Office in a Small City por Edward Hopper

Dilemas inofensivos, obsessões horrendas

Eu nunca estava apenas vivendo. Eu nunca estou apenas vivendo.
Eu estou sempre espantado com a vida.

“Vamos pedir um desses. Tenho dinheiro.”

“Não confio em você”, disse ela, com a estranha segurança de quem confiava o tempo todo em mim.

“Branco?”

“Branco.”

No restaurante, contei a ela: vivia um período estagnado, saturado e quase estéril. Uma fase de grande insatisfação com o resultado de meu trabalho, com o que considerava meu trabalho, definição que me posicionava, diante de mim mesmo, algo entre arrogante e envergonhado. Mas não que não fossem bons resultados. Não eram bons resultados para mim. Minhas oportunidades avulsas com traduções e revisões de textos haviam escasseado e já não podiam me proporcionar o sustento como (mal podiam) antes. O editor pouco me passava às mãos, entre breves contatos para avaliações ou leituras, como também, há mais de um ano, opunha-se a editar qualquer título assinado por mim. Eu podia manter-me à custa de eventuais concursos literários, desde que não escrevesse nada de muito criativo ou que confundisse as comissões julgadoras. Também era preciso um pouco de sorte, que nunca se sabe quem vai estar sentado àquelas mesas, não é mesmo? Um texto mediano pode misteriosamente sofrer um primeiro lugar, tanto como aquele, considerado pelo próprio autor uma de suas pérolas, acabar esquecido entre os desclassificados – isso quando não recebem o vergonhoso certificado que caracteriza aquelas tais menções honrosas, que eu secretamente chamava menções horrorosas. Pouco tempo atrás, Mônica me havia criticado, claro que sempre com seus justos motivos, por eu me render a certas concessões. Eu fingia justificar-me, especialmente quando usava intencionalmente alusões a Deus em contos que punha a concorrer por dinheiro, sim, ela estranhava que eu me corrompesse por tão pouco. “Você fala em Deus como se fosse um crente. O que eles vão pensar?” “Deixe…”, eu lhe respondia. “Todos gostam de Deus.” Acabava premiado. Mas não queria mais escrever contos convencionais, lineares, enfadonhos, com mensagens humanitárias, esse era o problema. Queria deitar tudo fora, romper com toda aquela tautologia de frases e parágrafos, páginas e mais páginas escritas, dar um golpe de misericórdia em mim mesmo, desistir de tudo o que vinha fazendo.

“Por que não arranja um emprego e não deixa de lado essa obsessão horrenda?”

Ela já me havia dito isso. Ela sempre me diz isso.

“Não consigo.”

Mônica se refere ao desejo de escrever, que ela classifica como obsessão. Ou como algo horrendo. Não sei. Segundo ela, as outras pessoas que conhecemos estão sempre melhores do que nós, apenas vivendo. Apenas vivendo. Ela deve pensar que eu seria melhor, que eu me sentiria melhor… apenas vivendo. Não, mas eu não conseguiria mesmo. Eu nunca estava apenas vivendo. Eu nunca estou apenas vivendo. Eu estou sempre espantado com a vida.

“Os editores não vão mesmo reconhecer seu talento, acho muito difícil que… Desculpe, foi sem intenção.”

“Ah, mas é verdade. Não sou tão talentoso, eles sabem disso. Só acho que não seja esse o problema.”

“Arranja outro emprego, como todo mundo, e vamos viver. Vamos viver, só”, acrescentou, com uma carinha maliciosa de quem queria muito mais do que apenas viver. O que Verena pensaria disso?

“Agora, que cheguei até aqui? Minha novela teve boa aceitação, lembra? Sucesso relativo, segundo eles. Tudo bem, eu sei. Para não dizer um fracasso completo, claro, usa-se dizer sucesso relativo.”

“O Suplemento Literário falou bem dela, não foi?”

“É. Mais ou menos. Considerou A conspiração dos felizes uma pequena obra-prima, embora caricatural. Lembro.”

“Então…”

“Então o quê? E daí? Outro jornal disse que era um desastre e que eu era psicopata. O importante é que eu já tinha recebido meu cheque.”

“Você acredita em tudo.”

“Você também.”

“Ou não acreditamos em nada, os dois. Nós dois. Dá na mesma. É só inverter.”

Não disse que ela era perspicaz? Pois, como se acaba de ver, aí está.

“É…”, disse eu. Ou quase disse. Ou murmurei. Esse é quase soa com um H no início, mas não tão aspirado. As reticências são apenas viciosas, constituindo distorções do que de fato expressam, pois ele é seco, abrupto, cortado, muitas vezes acompanhado daquele famoso dar de ombros, e significa “portanto…”, “assim é…”.

Quando lhe emprestei esse meu livro, a amaldiçoada A conspiração dos felizes, tentando impressioná-la (e também para mostrar a ela que eu não era apenas mais um cidadão idiota e risonho como os outros), Mônica me devolveu o exemplar dessa novela nada exemplar logo na semana seguinte.

“Adorei. Li de uma enfiada!”

Como me irritam pessoas que leem tudo tão rápido. De uma enfiada, elas dizem. Bem-humoradas, contentes com essa capacidade boba. Como já disse, sou lento para ler (ou lerdo, o que melhor servir), e devo reprimir alguma faísca de inveja dos rápidos. Não sei se é só isso. Você fica cinco anos escrevendo um livro, relendo e organizando etapas, desclassificando personagens, enriquecendo outros, angustiando-se com dúvidas gramaticais, e ela lhe diz, toda alegre, hiperativa: “Li o seu livro numa única tarde, numa enfiada!”. Ah, é assim? Numa enfiada, depois de tudo o que eu fiz? Ela vai ver só a enfiada.

“Então, o que vai fazer?”

“Tenho três meses para pensar nisso, lembra? Até lá, acabo encontrando uma alternativa, tenho certeza. É, tenho certeza mesmo. Claro que sim… Espero que sim.”

“Tomara.”

“Espero que… Tenho certeza. Vamos pedir outro?”

“Não.”

Fico pensando em como Mônica me vê. Quero dizer, será que ela pensa em mim como um escritor? Ou brinca de fingir que me vê assim, para me contentar? Será que só pensa em mim como um namorado? Será que não espera mais do que isso? Por que não? Ela é normal.

“Por que não? Olha pra mim. Vamos pedir outro.”

Não sou um escritor como muitos dos que ela conhece, digo, em função de tê-los estudado na escola. Mas também não sei o que me aproxima de minha própria natureza e de minha necessidade fascinante de escrever. Os escritores fazem uma fauna diversificada e aparentemente sem relação entre si. Joyce inventava palavras, subvertia sintaxes e não só isso, subvertia principalmente a maneira convencional de ver o mundo, além de não ter restrições quanto ao uso de expressões chulas. Em Proust, não se encontra um palavrão. E eram contemporâneos, europeus, enfim, de culturas muito próximas, cada um genial a seu modo, em universos distintos. Escritores são vistos como acadêmicos por uns, como eruditos ou intelectuais por outros, como artistas ou ativistas, alienados, enfim, até são vistos como bonitões por umas. Que coisa estranha.

“Vamos pedir outro. Tenho dinheiro.”

“Branco?”

Do restaurante, fomos, como combinado, ver aquele filme que queríamos ver e não podíamos deixar que escapasse, que os tais filmes, desses que apreciamos, geralmente duram uma semana e meia em cartaz, por falta de público, e parecem ser um contrapeso aos mais lucrativos, como o que se exibia num cinema bem perto daquele, e era o filme de maior sucesso do ano. Enquanto isso ocorre, o sucesso, temos a impressão de que aquilo – aquele filme ou aquela canção ou aquele livro – nunca mais será esquecido. Curioso é observar o passado, algo que às vezes me ocorre, um plano em que todos estão mudos, inertes, em suma, mortos. Obras registradas para não serem de vez esquecidas. E quanto trabalho deu… E quantas delas ingênuas, desnecessárias… Quantas delas apenas interessantes em seu próprio tempo… – tanto que se tornaram clássicas.

O cinema estava vazio. Nem havia fila na entrada.

“O filme deve ser bom. Que foi? Não estou brincando não.”

“Ai, meu Deus, como você é complicado.”

“Só um filme assim pode deixar o cinema vazio num sábado à noite.”

“Sei, sei.”

Era mesmo. Prêmio em Cannes. Festival de Veneza. Associação dos críticos. Imprensa, unanimidade. Gostei muito dos trechos em que não dormi, e acordei um pouco despenteado, com os créditos que subiam na vertical.

“Gostei.”

“Você não presta.”

A chuva repentina obrigou-nos a esperar com os outros, ilhados, sob a marquise do cinema. Infelizmente, todos comentavam o filme.

“Que chuva, hein? E isto é o que eu chamo um público restrito.”

“Ai, meu Deus…”, clamou ela, como se pudesse encontrar ajuda em Deus.

Às vezes, vamos a um motel. Mas como não posso gastar dinheiro com bobagens, isso só acontece uma vez ou outra, particularmente quando Júpiter se alinha com Vênus ou quando ela compra uma calcinha verde. Portanto: cinema, paciência.

A chuva passou. Andávamos devagar pelas calçadas molhadas. A umidade morna, o clima instável e o vapor que subia dos bueiros conferiam um ar feérico às ruas quase desertas do centro. Por sorte, ela também gostava disso.

“Temos mais coisas em comum além de nossos olhos azuis”, eu lhe disse, enquanto íamos de mãos trocadas na cintura e rostos muito próximos.

“Seus olhos não são azuis.”

“São, quando refletem os seus assim, de perto.”

“Os meus também não são.”

“Mas são. Pouco me importa que alguém tenha ou não tenha olhos azuis. O que nos faz agora juntos, além de estarmos abraçados, é a maneira como vemos essas ruas molhadas, o vapor quase azulado, esta noite de azuis-cinzentos, gris-cinza-azulados, que nunca mais se repetirá. Compreende agora?”

Ela continuou olhando os próprios pés, enquanto caminhava. Suspirou e fez com a cabeça que sim. Então suspirou e fez com a cabeça que não.

“A literatura…”, concluiu. “Sei…”

Mônica e eu nos sentamos no degrau de uma loja fechada, na travessa mais solitária, entre as galerias. Acendemos cigarros. Ela descalçou os sapatos. Por um certo tempo, ficamos ali, falando sobre quase nada.

A seta de Verena – Guia de leitura

10. Bom dia, ontem – sequência

8. Beckett lhe dá as boas-vindas – anterior

Sobre o livro

Imagem: Fiona Rae. Sem título – laranja, verde e preto (detalhe). 1991.

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Comentários

Uma resposta para “Dilemas inofensivos, obsessões horrendas”

  1. […] mais desta história: Dilemas inofensivos, obsessões horrendas – […]

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