Office in a Small City por Edward Hopper

Passeio (forçado) com Mônica

A loirinha engoliu toda a saliva de uma vez.
Todos nós aguardávamos o desfecho desse incidente constrangedor, principalmente eu, o eterno curioso.

Mônica esperava em meu quarto. Sentada na cama, curvada para frente, a mão direita apoiando o queixo, últimos dedos mordiscados entre os dentes, a outra esquecida no colo. Pernas cruzadas, um pé como solto no ar, desenhando voltas sobre si mesmo, tornando a refazer o giro no sentido contrário.

“Então? Vamos?”

Entregou-me a chave.

“Vamos.”

Nos calçadões do centro, papais noéis, pisadores de vidro, harpistas cegos, quiromantes, estátuas vivas, pregadores distribuindo impressos com imagens do paraíso ou apenas praguejando castigos, malabaristas de laranjas e… Bem, e uma diversidade de atrações que normalmente mais me entristecem. Nesse dia, notei também o pessoal de uma daquelas igrejas dos últimos dias. Há anos, fazem o mesmo tipo de manifestação, nos espaços centrais. Para frustração deles e, de certa forma, de muitos outros crentes enrustidos, o mundo – fazer o quê? – não acaba nunca. E a cidade é infestada de maníacos, principalmente nesses últimos dias, últimos dias mesmo, antes que o chamado ano-novo retorne, repassando a todos aquela surda sensação de algum misterioso privilégio ou de algo parecido com a felicidade.

Interior da grande loja. Circulávamos pelo térreo, chão de carpete, pilares espelhados. Mônica me conduzia. Apontava-me uma coisa e outra, puxando-me para onde bem entendesse, como de hábito.

“Olha só aquela blusinha!”, prendendo-me pela mão. “Não é linda? E olha, olha aquela sainha! Aquela ali, ó…”

A loja estava lotada. Não se dava um passo sem esbarrar em algum outro idiota. Era o Natal, a época do ano que os cristãos mais associam ao dinheiro.

“Olha… a-que-la… camisolinha! Jesus…”

Mas dizem que o Natal inspira outras transformações nos indivíduos, eu sei.

“Não está tão caro, olha só.”

O índice de suicídios é maior no Natal. Li numa revista.

“Olha aquele chapeuzinho!”

Mônica arranjou o chapéu-coco, inclinando a cabeça para o lado, fazendo pose, como uma meninazinha ingênua. Ridículo.

“E então?”

“Chaplin não ficaria melhor. Nem Kafka.”

Ela teria entendido? Teria sido um elogio adequado? Ou suficiente? Era o melhor que me ocorria dizer, eu, sempre muito culto, querendo parecer diferente daquela horda de fregueses risonhos, querendo crer que eu não era um abestalhado como os outros, que estava ali apenas por causa de… Bem, por causa de Mônica, só isso, por quem eu garantia não estar apaixonado. E ela estava bonita mesmo. Foi o que só então percebi, à minha maneira. Não que o chapéu inclinado ou as brincadeiras idiotas dela a transformassem. Era só porque ela me olhava de frente e sorria, o conjunto de seu rosto exclusivamente voltado para mim. Ela não percebeu, virou-se a buscar sua imagem num espelho próximo, não se demorou. Voltou o chapéu ao cabide, puxou-me à seção de cosméticos.

Ali, os balcões eram mais requintados, de vidro, talvez um vidro especial, mais resistente e à prova de preguiçosos como eu, que praticamente se acomodam nos cotovelos e nos antebraços, apoiando-se sobre qualquer superfície proveitosa, enquanto tentam disfarçar o tédio. E as funcionárias daquela loja, em especial, pareciam selecionadas pela aparência: não havia uma sequer que fosse bonita. Minha opinião.

“Olha aquela cor!”

“O quê?”

“Aquela.”

Um cartaz do outro lado. O rosto enorme de uma mulher pálida realçando a cor intensa do batom. A funcionária aproximou-se de Mônica. Magra, loira de cabelos cacheados, parecia estar usando boa parte da seção no rosto.

“Foi atendida?”

“Brigada, bem. Só olhando.”

Puxou-me pela mão.

“Olha aquele conjuntinho!”

“Moça, por favor…”

Senti que era puxado com força, com mais força do que antes, entre uma aglomeração de clientes embrutecidos pela agitação do Natal.

“Moça!”

“Mônica, acho que ela está chamando você.”

“Por aqui, vem. Vem, anda!”

“Ei, você!”

“Mônica, ela…”

“Ah, para de me chatear! Não é comigo não. Esse puta movimento e essa gente… Vamos, vamos embora, que eu já vi o que queria ver.”

Dessa vez, enlaçou-me o braço, firme.

“Por que a pressa? Você não queria ver os…”

“Aaah!”, fez ela irritada. E recusou-se a dar explicações.

Estávamos em uma das saídas, quando senti tocarem-me o ombro.

“Por gentileza…”

Uma senhora de uniforme escuro, crachá na lapela. Ao seu lado, a loirinha magriça dos cosméticos.

“Desculpe incomodar”, disse a mulher, com voz segura, algo ensaiada. Um gesto para que desobstruíssemos a passagem. “Talvez a senhorita tenha se esquecido de passar pelo caixa.”

“O quê?”

“Minha funcionária teve a impressão de que a sua amiga levou um estojo sem passar pelo caixa.”

“A senhora está insinuando…”, disse Mônica, deixando a frase pela metade.

“Peço desculpas pelo constrangimento”, tornou a supervisora. “Todos nós nos distraímos, às vezes.”

Mônica aprumou-se, girou ligeiramente o rosto para um lado e outro.

“Então eu me arriscaria a um escândalo por um estojo de cosméticos?”, disse ela, segura de si. “Não, não posso crer. Não posso crer que uma loja desse porte se ocupe em fiscalizar seus clientes habituais por causa de uma… de um… Oh, eu estou me sentindo ridícula.”

“Por favor, não nos entenda mal. Faz parte de nosso trabalho.”

O rosto da loirinha ficou vermelho, de medo. Eu estava confuso e surpreso. Mônica tornara-se, de repente, a pessoa mais discreta e polida deste mundo, usando palavras que não eram de seu hábito, medindo a entonação das frases e pronunciando-as com notável segurança.

“Bem, que posso dizer? Faço questão de colocar-me à sua disposição para uma revista. Embora considere degradante tal procedimento, creio que será suficiente para que se esclareça qualquer mal-entendido.”

A loirinha engoliu toda a saliva de uma vez. Tons de vermelho e púrpura revezavam-se sob a película de sua maquiagem – por um momento, pensei que ela fosse cair ali mesmo. Todos nós aguardávamos o desfecho desse incidente constrangedor, principalmente eu, o eterno curioso.

“Creio… que não será necessário”, disse, por fim, a supervisora. “Aceite nossas desculpas. E falo também em nome da loja. Faz parte de nosso trabalho. Espero que compreenda nossos motivos e volte sempre. Feliz Natal.”

“Compreendo”, disse Mônica com a mesma serenidade, nenhum gesto mais. “Sim, certamente tornarei a visitar a loja, obrigada.”

“Lamento mais uma vez.”

Mônica enlaçou-me o braço, agora sem pressa, e ganhamos a rua.

“Puxa, mas que situação incômoda. E você se portou muito bem. Muito bem mesmo, sabia?”

“Viu só?”

“Aliás, eu também estava me sentindo ridículo. Você viu a cara da funcionária?”

“Pois é, menino.”

“Pensei que ela fosse desmaiar ou sair correndo.”

“Isso que dá, acusar sem ter certeza.”

“Incrível que uma loja desse tamanho… Por causa de uma ninharia que… Se ao menos fosse alguma joia ou… Imagine, uma droga de um estojo de cosméticos. Como podem perder tempo com isso, quando há tanta coisa que… O que eles tanto queriam com o tal estojo afinal? Deve ser algum artigo caro, pelo jeito, quem sabe… Como será esse…”

“É assim, olha.”

Mônica tirou do bolso de meu casaco um estojo marrom de cosméticos, com a etiqueta da loja pendurada por um fio delicadíssimo.

“Olha só…”

Acho que fiquei um minuto inteiro sem dizer nada, o queixo descendo pela camisa. Ela me mostrava o estojo por dentro, o sorriso mais travesso que eu jamais vira em toda a minha droga de vida.

“Olha só, que charme isso aqui.”

“Mônica, você… Você…”

“Não é lindo? Fala a verdade.”

“Você… Você…”

“Vou me maquiar pra você, querido. Mm-am!”, beijo. “Feliz Natal.”

“Você… Você…”

Mônica é uma daquelas pessoas das quais não importa se você gosta ou não. Todos deveriam conhecê-la, tê-la visto e escutado sua voz pelo menos uma vez na vida.

“Olha! Olha aquele sa-pa-ti-nho!”

Puxou-me pela mão..

Fio delicadíssimo alude à situação ainda recente. Mas meu casaco, em dezembro, é um pouco demais. Acertar detalhes.

A seta de Verena – Guia de leitura

22. Borboletas com relógio ao fundo – sequência

20. Persistência dos labirintos – anterior

Sobre o livro

Imagem: Michael Loew. Através do espelho. 1955.

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