Office in a Small City por Edward Hopper

Retrato de meu hábitat quando jovem

É a vida, o mundo. Tudo envelhece, acaba história.
Fundos sem saída. Labirintos limosos.

A meu amigo Mário Antônio Imori

Voltei para casa, mas sem grandes preocupações. No caminho, havia decidido levar adiante meu projeto, mesmo que não pudesse editá-lo. Deve ser algum distúrbio, eu sei. Cheguei menos cansado que o normal, suspirando assim mesmo, olhei com má vontade a pasta com meus textos sobre a escrivaninha – eu pretendia levá-los à editora, mas, no último momento, optei por não mostrar nada daquilo a ninguém. Espantei uma barata cascuda que sugava minha xícara do dia anterior. Tranquei-me no quarto. Estava em casa.

A pensão onde moro abriga tipos estranhos, além de mim. Sem mencionar o casal de adventistas, uma diversidade de maníacos: o mestiço vendedor de tudo, um aposentado, bichas risonhas, beberrões de fígado resistente, uma lésbica… – aliás, a proprietária. No andar de baixo, há um estudante virgem que ainda acredita no governo.

A casa: não muito antiga, mas envelhecida por descasos e adiamentos. Quase todos os cômodos foram feitos dormitórios, inclusive uma saleta junto à entrada. A proprietária encheu tudo de camas e beliches, a fim de arrecadar o maior número possível de mensalidades. Ela é assim. Poria camas no quintal se alguém concordasse em dormir ao relento, o que, em nosso país, já está bem perto de ser uma alternativa – pagando-se por isso, é claro. Ela habita o último quarto do andar superior, o único com banheiro, isolada dos outros: nós. Gosta de mulheres e gatos. A casa é infestada de gatos. Primeiro, pensei que fossem três, e podia distingui-los. Vi os quatro juntos nos degraus da escada e, mais tarde, ouvi que ela os chamava pelos nomes, para dar-lhes de comer – a menos que tivessem sobrenomes, eram seis. E a menos que trouxessem convidados, no dia seguinte eu os contei, aos sete, sobre a pia, disputando um resto de doce. Vivem empoleirados nos degraus. Nas muretas. À porta dos quartos. Em cima da mesa. Às vezes, desaparecem completamente, e ninguém apostaria uma cueca velha a dizer onde teriam se enfiado. Outras vezes, estão todos na escadaria ao mesmo tempo, e é preciso espantá-los para poder subir. Numa das feiras que organiza em seu quarto, o mestiço conseguiu convencer a proprietária a trocar uma de suas mensalidades em atraso por um estoque de xampus especiais para felinos domésticos, “produto de primeira”. Ela o experimentou em seu gato predileto, um angorá cinzento, que perdeu toda a pelagem em dois dias e levou várias semanas para parecer bonito outra vez. Nunca mais ela negociou as mensalidades com o mestiço e, desde o incidente com o xampu devastador, não lhe compra um botão.

Mais. Aos domingos, as bichanas (não, não os gatos) sobem à laje da caixa-d’água para tomar sol. Esses rapazes, que aliás não se animam muito quando são chamados de rapazes, ficam ali estirados, seminus, levam umas toalhinhas e passam o dia tagarelando em voz alta sobre infinitos assuntos que a mim não parecem interessantes que valessem ser mencionados, mas sim para eles, como se pode imaginar. Um morador do prédio vizinho atira alguma coisa como um rolo de papel higiênico pela metade, e isso os põe furiosos. É normal os vizinhos jogarem coisas pela janela. A pensão é cercada de prédios residenciais baratos, pardieiros e treme-tremes, de onde as pessoas atiram papéis e embalagens imprestáveis na área do tanque e da caixa-d’água, supondo ser nosso pequeno pátio uma lixeira.

Mais inconvenientes do que as bichas são os homens de verdade, e chamá-los assim configura, no mínimo, um exagero, antes um vício de linguagem. Três desses dividem um mesmo quarto, orgulham-se disso. Costumam falar em voz alta, com a agressividade áspera que julgam necessária para que não se levantem suspeitas acerca de sua virilidade. Num sábado em que a pensão se encontrava praticamente deserta, um desses rapazes voltou com uma ninfeta de programa que não esperava ser surpreendida por seus colegas, ao adentrar o quarto. Na manhã seguinte, uma espécie de rastro, pingos de sangue desciam as escadas até a porta da frente. Que mais? Bem, sempre há mais que se diga, nem tudo vale a pena. E esses são os que, por descuido, chamei homens de verdade.

O mais bêbado dos bêbados mantém uma rixa com a proprietária, porque ela não lhe dá uma vaga no andar de cima, e ela diz que nunca lhe dará uma vaga no andar de cima enquanto ele não parar de beber, e ele diz que não vai parar de beber enquanto ela não lhe der uma vaga no andar de cima. Por isso, ela não lhe dá uma vaga no andar de cima. Por isso, ele não para de beber. Volta pela meia-noite, tropeçando nos gatos e ralhando com a proprietária, que mal o escuta de seu quarto, onde costuma estar jogando canastra com alguma amiga.

Quando vim para cá, eu tratava os pensionistas com respeito e amabilidade, pois não os conhecia ainda. Era o próprio jovem cavalheiro, querendo apertar a mão de todo mundo. Minha primeira experiência embaraçosa deu-se quando tive de transmitir ao senhor Lineu Domingos o recado de outro morador com quem eu esbarrara na entrada. Bati à porta, medindo as pancadas, e logo o reconheci pela descrição que o outro me dera: orelhas de abano, pele de peru, cabeça de ovo. Ele mesmo.

“Com licença, senhor… Domingos. Sobre o jornal… Ele pediu que o senhor tenha um pouco mais de paciência e… Disse que o devolve amanhã. Quer ficar com o caderno de empregos por mais um dia e…”

“Ah, salafrário!”, o senhor Lineu Domingos vociferou na direção do quarto dele. “Cretino! Viado!”

“Acho que ele já saiu, senhor… Domingos.”

“Filho de uma puuuta!”

É que o senhor Lineu Domingos coleciona o jornal e fica furioso com uma coisa dessas. Cada situação, nem fale.

Minha janela dá aos fundos da casa e dos prédios vizinhos. Labirintos de muretas, degraus mal recortados entre caixas e latões, meios-telhados esquivos, becos de paredes escurecidas, salitrosas. É a vida, o mundo. Tudo envelhece, acaba história. Fundos sem saída. Labirintos limosos. Crianças gritando, mães irascíveis, casais se espancando ou apenas discutindo, toda sorte de ruídos humanos, entrecortados por cães de diversas espécies e tamanhos, daí o fundo de latidos indistintos, mal direcionados e confusos, que os animais são como os homens e as árvores, e não sabem por que estão vivendo.

Por último, o espetáculo humano ainda alimenta a literatura. A convencional, a inercial – porque tudo já foi dito, e ninguém aguenta mais. Foi assim que comecei a escrever. Caricaturava os pensionistas em meus contos, como se fosse possível caricaturá-los, sem correr o risco de que me descobrissem, pois eles nunca liam nada, menos ainda obras de ficção e bem menos ainda um desses contos de que tanto me arrependo. Antes de o Arcádio Raposo publicá-los pela primeira vez, eu os enviava a diversas editoras, na esperança de que reconhecessem seu valor literário (convencional, inercial), e recebia tudo de volta, com cartinhas amáveis e catálogos de livros com desconto. Quando chegavam, no envelope timbrado da editora, um dos cretinos gritava, lá de baixo: “Encomenda pra você!”. Ia ver, não era encomenda nenhuma, eram meus melhores contos bem embrulhados num envelope pardo, a cor que menos me alegra. O pessoal, aqui, não sabe ao certo o que diz. Se gritam cobrança!, é um cartão. Se gritam cartão!, é uma carta. Se gritam carta!, é um extrato bancário. Quando não têm o que dizer, enfiam por baixo da porta. Como parte da rotina, e como tanto mais em nosso país, todos se acostumaram a ouvir uma coisa e entender outra.

Sim, toda memória é falsa. Não, todas não. Algumas, nítidas. Nítidas. Quase perfeitas. O que não significa falsas. São reproduções quase exatas de uma imagem, uma voz. Por que não disse um som? Porque geralmente são vozes o que nos marca, coisas boas ou não, que nos tenham dito. Só existe um passado. Por isso, deve existir apenas uma memória-chave do passado.

Meu quarto

Não é possível, devo estar doente. Não estou brincando. Foi uma recaída. Não havia nada a dizer sobre a pensão. Nada mesmo, nada que valesse a pena. Tudo pode ser matéria para a arte, dizem os poetas. Mas não consigo, não. Sobre o meu quarto, só que foi para onde viemos, Mônica e eu, depois que os soldados chegaram. (Mais tarde falarei sobre isso, caso eu não me esqueça.) Tranquei a porta, para que nos sentíssemos mais seguros. Foi a primeira vez que ficamos sozinhos.

A seta de Verena – Guia de leitura

 14. “Pois eu faço questão!” – sequência

12. O Arcádio do Conselho Editorial – anterior

Sobre o livro

Imagem: Théophile Alexandre Steinlen. Gatos. 1910.

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