Office in a Small City por Edward Hopper

Beckett lhe dá as boas-vindas

Não falou da desordem nem da poeira sobre os móveis, o que, vindo de uma mulher, não deixa de ser admirável.
Paixão à primeira vista.

Mônica surgiu em minha vida da maneira mais pitoresca e atrapalhada do mundo. Prensados em meio à multidão ruidosa, a certa altura eu a tomei pelo braço, gritei em seu ouvido: “Vamos para algum lugar mais sossegado?!”. “Sem sair da cidade?! Não conheço!”, ela berrou. Não fomos, e a situação tornou-se mais embaraçosa quando os soldados chegaram, obrigando-nos a fugir correndo, tropeçando, caindo… Mais à frente, contarei sobre isso, se não esquecer. Muito bem.

Eu a vejo nos fins de semana, Mônica. Às vezes, ela passa por aqui antes de sairmos; às vezes, nos encontramos no local combinado. Dormimos juntos nas noites de sábado. Às vezes, domingo. Às vezes, sexta. Ela insiste em ter a chave do quarto, para poder vir quando quiser, mas como ainda não me resolvi, vou protelando, tanto quanto posso, mais esse incômodo. Às vezes, ela parece desistir. Às vezes.

Da primeira vez que eu a vi, ela usava uma jaqueta maior que seu número, mal escondendo uma blusinha velha com um furo perto do ombro. Conforme cruzava os braços, em função de prender a jaqueta ao corpo, um ou outro movimento avulso permitia-me ver, pelo decote frouxo, parte de um seio que admirei secretamente. Sua voz é bastante comum, quase irritante. Tem um dente de ponta quebrada que não altera a graça de seu sorriso e ainda o torna singular. Cintura, pernas um pouco flácidas, seios redondos disputam, com sua bundinha, meus olhos atentos. Não é uma bundinha muito avantajada. Mas é uma bundinha.

Essa garota, essa moça, enfim, essa mulher que apareceu, para minha sorte, em boa hora de minha vida (ela que o diga, a pobre) costuma vestir-se de maneira bastante simples, aliás, cronicamente cotidiana, revestida por jeans e camisetas, mais um certo casaco algo volumoso, só por causa do frio. A maneira de trajar-se, também a maneira de movimentar-se e gesticular, de mascar chicletes, de fazer oscilar o corpo sobre uma perna enquanto conversa, de franzir o nariz ou os lábios quando surpreendida por algo que lhe cause tédio, por exemplo, um comentário dos meus, desses que não sei de onde surgem, no momento em que surgem, enfim, como se dizia, sua maneira de ser como é, faz de Mônica uma imagem prevista, pois, é claro, nem espero encontrá-la de outra maneira, a menos que algo espetacular venha a acontecer, o que não parece provável, e é como se ela não fosse jamais deixar de ser uma estudante, significando isto adolescente, o que também ela não é, de tal forma que, ao vestir uma saia de qualquer tamanho ou decidindo-se por algum par de brincos mais visíveis, chega a impressionar – aos que se acostumaram a vê-la no mais dos dias, agora sim explica-se. Gostaria que ela alguma vez usasse um bracelete. Desses que cobrem um pulso e destacam parte do antebraço. Agradam-me mulheres que se mostram com esse raro ornamento, mais denso que uma pulseira, menos delicado, porém, por vezes, ainda mais feminino. Mas Mônica não se importa nada com meus modestos fetiches, algo que ela equivocadamente chamaria excêntrico. Ora, não exageremos, é apenas um gosto como os outros. Não se pode ser tão ardiloso a ponto de enxergar em tudo uma associação, especialmente com desejos obscuros ou mal compreendidos, pois o máximo que eu lhe pedia, quando nua, era que não se desfizesse de seu delicado relógio de pulso. Se muito não mentia a mim mesmo, o que sempre me encantara em certos adornos ou peças do vestuário feminino fazia parte do mundo da beleza, do que para mim significava a beleza, sem muita escuridão nem taras, e andava distante do que uma vez levara Sacher-Masoch a enfeitiçar-se por sua tia, quando a via chegar com a kazabaika de veludo vermelho. Bons tempos.

Quanto a Mônica, no começo senti uma certa repulsa por sua vulgaridade. Hoje sei que estava enganado. Ela é uma garota inteligente. Observa detalhes que me escapam e costuma virar-me do avesso com alguma pergunta ou ironia que lhe ocorre assim, perspicaz, espirituosa, no meio de um diálogo qualquer. Raras, a bem da verdade, umas quanto outras, perguntas e ironias, mas afinal valem a pena, porque ela também, ela toda, se isso já não ficou claro, valia a pena – e ainda vale, tanto que continuo escrevendo sobre ela, agora sim está bem claro, pelo jeito. Seu desprendimento, seu desinteresse pelo que me parecia importante cativaram-me e libertaram meus olhos, antes viciados, a novas verdades. Desde que nos conhecemos, ela foi assimilando minhas opiniões sobre literatura, ao mesmo tempo em que me impregnava, aos poucos e para sempre, com a confortável sensação de que a arte e a filosofia não valiam o esforço de digeri-las, só não conseguíamos era escapar delas. Nunca mais fui o mesmo após ter conhecido Mônica. (Também devo muito a Verena, mas isso é outra história.) Quando ela, Mônica, entrou pela primeira vez em meu quarto, encantou-se com a escrivaninha antiga e a charmosa luminária.

“Menino!”, disse ela ao ver o cesto. “Olha isso, tem até uma lixeirinha aqui.”

“Para onde vai a maior parte de minha obra”, deixei escapar. (Ai, que merda, paixão nos confunde.)

Não falou da desordem nem da poeira sobre os móveis, o que, vindo de uma mulher, não deixa de ser admirável. Paixão à primeira vista. Nem ela dispunha de condições vocabulares para comparar aquele árduo espaço a uma cela monástica, que era como eu próprio o definia em segredo, não sei se o enaltecendo ou injuriando. Dos diversos livros que se encontravam por toda parte, tomou alguns nas mãos e, em vez de folhear cada um deles com alguma espécie de curiosidade, o que fazia era passar, no máximo em três segundos, todas as páginas diante de seus olhos, num gesto ruidoso e incompreensível, como se com isso pudesse testar-lhes a resistência, fazendo-os vibrar à sua maneira. Eu temia que as palavras escapassem deles, tal era a agilidade desse gesto avulso, que ela repetia quase distraída. Cheguei mesmo a impedir que se apoderasse de uns exemplares meio carcomidos, que poderiam destroçar-se de vez – porque eu guardava umas edições muito velhas, de um papel que teria sido branco noutro século, tão antigas que, ao lerem-se alguns de seus escritos em voz alta e com sincera boa vontade, talvez despertassem uma múmia em outra parte do mundo.

“E esse aqui…?”

Deixa esse aí!”

Não havia nenhuma traça na parede para dar-lhe as boas-vindas. Mas viu um recorte com a foto de Samuel Beckett, à margem de uns papéis, o que lhe rendeu uma careta.

“Quem é?”

“Um de meus demônios prediletos.”

Glauco Pinheiro chama Beckett o Átila da literatura, durma-se com esta: “Sob o bico de sua pena, não mais cresce a erva.”. Para mim, claro, ocorre o contrário. Eu explicava a ele que, pessoalmente, Samuel era um homem gentil e sensível, que o fora sempre, daí seu inconformismo com a hipocrisia e com a mediocridade reinantes entre os vivos, mas Glauco Pinheiro o tem como algum tipo de subversivo monstruoso e, no fundo, apreciaria que ele, melhor dizendo, a memória dele, desaparecesse de vez, com todos os seus livros, não sendo possível negar seu talento. Eu ensinara o mesmo a Mônica, do que já havia lido a respeito dele, e com ela foi diferente: não sendo católica como Glauco Pinheiro, era mais propensa à novidade e menos preconceituosa. O olhar fulgurante de Beckett era um caso à parte. Mais tarde, Mônica encantou-se também com aqueles olhos, certamente por compreendê-los melhor.

Por causa da fé, da esperança e da falta de informações, o planeta Terra havia atingido um estágio intolerável de sua superpopulação. As pessoas se dividiam em grupos e deflagravam uma guerra sem fim por todas as cidades do mundo, não importando a nação ou ideologia a que pertencessem, tendo de matarem-se umas às outras, para poderem comer. Essa história incrível, que Mônica havia lido quando pequena, tornara-se uma espécie de trauma que periodicamente voltava a atormentá-la em sonhos. Ela se assustava por entender que de fato seria aquele o destino da civilização, por razões matemáticas, como seriam também inevitáveis as consequências de tal descontrole, de acordo com a ficção premonitória. E eis que já fui acordado mais de uma vez com seu grito.

“Aquele sonho… De novo… As pessoas nas ruas…”

Eu a abraço com má vontade. Com sono.

“Sossegue. O papa pode mudar de ideia. No futuro, todos usarão camisinhas.”

“Tenho medo.”

“Foi só um pesadelo”, digo eu, como se isso bastasse.

“Deve ter sido a foto daquele homem…” (Beckett).

“Oh…”

O fato de me encontrar com ela nos finais de semana não significava que estivesse apaixonado, não ainda. Também não era o mesmo sem encontrá-la. Nunca somos os mesmos depois de encontrar alguém. Romântico, não? Mais ou menos.

A seta de Verena – Guia de leitura

9. Dilemas inofensivos, obsessões horrendas – sequência

7. Consumação mínima – anterior

Sobre o livro

Imagem: Henri de Toulouse-Lautrec. A cama. 1893.

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Comentários

Uma resposta para “Beckett lhe dá as boas-vindas”

  1. Avatar de celia

    Simplesmente, gostei…um bj.

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