Office in a Small City por Edward Hopper

A seta de Verena. Abertura 2 (Meigos pastores, secretos assassinos)

Nem é preciso acreditar no que conto. Continuarei contando assim mesmo.
Faço o melhor que posso. Não tenho outras esperanças.
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“No fundo, tudo são brutais distorções do instinto de sobrevivência.” Certa vez, considerei essa frase um achado, acabei seduzido, e decidi aperfeiçoá-la. “Tudo são facetas do mesmo instinto de sobrevivência.” “Toda arte, ciência e religião não passam de variações do instinto de preservação da espécie humana.” Usei brutais distorções em uma das versões (despreze-se a rima imediata), sutis distorções em outra. Assim por diante, que há sempre uma maneira e outra, sempre há aquela outra maneira e esta uma, assim sempre, eis aí a literatura. Concluí, portanto, que isso não teria fim. Que os filósofos e os pensadores que nos brindavam com pérolas perdidas nos almanaques teriam de se interromper à força naquele mesmo momento da escrita – do contrário, entenda-se, se continuassem, eles próprios acabariam por distorcer seus ditos, tenderiam a aperfeiçoá-los e a lapidá-los, como se dera comigo. Talvez acabassem discordando de si mesmos. Talvez enlouquecessem.

Todo artista compreende, um dia, ainda que se deixe classificar como criativo ou mesmo que continue se fingindo inocente, que nunca foi senão o resultado da convergência de inúmeros outros que ele próprio elegeu. Vivemos entre os invisíveis limites de um mistério que se deixa entrever por espasmos, como cristais guardados só para alguns momentos, nas frestas de umas estranhas revelações que talvez se tenham dado a uns, e não a outros. E não a outros uns. E não a outros outros. Ninguém é culpado de não ser o escolhido (escolhido, mas que palavra…) e ninguém merece a inveja dos semelhantes por encarnar a representação de tal acidente. O acaso nos incomoda, por isso o negamos. Mas você não pode ignorar o que só reconhece nos autorretratos como os de Rembrandt ou nos últimos acordes da Tocata e fuga de J. S. Bach. Era preciso compreender por que os primeiros instantes da Nona sinfonia o transtornavam, também por que você se comovia tão profundamente ao deparar com o pequeno Hareton, dos Ventos uivantes, sua infância solitária, sim, você quase o alcança, são impressões furtivas como a que passava aquela ilha mágica que tinha o poder de afastar-se conforme as naus se aproximavam, com isso nunca podendo ser abordada.

Como nada se perde na natureza, e nem tudo se perde nos homens, continua sendo dos conflitos que nascem todas as coisas importantes, mas não seja covarde, mencione a fonte, isso é Heráclito, ou vão pensar que tudo são pensamentos seus – se bem que não parece tão difícil articular pensamentos desses. Mas algo se perde, e o que não faltam são mestres rabugentos espargindo suas experiências e sua humildade, agora mesmo estudando para vencer-me, cultivando-se para destruir-me, aperfeiçoando-se e unindo forças contra mim. Para defender-me, eu teria de justificar-me, o que não pretendo absolutamente, e teria de recriar todas as minhas mentiras, que já eram falsificações bem-feitas quando tiveram sua hora e sua vez. Teria de reescrevê-las sob outro prisma e sob outra luz, porém hoje não conto com a menor vontade de dar trela a coisas assim, prefiro que assumam como bem entenderem sua postura de semeadores, seu repetido discurso de homens idealistas e admiráveis, seu coração generoso de pastores de rebanhos. Só eu sei o quanto são traiçoeiros os que sobem ao púlpito e ao palanque. São homens que não saberão crescer, porque ainda não souberam nascer. Só eu sei como me olham sinistros, sabendo que eu sei.  Pois eu sei quem eles são. E eles sabem que eu sei disso. Só eu sei que, onde há meigos pastores, há também secretos assassinos.

Pois acredite quem quiser, que isso não faz diferença, digo, que se acredite ou não, jamais pensei em ser erudito, acadêmico, semioticista, poliglota de palestras, teórico em literatura, mestre questionador, doutor especializado, ser de exceção, gênio linguista, poeta representativo, líder intelectual ou qualquer outra porcaria que o valha. Você falava agora mesmo em primeira pessoa, o que impede a coerência do foco narrativo, e isso faz parte da liberdade que ninguém te pode conceder a não ser tu mesmo. Se soubessem, se na verdade soubessem do que eu não queria ser, tenho certeza de que não tornariam a examinar-me os olhos e o rosto e o corpo de alto a baixo, como quando se depara com os sinais de um espécime desconhecido, como quando você próprio viu certa vez a máscara do faraó e o fêmur do braquiossauro – depois que se veem coisas dessas, nunca mais você e eu somos os mesmos.

“Eles estão aí”, diz Verônica, como surgindo em meio a um sonho.

Você passa a mão pelo rosto de barba espinhenta, que se atrasou a apará-la, como muito se tem atrasado entre outras hesitações, resta-lhe apenas encarar seu rosto de frente, tendo-o refletido em outros, vamos, é apenas uma manhã de sua vida, embora tudo se tenha resumido aí, embora o tempo não vá se deter por causa de sua manhã, ou de sua noite, agora mesmo alguém acaba de nascer, alguém acaba de morrer, alguém acaba de se converter enquanto outro acaba de perceber que sempre foi enganado. Bem agora, o moribundo agoniza, o casal compartilha as delícias do sexo, o professor emudece ante a pergunta inquietante, alguém por acaso encontra seu caminho, o cidadão se descobre em estado de graça, a criança sofre sua primeira grande decepção, a fita termina, a orquestra silencia, o elenco se apresenta, o poema vem a lume, é declarada a guerra. Nem é preciso acreditar no que conto, continuarei contando assim mesmo. Faço o melhor que posso. Não tenho outras esperanças.

Você pensa que tem se exercitado, assim como os jovens musculosos precisam boxear ou correr, precisam criar conflitos para manter em boa forma seus instintos, até se transformarem em sombras do que uma vez foram e em guerreiros de pedra. Já deve estar chegando o tempo em que quase não compreenderemos mais o que há pouco parecia essencial, deve estar chegando, sei que deve estar chegando, já deve estar passando surdamente por sob nossos pés, como as lentas águas vistas da ponte adormecida, mesmo que eu continue sonhando que um objetivo maior há de encontrar-me ainda, mas é também possível que eu o tenha vivido e já tenha passado por ele sem ter notado, minha conhecida incompetência, minha dificuldade de ver, meus óculos, minha cegueira, as águas lentas, minha inocência triste, a ponte adormecida, o ponto da queda. Eu próprio considero minhas palavras asfixiadas, truncadas, sem saída, eu próprio, eu próprio, eu mesmo, calma, estou calmo, eu próprio não me expresso melhor do que os analfabetos quando pretendem escrever ou os desvalidos quando procuram falar. Eu próprio não sei falar.

“Eles estão aí”, repete Verônica.

Você passa a mão por sobre a boca, por sobre o queixo e uma das faces, faz a Verônica, que está à espera e à porta, mão na maçaneta, um gesto de que está pronto.

“Entrem, por favor.”

Ainda há pouco, minutos atrás, entre espasmos sonolentos e ligeiros calafrios, seu corpo estremecia e rolava sobre si mesmo, revolvendo todos os mortos da Terra.

A seta de Verena – Guia de leitura

3. O fim (e seu avesso) – sequência

 A seta de Verena. Abertura 1 – anterior

Sobre o livro

 Imagem: Leon Bakst. Retrato de Alexandre Benois. 1894.

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