Office in a Small City por Edward Hopper

Gotas, goteiras, chá com bolinhos

Fellini também fazia isso, sem tê-lo notado ou planejado necessariamente.
Ali estava o tema principal de seu trabalho: sua própria vida, em crise.
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gotas goteiras

Mais do que de novas paisagens, precisamos de novos olhos, observou Marcel Proust. Um dia, quando esse sensível escritor tomava chá com bolinhos, ocorreu-lhe, influenciado pelo aroma e pelo paladar característicos dessa combinação, resgatar definitivamente sua vida e seu universo, tão encantado quanto real, desde a infância até seus amores mais recentes, passando por tudo o que vivera no campo e na cidade. Essa carência, esse desejo, muito mais do que um projeto (como preferem e apreciam hoje os editores e os autores mais práticos), deu origem a uma série de sete primorosos romances que marcaram fortemente a literatura do século 20 e que foi intitulada, com toda razão de ser, Em busca do tempo perdido. Ao mergulhar os bolinhos no chá, retornavam-lhe nítidas imagens de seu passado – um momento que ele registrou, como se pode perceber, com algum entusiasmo: “… agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do sr. Swann e as ninfeias do Vivonne e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências e a igreja e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.”

Proust explora todos os elementos de sua infância, de sua adolescência, enfim, tudo que o traz à sua vida presente, ao adulto que é hoje. Esses elementos estavam lá o tempo todo, arquivados em seu inconsciente, agora despertados pela memória. São imagens, pessoas, lugares, itens comuns a todos nós, sons e imagens que colecionamos, querendo ou não, ao longo da vida. Assim, como naquelas fábulas orientais em que o viajante percorre o mundo todo em busca de uma flor que, sem que ele houvesse notado, já florescia tímida a um canto de seu próprio jardim, Proust descobre que os melhores temas para sua obra monumental eram sua própria vida com seus cenários, seu espaço e seu tempo, resumindo: seu melhor tema era… ele mesmo.

O diretor de cinema italiano Federico Fellini soube que seu colega sueco, Ingmar Bergman, havia declarado que só realizava filmes sobre si mesmo. Fellini também fazia isso, sem tê-lo notado ou planejado necessariamente. Quando assistimos ao seu autobiográfico , título proveniente da quantidade de obras que havia produzido até então (oito filmes seus, um em parceria com Alberto Lattuada, portanto meio filme), constatamos que ali estava o tema principal de seu trabalho: sua própria vida, em crise.

Obras literárias encantadoras podem ser baseadas em motivos simples. Tchekhov e e Maupassant produziram contos sensíveis e interessantes descrevendo situações comuns, pessoas comuns. (Provavelmente esses textos sejam os avós da crônica moderna, gênero tão brasileiro.) Afinal, o que conta não é o tema, mas o que o artista faz dele. Não é tão importante o caso pitoresco ou trágico, a curiosa história de coincidências, a narrativa da saga sangrenta (e longa, que as sagas sempre o são), o empolgante mistério do crime a ser desvendado, não: nada é tão importante quanto a maneira de contar.

Enquanto Marcel Proust tentava, sem sucesso, publicar seus livros no Velho Mundo, aqui, no Novo Mundo, vivia sua própria infância o poeta chileno Ricardo Reyes, que mais tarde adotaria o pseudônimo pelo qual seria mundialmente lembrado: Pablo Neruda. Na verdade, foi o velho mundo desses dois gigantes (o passado desde a infância, as casas habitadas, os lugares vividos, a natureza local característica, em suma, suas raízes) que lhes forneceu o suporte e a inspiração para grande parte de suas obras. Seu velho mundo tornou-se um novo mundo, após revisto e revisitado – descrito de maneira admiravelmente bela.

Neruda escreveu sobre todas as formas telúricas de que dispunha. Não propriamente em um determinado poema. Mas ao longo de sua obra, ao longo de sua vida, inserindo-as mesmo em trabalhos orientados por questões políticas e sociais, como o célebre Canto geral. Seu pai era ferroviário em uma remota aldeia e sonhava que o filho único pudesse ser pianista. Quando ia à capital, fazia as contas para a aquisição de um piano, sempre caro demais para suas condições econômicas. Mesmo assim, tirava medidas da porta da pequena casa de madeira para ver se o piano passaria por ali. O menino ouvia os pais conversando sobre seu futuro enquanto adormecia e, durante as noites tempestuosas de inverno, sua madrasta espalhava pela casa bacias e vasilhas de todos os tipos e tamanhos para conter as goteiras do precário telhado. Em cada recipiente, as gotas de chuva produziam um som característico, mais agudo ou mais grave, conforme caíam. E o pequeno Ricardo adormecia ao som da chuva, filtrada pelas goteiras.

Mais velho, tecendo suas memórias, ele nos conta que o piano nunca chegou. Que as goteiras duraram todo o inverno e foram o piano de sua infância: “… suas notas, digamos, suas goteiras, têm me acompanhado por onde me coube viver, caindo sobre meu coração e sobre minha poesia.”

As chuvas, mais do que os pianos, sempre inspiraram os artistas. Bem, mas este tinha mesmo um piano: o compositor polonês Frédéric Chopin, autor de peças curtas e muito criativas, que legitimaram sua permanência na rica e diversificada história da música ocidental. Conta-se que sua esposa, George Sand (pseudônimo de Amandine-Aurore-Lucile) havia saído para um passeio na trilha de um bosque próximo, quando uma tempestade armou-se e abateu-se repentinamente sobre a região. Como ela demorava a voltar, o inquieto Frédéric, olhando ansiosamente pela janela, via (e ouvia) uma gota persistente caindo da moldura da vidraça, repetindo uma única nota em seu coração: a preocupação com a amada perdida. Em vez de roer as unhas, ele voltou seus dedos para o piano e… compôs o clássico Prelúdio da gota d’água. Uma pequena obra-prima. Uma de suas peças mais conhecidas e admiradas. Observando uma gota d’água!

Tudo isso deve ser mentira. Chopin era meticuloso e, como todo compositor dedicado, certamente não trabalhava assim, de improviso, teclando aqui e ali, copiando o som de uma gotinha irritante, preocupado com a esposa. O mais próximo disso que se pode considerar, segundo o biógrafo Ates Orga, foi o fato, registrado no diário de George Sand, de que ela chegava em casa “após uma forte tempestade e ouviu Chopin tocar um de seus prelúdios ao acompanhamento monótono das gotas de chuva que caíam dos beirais.” Nunca saberemos qual dos prelúdios, compostos nessa mesma fase, teria sido este em especial. (Esse nome, Prelúdio da gota d’água, foi registrado posteriormente pelos editores. Trata-se do Prelúdio n. 15 em ré bemol maior. Outros prelúdios desse período também se sustentam sobre a monotonia de uma mesma nota repetida, podendo vários deles ser considerados prelúdios de gotas d’água.) Os prelúdios já vinham sendo rascunhados em Paris, onde ele e a esposa estavam há poucos dias, antes de partirem para uma temporada em Mallorca, por questões de saúde. Por essa época, a região estava muito chuvosa. Chopin estava na Espanha.

O  que interessa para nós é o fato de ele ter desenvolvido uma peça tão bela e criativa a partir de um tema absolutamente simples: uma gota de água. Uma única nota que se repete ao fundo, orientando toda a estrutura, suscitando a estética pela repetição, em suma, o que impressiona é o fato de ele ter produzido uma peça tão interessante com base em algo tão simples.

Dizem que o gênio vê onde outros não veem. Na ciência, Pasteur descobriu coisas importantes observando a fervura do leite, e Lavoisier analisava o fundo de canecas de metal depois de evaporada a água fervida. São eventos de nosso cotidiano. Mas claro que não temos tempo nem paciência para saber por que se forma a nata do leite ou por que o fundo de um tacho nos olha com aquela crosta enegrecida que não estava lá antes. Pasteur é um pioneiro da microbiologia. Lavoisier é o fundador da química, que pôs fim à alquimia para sempre.

Na pintura, particularmente os impressionistas se apropriavam de cenas do dia comum, rejeitando temas considerados sublimes ou muito formais. Van Gogh, por exemplo, pintava campos cultiváveis, vasos de flores e flores sem vaso, ciprestes, oliveiras, amoreiras e outras árvores, noites estreladas e seu próprio quarto, que era e não era um quarto qualquer, pois era o quarto do artista. Como Van Gogh, Neruda nos sensibiliza com suas palavras. Chopin nos encanta com sua música. E Proust construiu sua obra monumental descrevendo ambientes comuns.

Gotas, goteiras, chá com bolinhos… – só o que há de mais importante na vida. Pode ser que alguns de nós tenhamos vivido situações até mais interessantes ou dramáticas do que esses artistas. O problema é que não escrevemos sobre elas.

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(O tema desenvolvido acima integra a palestra Veja de novo: relações entre textos visuais e narrativos, apresentada recentemente.)

Leia mais sobre autores criativos e obras singulares: Não me venham falar da lua

Sobre Hans Christian Andersen: A sereia suicida

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Comentários

13 respostas para “Gotas, goteiras, chá com bolinhos”

  1. Avatar de Rafaela

    Fabuloso!

  2. Avatar de Jose Antonio Turci

    Quase tudo já foi dito sobre seu texto, eu acho que seu texto demonstra a sua sensibilidade e poder de observação, quesitos indispensáveis para um artista como você. Parabéns e obrigado por nos presentear com seu trabalho.

  3. Avatar de Joice

    Parabéns professor!! Estou adorando seus textos, adoro literatura. É um grande crescimento ler o que escreve, sempre recheado de conhecimento, não só de literatura mas de tudo. Você é uma grande pessoa, a convivência com você (mesmo que seja somente em sala de aula) me traz muitas perspectivas, vontade de saber mais, de aprender mais. Obrigada.

    1. Avatar de Perce Polegatto
      Perce Polegatto

      Joice, muito obrigado. Que bom saber que está gostando. Espero continuar correspondendo a essas expectativas.

  4. Avatar de zilah luiza

    Amo tudo que os poetas escrevem, pois acho que são muito iluminados para isso. Ser poeta é um grande dom de deus. Adorei tudo e vc tbm. Bjos…

  5. Avatar de Pamela Nunes

    Sua sensibilidade apetece minha sede de belas palavras.

  6. Avatar de Monteiro

    Perce, há uma canção que diz assim “Sempre vai haver uma canção
    contando tudo de mim sempre vai haver uma voz contando tudo, tudo
    de nós.” Por isso existiu um Proust, um Rubem Alves, uma Clarice Lispector, um Polegatto recuperando a filosofia, a arte enquanto de mim contarei com apenas o entusiasmo e com a boa leitura do que eu queria tanto saber. Abraço!

  7. Avatar de Eloah

    Adorei seu texto, “Gotas, goteiras, chá com bolinhos”, assim como aprecio sua sensibilidade para a seleção e comentários das obras e dos autores citados. Também sua escolha dos temas é sempre muito feliz.
    Particularmente, considero “À la Recherche du Temps Perdu”, de Proust, uma série imperdível.
    Em todas as artes, como você tão bem evidenciou, quando seus cultores focaram as coisas singelas e as cotidianas ocorrências, ou deram corpo e voz aos sentimentos espontâneos e latentes, às naturais e corriqueiras recordações de pessoas, fatos, lugares, momentos, sons e cheiros, lograram captar alma e beleza sem manifestação visível para outros olhos não acostumados a ver.
    Essa observação me fez lembrar o querido cronista Rubem Alves, que, em várias ocasiões, insistiu na necessidade de que os olhos sejam educados para ver. Ele aborda essa questão em muitas de suas frases, tais como:
    ” Há muitas pessoas de visão perfeita que nada veem. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.”
    ” As palavras só têm sentido se nos ajudam a ver o mundo melhor. Aprendemos palavras para melhorar os olhos.”
    ” A primeira tarefa da educação é ensinar a ver.”
    “É através dos olhos que as crianças tomam contato com a beleza e fascínio do mundo.”
    “Já li muitos livros sobre Psicologia da Educação, Sociologia da Educação, mas, por mais que me esforce, não consigo me lembrar de qualquer referência à educação do olhar ou à importância do olhar na educação, em qualquer deles.”
    ” Sem a educação das sensibilidades todas as habilidades são tolas e sem sentido.”
    ” Quero ensinar as crianças. Elas ainda têm olhos encantados… a capacidade de se assombrar diante do banal.”
    ” Para as crianças tudo é espantoso: um ovo, uma minhoca, uma concha de caramujo…
    Coisas que os eruditos não veem.”
    ” Nenhum professor jamais chamou a minha atenção para a beleza de uma árvore… ou para o curioso das simetrias das folhas.”
    Talvez para alguns isso tudo possa parecer piegas, mas eu endosso essas palavras com muita convicção. A pressa, os compromissos e a vida agitada não nos deixam tempo para ver. E, sem observar, sentir e interiorizar, como pintar, compor, escrever?
    Um ato repetido tantas vezes, o molhar o bolinho no chá, abriu os olhos de Proust e lhe permitiu enxergar o que ainda não tinha conseguido ver. Neruda teve os olhos e os ouvidos abertos vendo e escutando as goteiras, como se as visse e ouvisse pela primeira vez.
    Chopin, olhos e coração voltados para as gotas de chuva, teve sensibilizado, naquele instante, seu grande gênio criador.
    Talvez, mais triste do que ter perdido oportunidades de escrever sobre ou, de alguma forma, tornar públicas as experiências interessantes, emocionantes ou dramáticas da nossa vida, seja o fato de que elas nos passaram despercebidas porque, como disse Rubem Alves, não fomos educados para ver.
    Perce, gosto muito de ver seus trabalhos.
    Parabéns e um abraço.
    Eloah

  8. Avatar de Aparecida de Fatima Cantador
    Aparecida de Fatima Cantador

    Fatima..
    Que viagem, que maravilha poder com você caminhar por caminhos tão belos e inusitados do nosso próprio dia a dia. De verdade a história mais linda é aquela escrita com nossa própria vida e poder contá-la ainda em vida faz toda diferença, além de ser terapeutico é deveras enrriquecedor, ai daquele que não para nos pequenos e doces momentos, ai daquele que deixa passar as belas oportunidades de crescer com os doces e pequenos momentos, você nos alertou, nos abriu os olhos, que esse ano que se inicia seja rico de oportunidades e que não nos descuidemos de nenhuma delas. Felicidades e Vida Longa. Abraços!

  9. Avatar de Carla Alexandra Ezarqui
    Carla Alexandra Ezarqui

    Oi Perce!
    Em se tratando do problema apontado: “O problema é que não escrevemos sobre elas” eu diria que quem não as escreveu não teve sensibilidade o suficiente para perceber o quão interessante ou dramática determinada situação vivida fora. Portanto, foram apenas gotas, goteiras ou chá com bolinhos, nada mais… Para escrever algo fascinante sobre alguma coisa, é necessário antes sentir o fascínio que esse algo possa causar ao ter-se observado alguma coisa.
    Quanto a reconhecermos que não as escrevemos, creio que é estar com caneta e papel em mãos, pois o primeiro passo foi dado: reconhecer ter vivido algo interessante o bastante para ser escrito, em vez de ter sobrevivido a mais um dia, a mais uma situação, ter sido atingido por mais uma goteira, ter tomado mais um chá.
    Abraços!

  10. Avatar de Geovane Monteiro
    Geovane Monteiro

    Já dizia uma música que sempre vai haver alguém que fale por nós. Proust e tantos outros transformando em arte rara o que julgamos tão insignificante ou tolo. Por exemplo, seu texto, Perce, não sou capaz de tanto resgate, de tanta memória, mas ele acabou sendo meu. Geovane

  11. Avatar de Perce Polegatto

    Ely, muito obrigado, fico contente em ouvir você, que foi minha mestra e tanto me influenciou.
    Desejo-lhe o mesmo, que em 2012 continue divulgando cultura e literatura como sempre fez com tanta dedicação e entusiasmo. Eu e muitos outros devemos muito a você.
    Beijos e um grande abraço, renovado de esperanças.

  12. Avatar de Ely Vieitez Lisboa
    Ely Vieitez Lisboa

    Meu querido,
    Com um título simples, quase coloquial, você escreve um texto que é uma verdadeira aula riquíssima, sobre literatura e arte. Isto é um exemplo perfeito de genialidade. Aliás, todos os seus textos são muito bons, profundos e eruditos.
    Que você continue alimentando a Cultura e tenha um 2012 repleto de alegria, amor e grandes realizações.
    Beijos.
    Ely

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