Office in a Small City por Edward Hopper

Perdemos o fim da missa

Sei do mundo até certo ponto, pois somos hoje um complexo formigueiro em intensa atividade.
E eu, apenas um homem. Pois é.

Estava frio. Apertei-me em minha jaqueta mais pesada, embora Glauco Pinheiro suportasse a brisa de junho em seu terno azul-marinho mais largo do que justo. Glauco Pinheiro e eu devemos formar uma dupla meio estranha, eu sei. Ele é mais alto – e tão feio quanto eu. Estivéssemos metidos em jaquetas idênticas, diriam os outros que éramos irmãos, talvez primos, não exatamente pela semelhança física, pele ou cor dos cabelos, mas pela maneira de andar ou levar a mão ao queixo quando quedava um de nós a cismar, diria ele, quando se punha a pensar, diria eu. Na verdade, são tais diferenças pouco ou nada relevantes, porque afinal a linguagem, qual seja, não passa de um código. Mas o que parece é que nos encaminhamos ao mesmo vértice, que nos detemos pelas mesmas perguntas, que nos inquieta a mesma poesia, mas sempre por caminhos diversos, guiados por diferentes ideais, diria ele, intenções, diria eu, e vários outros graus de miopia. Tanto que ele agora me arrastava a uma cerimônia que em nada me seria útil, muito menos interessante. Era um de seus vértices. Suas necessidades, não minhas. E são tantos os que ainda acreditam na poesia…

“Vamos, homem!”

Eu andava devagar, demorando-me a atravessar todas as ruas, com grande esperança de perder a maior parte da missa. Mas ele vinha me puxando e empurrando cidade fora desde que saíramos do metrô.

“Espanta-me que tenha se esquecido. Foi destaque nos jornais de hoje. Esqueceu de ler o jornal?”

Foi nada. Duvido. Destaque por quê? Só se o mundo inteiro parou. Ou ele viu no jornalzinho do bairro.

“Vamos, vamos! Já estamos quase lá!”

Ler jornais, eis um vício que perdi, depois de Verena. Quando ainda escrevia versos, acreditava imprescindível manter-me atualizado, em dia com o planeta, com o país, a cidade, o bairro. Mais tarde, concluí que a obrigação da leitura diária podia ser erradicada sem que isso prejudicasse minha visão, inclusive política, do mundo. Trata-se de uma liberdade que me concedo conscientemente, ao contrário dos que se dizem livres e se recusam a pensar na política por não assimilarem que sua condição de liberdade, na qual se insere a liberdade de não pensar em política, depende quase totalmente de circunstâncias políticas. De resto, nem sempre me interessam os jornais. Sei do mundo até certo ponto, pois somos hoje um complexo formigueiro em intensa atividade. E eu, apenas um homem. Pois é.

O metrô nos deixou no outro lado da cidade, onde se erguia a tal igreja.

“Não poderiam ter escolhido uma igreja mais próxima do centro? Porque, afinal…”

“E daí? Tudo nesta cidade é longe. Afinal o quê? Ai, pelo amor de Deus…”

“Quê? Não posso dizer?”

“Vá, diga logo.”

“Afinal, se Deus está em toda parte, uma igreja mais próxima nos cairia bem.”

“Mais depressa, não são horas de discutirmos filosofia. Ai, Deus-Pai…”

“Isso não é filosofia. Mas essa do Deus-Pai dá o que pensar, salvo seja.”

“Não agora, não agora. Esqueça isso.”

Imagine se eu iria esquecer.

“É de supor que uma energia assim, fora de nosso alcance e fora de controle, não sendo física, não sendo enfim concreta, não possa ter sexo, mas chamar de Ele, que é a moda dos últimos quatro mil anos, só mesmo uns míopes como nós…”

“Mais depressa, mais depressa, vamos! Não haveremos de perder o fim da missa.”

Perdemos o fim da missa. Os convidados já se movimentavam pelo templo, livres dos poderes de arregimentação que, durante uma hora inteira, lhes controlara os gestos, as falas e o silêncio. Todos pareciam generosos e serenos como se houvessem ingerido algum néctar. Trocavam pequenos sorrisos que se desenhavam em seus rostos de maneira indelével. Glauco Pinheiro encontrou o acadêmico que o havia convidado. Cumprimentaram-se. Apresentou-me. Tive de apertar sua mão. O rosto bonito, de um cinquentão bem cuidado, destacava-se, de seu fardão escuro, como um astro magnetizante .

“Uma pena terem perdido a missa”, disse ele.

“Fizemos o possível.”

“É…”, aquele meu é de novo, como descrito anteriormente.

O acadêmico pareceu entristecido por nós, mas logo voltou a sorrir. Sua voz e a entonação característica com que conduzia as palavras revelavam-no senhor de uma inteligência clara, segura e contagiante. Perto dele, Glauco Pinheiro parecia mais feio.

“Os músicos nos brindaram com trechos de Beethoven e um oratório de Bach.”

Fiquei desconsolado e triste, como se murchasse de repente. Disso eu gostava. Glauco Pinheiro fitou-me contraindo os lábios de maneira triunfante e como reafirmando que era eu o culpado. Claro que era.

“Você também escreve poesia?”, perguntou o acadêmico, voltando-se em minha direção.

Ia logo dizer que não, mas achei que não custaria nada ser agradável a um homem tão cativante.

“Um pouco. Não muito.”

“Ainda um recalcitrante, ao que parece. Mas digo ao senhor que se trata de um talento a ser lapidado.”

“Muito bem”, disse ele, sem saber do que eu escrevia.

Sim, eu estava impressionado. Se o velho Arsênio fosse metade assim, talvez eu não resistisse. A julgar por seu meio, devia ser o tesão das professoras primárias e das mulheres dos outros. Continuou discursando e lançando olhares aleatórios entre Glauco Pinheiro, eu e alguns que passavam. Acho que não ouvi uma só palavra. Estava apaixonado.

“Boa noite, senhora… Como vai?… Boa noite… Boa noite…”

A paixão durou pouco, devido à súbita associação que a minha pestilenta memória fez o favor de trazer à baila: eu e meus quinze anos, sendo cumprimentado pelo diretor da escola, um prêmio de poesia. Apertava-me a mão esse homem aparentemente correto, enquanto discursava simulando sua costumeira naturalidade, supondo ele que, um dia, seria eu um grande homem, o que ele tinha como grande homem, com isso despertando em meu íntimo vingativo, entre ódios secretos, uma sensação de vileza. Eu olhava, ao fundo, o retrato de Machado de Assis, menino de morro, ascensão social e exemplo que querem os outros como encarnação de seus métodos de controle. Este à minha frente, eu considerava, se não finge tanto quanto eu, espera, como todos, que eu escreva por ele, que eu veja o que ele ainda não vê, que esclareça algo do ridículo mistério do qual somos parte, nós dois, agora mesmo, eu a ser cumprimentado, ele a cumprimentar-me, também de pé sobre a vida, sem suspeitar talvez de que eu era, como ainda sou, incapaz, tragicamente incapaz, de atinar com a mais simples das respostas.

“Boa noite, doutor… Boa noite…”

Por vezes, na mesma noite, conforme também trazia minha pestilenta memória, enquanto uns elogiavam, incentivando-me a seguir em frente – melhor dizendo, seguir por onde queriam que eu seguisse, menos eu do que eles –, outros, pelo mesmo motivo, consideravam-me com estranha piedade, como se pensassem: o que vai ser desse menino?

“Boa noite, mestra… Boa noite…”

Ele acabava de cumprimentar, muito discretamente, uma mulher bonita e austera, cuja presença de imediato atraiu-me a atenção, pois ela não me parecia comum, e em nenhum momento eu a vira sorrir. Soube depois, por Glauco Pinheiro, que se tratava possivelmente, e até onde pude perceber nas palavras dele, da figura mais brilhante entre os componentes daquela academia, tendo inclusive publicado livros por duas grandes editoras e tendo sido citada internacionalmente por seus textos. Minha pestilenta memória reconheceu-a por nome, eu já havia encontrado algo sobre seu trabalho em algum artigo ou matéria dos meios literários, tempos passados, mas nunca lera de fato sua escrita original. Eu desconfiava, mais ou menos como quando se avançam os olhos miúdos numa neblina, que uma mulher daquele tipo era de fato talentosa, algo que ainda me escapava, mas que uma vaga intuição não deixava perder-se de todo. Estranhava apenas que parecesse tão arrogante. Durante a cerimônia, constatei essa mesma impressão, e assim era ela, segredou-me Glauco Pinheiro. Lamentei que não fosse outra sua personalidade e num instante imaginei dividir com ela longas tardes numa varanda ou num jardim, conversando sobre literatura e beleza, com isso conduzindo a que ela sorrisse ao fim de tudo, no fundo tencionando salvá-la, que, sendo nós mortais, não há um só motivo para sermos arrogantes. (Fôssemos nós imortais, menos ainda teríamos.)

“Boa noite, professor… Boa noite, doutor…”

Por outro lado, também eu desconfiava que nem tudo era o que parecia, como aliás não só em noites destas, quando nos vestimos tão apropriadamente, registre-se. A escritora que eu considerava era arrogante e autêntica. Os humildes é que tentavam enganar-me. Eram eles os mais perigosos. Quando sozinhos, eu sabia que eles cultivavam grandes ambições. Em grupo, tornavam-se modestos, generosos e singelos. Assim se fizeram por tanto tempo que certos trejeitos como se lhes pegaram às expressões, e hoje eles não mais sabem quando fingem ou quando de fato desejam o bem alheio, nem podem mais discernir quando verdadeiramente consideram-se humanos como os outros humanos, pois eles próprios acabaram convencidos de sua farsa. Uma pessoa humilde não estaria ali.

“Boa noite… Boa noite…”, ia repetindo gentilmente o acadêmico bonitão.

Eu já começava muito sutilmente a sentir pontadas de tédio nos rins e talvez no cérebro. Mas eis que surgiu um ancião miúdo e muito míope, que também era imortal, conduzido em uma cadeira de rodas, e o interrompeu, como também às minhas péssimas reflexões.

“Doutor, como vai? Uma honra…”

“Com a graça de Deus. Um grande prazer.”

“Sim, um grande prazer…”

Fomos apresentados. Tive de apertar sua mão.

“Eu me lembro de você! Nunca esqueço um rosto!”

Paralisou-me um calafrio. Eu não me lembrava de tê-lo visto antes, mas receava que reavivasse alguma maldita situação em que estivéssemos ambos envolvidos. Porém, desta vez, minha pestilenta memória não dava sinais de registro – embora, de uns tempos para cá, situações malditas tenham se tornado quase uma constante em minha vida.

“Fui ao lançamento de seu livro no Pavilhão da Secretaria da Cultura. Nunca esqueço um rosto! Um livro de sonetos. Belíssimo!”

“Perdão, o senhor está me confundindo…”

“Sonetos! No Pavilhão!”

“Não tenho nenhum livro de sonetos.”

Todos, ali perto, olhavam para mim, inclusive a senhora que empurrava a cadeira de rodas desse respeitável acadêmico – mas ela não demonstrava nenhuma curiosidade, apenas ficava olhando para mim, como olhava qualquer outra coisa. Dava medo.

“Ora, deixe de pilhéria, rapaz! Era você mesmo, você mesmo, eu me lembro perfeitamente. Sonetos belíssimos! A Secretaria da Cultura, na zona sul. Um livro de sonetos. Nunca esqueço um rosto!”

“Perdão, eu insisto: o senhor está enganado”, disse eu no tanto quanto pude ser educado, o tanto que a mamãe me mandou.

Estava mesmo, coitado. Só o que me faltava: um livro de sonetos. Os outros consideravam-me com curiosidade. Glauco Pinheiro tinha os olhos muito abertos, o queixo pendente. Mas eu não havia feito nada daquilo, não havia publicado poema algum, soneto algum, e nunca tinha ido ao Pavilhão da Secretaria da Cultura. Nem sabia onde ficava a zona sul.

“Não é possível…”

“Pois eu nunca esqueço um rosto!”

A seta de Verena – Guia de leitura

16. A bela e as esferas – sequência

14. “Pois eu faço questão!” – anterior

Sobre o livro

Imagem: Rembrandt van Rijn. Autorretrato rindo. 1629.

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Comentários

Uma resposta para “Perdemos o fim da missa”

  1. Avatar de Amanda Lourenço
    Amanda Lourenço

    Encantador!!
    Se a minha memória pestilenta não me falha, eu estive duas vezes em uma missa!

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