerências.

E o apresentam como um escritor premiado, veja só como se alegram: um mistério. Só você sabe o que valem hoje esses afetados diplomas, se é que alguma vez valeram. E agora esse grupo de estudantes, prestes a plantar-se à porta, por isso Verônica aguarda que você se apronte, promete avisá-lo quando chegarem, mais gente quer ouvi-lo e também vê-lo, como se fora você algum espécime silvestre, só porque expressa pensamentos da maneira como os expressa, e o que esperam disso tudo afinal? Você se cansou de generosidades e hipocrisias, cansou-se de ler sobre si mesmo em textos alheios, que o tratam e aos seus obstinados experimentos escritos como uma literatura de sensações, sem perder de vista a consistência e a racionalidade, que gentileza, se pudessem vê-lo agora, se apenas soubessem o quanto lhe é difícil viver entre os homens sem acreditar no que constroem e sem compartilhar de seus interesses, se pudessem vê-lo agora os que o consideram por seu amadurecimento em relação aos trabalhos anteriores, que entendem os homens de amadurecimento, de evolução, de progresso, que alguém o diga, pois você é, acima de tudo, um leitor entre muitos leitores, tão intrigado ante o vasto plasma esbranquiçado que compõe a noite galáctica quanto o seu ignorante ancestral pré-histórico, machado de pedra em punho, antes que a ele chegasse também o dia, ficando-lhe uns ossos a nos contar que por ali estivera e caminhara, ninguém sabe por quê, entre outros como ele, de melhor sorte talvez, que tendo a vida se realizado e desaparecido, nem mesmo ossos deixaram.

O fato é que os teóricos e os mestres e outros bípedes do gênero sempre inventaram teses e filosofias novas para renovar suas tardes de tédio, pois nem sempre a necessidade lhes pediu algo, isso até o dia em que uma ciência qualquer, com um experimento qualquer, acabasse provando cruelmente o contrário de tudo o que postulavam, dando assim outro golpe de misericórdia em tantas discussões pretensamente frutíferas, mas finalmente estéreis. Pois assim se dá que tantos de sua laia, entre bardos e escrevinhadores, cada um deles em seu tempo de vida, que fora desse tempo nada mais são, tanto os prosadores mortos do passado quanto os poetas mortos ainda por nascer, procuram sempre aborrecer uns aos outros com suas inflamadas ideias e seu autoritarismo permanente, a esperança fica por conta de alguma nova ciência que nos possa a todos redimir, como já se tem constatado com as proposições vencidas, quando em tantos casos o raciocínio chegou antes da imaginação. Enquanto isso e enquanto não, também você continua perdido entre tantas imbricações, é preciso que se detenha antes que estrague também o fim desta história, que no fundo é sempre a sua história, enquanto o tempo ainda se amontoa à sua volta, antes que retorne de onde magicamente saiu, e antes que você, como já dito, finalmente estrague tudo.

Quando você tenta contar a verdade sobre si mesmo, tudo acaba se transmudando em outro discurso fictício, talvez inevitavelmente. Você usa a primeira pessoa porque parece mais verossímil, mas tudo não passa de ilusão, mantida por técnicas narrativas, todas mentirosas por sinal, pois toda a verdade, não se pode dizê-la; e meias verdades são também meias mentiras, registre-se. No fundo, nunca saberão o que penso, eu não o permitirei. Não o direi a ninguém. E não se trata de um direito meu. Trata-se de um poder. Guardo-o como quero, e nenhum objeto é mais secreto. Guardo-o, desde que percebi que podia pensar, até a última hora de minha vida, quando tornarei a não me revelar. E mesmo que um dia mude de ideia, mesmo que pretenda dizê-lo, o que penso, ainda que isso faça crescer uma legião de suicidas, nada mais tenho do que palavras, uma língua, composições, e nunca saberei dizer o que de fato conta, e nunca saberão de verdade o que eu de fato disse, e era essa, essencialmente, justamente, principalmente, a única coisa pela qual teria valido a pena aprender a falar.

A seta de Verena – Guia de leitura

A seta de Verena. Abertura 2 – próximo

Sobre o livro

 Imagem: Willem de Kooning. Sem título (detalhe). 1948.

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