Office in a Small City por Edward Hopper

O Arsênio da Editora Circular

Nem me havia ocorrido que ele poderia reagir à foto da capa, mas que desgraça!
Agora, era tarde demais.

Um arrepio. Conheço essa batida. Lenta, repetida três vezes. Sim: como se zombasse de quem está dentro. Outra vez. Digo, mais outras três vezes. Sim. Só pode ser.

“Bom dia”, diz ele quase cantando. Mas assim: grave, insinuante.

O velho Arsênio, o senhor Arsênio Siqueira, é o representante da Editora Circular. Seu trabalho consiste em visitar os associados duas vezes por mês, mas ele passa por aqui toda semana, especialmente para atormentar-me.

“Como foi a semana?”, pergunta, como se muito lhe interessasse o que tenho feito de minhas malditas semanas.

“O de sempre”, respondo. Fingindo cansaço.

Ele se senta na única cadeira, deixa a mala de couro no chão, suspira de felicidade e fica olhando o quarto, em detalhes, como sendo a primeira vez que o vê. Nunca sorrio em sua presença. Procuro mostrar-me o mais sério possível, além de engrossar a voz. Não adianta. Da última vez, tornou a perscrutar-me com suas sutilezas, insinuando-se nem me lembro com que palavras ou olhares maliciosos. Ele tem uns olhos cintilantes, mas não devo dizer diabólicos, ninguém acreditaria. Nessa idade, tendo sido uma espécie de sátiro reprimido pelo casamento e pelo desgaste da vida familiar, cabelos brancos com tendência de penugem sobre o crânio, fica encantado ao ver uma pessoa jovem como eu. Três bichas dividem um quarto no andar de baixo e, da primeira vez que ele visitou a pensão, lá estava eu passando por uma delas, cumprimentando-a na entrada. Sim, provavelmente foi isto: as bichas não o agradaram, e devo ser eu o seu tipo. O fato é que não tenho como livrar-me dele, a menos que me mude daqui, o que no momento não é possível. Assim, ele fica como bem quer, sentado aí, desse jeito, em minha cadeira, suspirando de satisfação, o sorriso tênue desenhando-lhe os cantos da boca. Com a saúde que tem, não deverá morrer tão cedo, ao que parece. Agora, dispõe de todo o tempo do mundo para visitar associados e bisbilhotar a vida alheia. Que fazer?

“Estudando muito?”

Quase não pude disfarçar minha pressa em juntar os papéis sobre a escrivaninha. Ele esticava os olhos de onde estava.

“Mais ou menos. Bom… Ahn… O que tem aí hoje?”

“Catálogo novo. Autores novos. Muitos lançamentos. Dá uma olhada.”

Fiquei folheando o tabloide colorido, muito ilustrado; por sinal, muito bem feito.

“Hum… Hum… Eles não aprendem”, deixei escapar.

“Como?”

“O quê? Ah, digo… Ainda bem que vendem.”

“Tem também espionagem, policiais, aventura. Esotéricos. Autoajuda e… Olha só. Tudo novo.”

“Meu Deus…”

“Como?”

O mês já ia ao fim, era preciso escolher. Por sorte, encontrei algo nas últimas páginas. A seção bem poderia chamar-se Encalhe.

PROMOÇÃO

Pareceu-me fabuloso que uma jovem nua e sensual, com a respectiva chana bem à vista, ilustrasse a capa do Eu, de Augusto dos Anjos, mas a Editora Circular nunca teve escrúpulos com a literatura. Mostrei-lhe o livro e o código.

“Ah…”, fez o velho Arsênio, malicioso.

Nem me havia ocorrido que ele poderia reagir à foto da capa, mas que desgraça! Agora, era tarde demais. Ele ficou satisfeito ao ver-me embaraçado, e eu tive de engolir em falso, repassando meu ridículo constrangimento.

“Muito bem”, disse ele, aprovador.

Eu esperava que apanhasse de volta o catálogo que me tremia nas mãos. Ele percebeu isso e preferiu torturar-me com sua inércia.

“É só”, disse eu secamente e estendendo-lhe o maldito tabloide.

Ele parecia mais apaixonado. Demorou-se a tomá-lo de minhas mãos. Passou a acompanhar cada um de meus movimentos, seu olhar agora radiante. Eu andava em círculos pelo quarto, remexia algum objeto sobre a escrivaninha, esperando que o incomodassem o meu silêncio e a inconveniência de sua presença. Nada. Ele não tirava os olhos de minha bunda.

“Muito bem”, repetiu.

Abri o armário de roupas, fingi vasculhá-lo em busca de alguma coisa, por fim separei uma camisa, que vesti desajeitadamente.

“Olha, seu Arsênio… Seu Siqueira… Eu hoje tenho que ir ao banco e… Não posso me demorar.”

Ele anotou o código, muito calmamente, em seu fichário, fatigando-me ainda com sua lentidão.

Quando finalmente vi sair esse demônio, tranquei a porta e procurei esquecê-lo de vez. Ele bem poderia ser atropelado, por exemplo, ou passar por algum edifício em construção. Oh, que figuras circulam pelo mundo! Oh, quantas vezes desejei que uma viga lhe esmagasse a cabeça! Mas tem uma saúde a criatura, uma disposição! Uma praga.

Mais tarde, fui ao banco. Andei um pouco pelas livrarias do centro, voltei e passei o resto da tarde lendo. Eu já não conseguia ficar tanto tempo como antes em uma livraria. Aborrecia-me a expansão epidêmica dos chamados textos de autoajuda, na verdade sofisticadas variantes de antigos ensinamentos, alguns deles por pouco não nos remetendo às famosas frases de para-choques de caminhões, que, à luz do dia, tantos menosprezam. Eu tinha a impressão de que os leitores estavam se tornando presas fáceis da ingenuidade e do consolo imediato. Mas não os criticava, pois quase ninguém mais podia oferecer algo muito confiável ou consistente, muito pouco o Estado, bem menos a Igreja e, infelizmente, nem mesmo a Ciência, que, por força de decodificar antigos mistérios, vai aos poucos frustrando as ilusões e os mitos que sustentam boa parte das pessoas. Como sou lento para ler, e como não me sobra grana para encher a cestinha com resmas das quais não tenho referências, preciso pensar muito bem antes de adquirir qualquer dessas obras. E folhear muito, claro. Entre joios e trigos, por minha vez ia constatando, por curiosidade, como as editoras faziam pacotes de promoção por causa da grande concorrência e da vasta oferta desse produto hoje corriqueiro, o livro. Estamos próximos a uma pandemia catastrófica de títulos. Os preços vão baixando entre os autores do mesmo gênero, mesmo que eu não goste deles e os observe apenas por curiosidade, como já disse, porque se há algo de que não posso fugir é de minha curiosidade e, como os antigos diziam, curiosidade mata. Concorrência também.

Como milhares de outras pessoas e como resultado da proliferação de empresários pelo mundo, tenho recebido inúmeras e diárias correspondências oferecendo toda sorte de produtos e serviços, dos mais comuns aos mais extravagantes. Costumo prestar maior atenção aos que vendem livros e periódicos, não sei por quê. Há edições belíssimas, e tão caras quanto merecem ser, tratando de civilizações desaparecidas, maravilhas do mundo animal, tudo sobre o fundo do mar, arrepiantes casos sobrenaturais, receitas de todas as tortas possíveis, medicina para a família, grandes guerras da história, clássicos inesquecíveis da música popular, tudo isso sempre acompanhado de catálogos plastificados, com seus respectivos envelopes-resposta, com opções para o cliente.

SIM! Quero receber amanhã mesmo o maravilhoso primeiro volume da série “Enigmas insolúveis que ainda desafiam a humanidade” e concorrer a uma viagem ao redor do mundo com descontos de até 30% em hotéis pertencentes ao convênio conforme relação no verso do catálogo.

Ou:

NÃO! Não quero receber amanhã mesmo o maravilhoso primeiro volume da série “Enigmas insolúveis que ainda desafiam a humanidade” e concorrer a uma viagem ao redor do mundo com descontos de até 30% em hotéis pertencentes ao convênio conforme relação no verso do catálogo.

É preciso reconhecer que são democráticos. O caso é que não pretendo mesmo dar a volta ao mundo, muito menos por esses dias, sendo portanto desaconselhável que eu adquira tais ofertas. Melhor assim, para não correr riscos.

Mônica não apareceu nessa noite, como eu havia erroneamente previsto. E Glauco Pinheiro… Ainda esta: quase me esqueço dele. Isso também me causa um arrepio de incômodo. Pior que amanhã é sábado, e Glauco Pinheiro deve vir logo pela manhã, entre sete e oito, quando eu ainda estiver torto de sono.

A seta de Verena – Guia de leitura

6. Meu amigo poeta-patriota – sequência

 4. Duas linhas, literalmente – anterior

Sobre o livro

Imagem: Giuseppe Maria Crespi. Livros de música. 1710.

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