Office in a Small City por Edward Hopper

Carta com sarcófagos

Sob a máscara mortuária de olhos delineados, sob o surdo silêncio dos gérmens e o teto de trevas, repousa, em seu sono letal, a princesa.

Quarto e sala é como chamam esta cela. A palavra estrangeira soa um pouco mais alegre, mas claro que não a liberta nem altera seus limites. Nada há de especial neste cubículo onde às vezes sonho ou interpreto minhas solidões, exceto por uma porta extra no fundo da saleta em L. Que eu saiba, é o único apartamento com esse inútil apêndice. Sendo no último andar, coincide com o topo do edifício vizinho e liga-se a ele por uma plataforma de concreto, um pátio sem saída, soube mais tarde. Não é só. À esquerda de quem sai (pela porta extra, claro), ergue-se uma mureta de altura própria à contemplação, rufo servindo a parapeito, de onde se abre a visão da cidade. Quando me mudei para cá, quis saber da proprietária aonde diabos dava a inconcebível porta. Ela primeiro avisou-me que não tentasse abri-la, “… concretada por fora”. Cabelos difíceis e grisalhos, o tom de alerta com que me advertia trouxe minha mãe por um ou outro instante de vertigem. Depois, ilustrou com um gesto: não valia a pena, nada de interessante, só um remendo assimétrico, um aborto arquitetônico, uma varanda frustrada pelos recortes malfeitos da construtora, que erigira os dois prédios como blocos gêmeos, antes de falir e dissolver-se, a eterna incompetência, o senhor sabe, o que mais prolifera em nosso país. O patiozinho pareceu-me, a princípio, um privilégio. Eu me debruçava sobre a mureta, acendia um cigarro e ficava olhando longamente a metrópole construída sobre azuis e cinzas, horizontes recortados perdendo-se na neblina e nos invisíveis do mundo. Tenho aqui do que preciso por enquanto. Quase tudo. Pois falta uma janela, como as de minha infância, para ver a chuva.

Não, mas ainda não era isso. O que de fato me atraía a atenção era uma claraboia oval no alto da parede oposta à minha: vidros azulados e escuros, bandeira basculante, às vezes aberta, outros dias cerrada, lembrando um grande olho. Imaginei que ali, por trás da parede mal rebocada, funcionasse uma casa de máquinas, talvez servindo às engrenagens do elevador, quem sabe ao menos às caixas-d’água. Encostei o ouvido à parede. Não, nenhum ruído de motor. Nenhum rumor de águas. Pensei ter visto, de relance, uma sombra, por trás da claraboia que eu não alcançava, ei! alguém aí? Repeti a pergunta. Agucei a audição. Som de passos, ruído de movimento? Não, nenhum. Nada.

Outra vez a maquiagem ostensiva, própria a disfarçar-lhe traços quase infantis. Sei que procura parecer mais velha, não me incomodo. Lis tem olhos azuis e preguiçosos, que eu antes associava ao sono. Hoje subvertem minhas impressões, num misto de cinismo e desafio, pálpebras superiores bem definidas, realçadas pela sombra turquesa que ela pretende suave, você está muito bonita. Nesse domingo, a blusa dourada de alças finas, tecido reluzente, opõe-se à saia escura e opaca, única peça absorvendo luz sobre seu corpo. Os brincos faíscam de ligeiras oscilações, a gargantilha inclusive. Pulseira e anéis. Pergunto-lhe de onde vem o bracelete espiralado, não sabia que me interessavam tais peças, você conhece minha curiosidade sem limites, essa espiral. Somando-se as sandálias em ípsilon, presas entre ornatos metálicos e remetendo aos antigos calçados egípcios, tudo nela concilia e alterna ouro e prata: Lis, em seu conjunto, uma peça fulgurante cuja harmonia em nada corresponde à tarde cinzenta que cobre a cidade. A tiara de filigranas, formando motivos gregos, desloca-se, cai-lhe sobre a testa quando eu a abraço. Brinco de ajustá-la, feito diadema a cingir-lhe a fronte, perdendo-se nos cabelos, às suas ordens, alteza. Um sorriso simples, entre os arabescos. Cai por fim a tiara, caem os cabelos lisos, partidos ao meio, que ela costuma pentear sobre as orelhas, por vezes prendendo-os na nuca com uma fivela. Mesmo quando os seca após o banho, quando os desfaz sob os lençóis, mesmo quando os agita ao vento, tornam sempre à queda vertical que os separa nos ombros. Algo, especialmente, nesse dia: uma perda de peso, uma expansão talvez, que os dispersava em uma superfície maior sobre os ombros, como abrindo-os ou eriçando-os nas pontas, armando ao redor da cabeça um triângulo diáfano, como se a envolvesse uma mantilha árabe, um véu persa, sim, algo diferente… de antigo em você. Essa impressão dissipou-se mais tarde, enquanto ela se vestia, sua pele ainda respingada de banho, cabelos tornados à condição de cascata, não precisa me lembrar, sei que está anoitecendo. Eu a acompanho até a esquina da praça, até a próxima. Ela me encara sem sorrir: você tem vergonha de dizer que me ama. Vejo-a pelas costas, admirando-a, enquanto atravessa a rua em direção ao táxi que a espera, Lis após outra tarde de seu brilho, prata e ouro entre meus dias de cidade e cinza.

O sarcófago parece girar lentamente sobre si mesmo, antes acompanhando a câmara-cubo que se move nas trevas. A estreita parede de meu quarto dá com o quarto vizinho, o apartamento ao lado, outro quarto e cela onde a múmia – os restos da múmia – dessa jovem se estende sobre a mesa de bronze. Meus olhos veem. Sob esse véu de gosmenta neblina que as infinitas aranhas tecem no ar antigo, sob o invólucro moldado em ouro ornamentado, sob a máscara mortuária de olhos delineados, sob os olhos dessa máscara de pálpebras azuis e maquiagem talvez ostensiva, própria a disfarçar-lhe a morte, sob o surdo silêncio dos gérmens e o teto de trevas, repousa, em seu sono letal, a princesa. Essa parede, um lanço de sombras nos separa. Eu aqui, em meu leito, incapaz de mover-me, do outro lado a jovem extinta: a que distância nos encontramos um do outro? O que é essa distância? Sei que seus olhos emergem da escuridão e não parecem vivos, mesmo que me observem: são tudo que restou dessa criatura deslumbrante, esses olhos em turquesa. Do que eram para ela o interior dos aposentos, os luxuosos saguões, as colunas e escadarias polidas, sua visão dos cristais e dos palácios esplêndidos, sua porção emprestada de sol. Tarde demais, talvez, para identificar os minúsculos organismos que deitaram à morte e à vertigem dos milênios essa adolescente predestinada pelos homens ao ouro das dinastias, mas guiada pelos fungos aos sepulcros de areia. Mesmo assim, milhares de escravos arrastam blocos à sua imperiosa pirâmide. Mesmo assim, milhares de operários erguem cada edifício da última metrópole, a trama dos alicerces entrelaçando-se em labirinto sob as ruas. Não posso mover um músculo, um nervo. Um pesado torpor silencia meu corpo. Mas alcanço perguntar através da parede, há alguém aí? Às trevas, à câmara-cela que conserva o passado, às aranhas, aos fungos. À memória e também à morte, ao que não quero para mim. Ao que não posso. Ao que não sou. À princesa de areia.

Madre Atanásia, a professora de História, já contei dela, lembra?, era a que nos proibia de buscar o apagador na ala dos meninos e tinha altas de pressão quando descobria um bilhete ou algum meio de comunicação entre as turmas. Sim, lembro, o que tem? Ela morreu. É uma noite sem vento. Nuvens cor de ferrugem. A cidade parece mais iluminada, uma impressão, talvez. Lis, também debruçada na mureta, mostra-se mais alegre, o espaço a liberta. A noite agradável, a morte da freira, tudo tem um mesmo efeito de leveza sobre nós, estamos juntos mais esta vez. Quero falar sobre o que tenho pensado e sonhado ultimamente, procuro uma maneira de começar. Como eu esperava, ela não se interessa por claraboias, por isso evito abordar o assunto, algo que vem excitando minha perniciosa curiosidade desde a última semana. Também deixo de lhe contar meu escuro sonho com a princesa egípcia, sendo Lis, ela própria, em parte responsável por inspirar-me tais associações avulsas. Não quero que se envolva com meus conflitos, minha relação com os pesadelos e a vida real, no meu caso essa estreita faixa entre a lucidez e a confusão, um distúrbio que trago de meus avós, tanto quanto o vírus da insanidade e da ruína. Acendo outro cigarro, volto-me à claraboia-olho que ainda, e aos poucos, me fascina e atormenta. Custa-me não falar nisso, acabo contando a ela de como conquistei esse secreto mirante, apesar dos conselhos da senhora proprietária: depois de tanto eu perguntar, um dia ela fixou-me de frente seus olhos de medo, derivando ao pânico, ordenando-me que não tentasse abrir aquela porta em hipótese alguma, eu não entendia por quê. Lis parece interessada no assunto, e o que você fez? Arrombei a fechadura, saí. Dou com o inconcebível terraço assimétrico, a claraboia para o vazio, a mureta, a ampla visão se abrindo sob as noites de ferrugem e as nuvens volumosas, elementos que inspiram a insônia, a trama dos crimes e os maus poetas. Detenho-me para que ela não desconfie de algum sintoma. Sim, a ansiedade tem me alterado um pouco, eu sei. Fico atento a tudo que é gradual e cresce, mesmo quando nos esforçamos para esquecer. Desta vez, identifico um reflexo entre os vidros da claraboia, cuja bandeira cai, em movimento rápido. Ei! Ei, alguém aí? Há alguém aí? Não grite assim, foi só o vento. Ela me retém pelo braço, volta comigo à mureta, quer que eu lhe fale mais sobre meus dias, meus planos. Mas não consigo deixar de pensar no olho escuro acima de nós, ao lado do que somos. Lis, eu acho que… Devo dizer a ela. Mas não há o que dizer afinal. Algo se passa comigo, o que seja me parece ameaçador ou incontrolável. Eu acho que… Tenho a impressão de que… Não. Não é nada.

As pirâmides, os edifícios. Há alguém aí? A multidão de escravos (alguém aí?) erigindo fortalezas e lacrando sarcófagos. A multidão de operários (alguém?) concretando pavimentos e esqueletos de torres. Ela entra pela porta do mirante, vinda da cela-cubo, parece querer sorrir, após os fungos que ainda não me alcançaram. A fina gargantilha, os brincos, anéis e pulseiras, o bracelete em espiral, as sandálias, a maquiagem ostensiva, própria a disfarçar-lhe o ouro e o que mais remanesce das civilizações esplendentes, sim, você está viva! Olhos de pálpebras bem definidas, realçadas pela sombra turquesa das máscaras egípcias, os olhos preguiçosos de Lis, não o sono, mas a cisma das esfinges, a claraboia fora de meu alcance. Sei que estamos vivos, é preciso agir, de alguma forma, antes que o olho dos mortos caia sobre nós, feito uma sombra. Mostro-lhe a cidade e a estreita fração de tempo a que pertencemos. Olhe, princesa: lá embaixo, uma infinidade de organismos se desloca, esses que ganham e perdem seus dias para que se conserve a realidade das civilizações. Vistos de longe, parecem agonizantes. Mas estão vivos, não estão? A princesa move a cabeça com indiferença. Engano seu. Esses pequenos gestos não provam nada. Todos estão mortos. Um surdo calafrio perpassa-me os ossos, sobe pela espinha, por um instante detendo minha respiração. Ainda não, princesa, ainda estamos vivos. E só o que quero é despertar, agora que a tenho tão próxima. Sua nudez metálica, reluzente, sua nudez imperiosa contra os fungos, contra os grandes olhos e o pó dos antigos, sua nudez de ouro e prata sob o sol de meu desejo. A claraboia verte, pela bandeira aberta, uma densa escuridão que mansamente chega até nós, invade o interior onde nos defrontamos, contamina as paredes e tudo o que vejo, trevas cultivadas pelos mortos, pelas múmias, pelos ancestrais de Lis e da adolescente egípcia.

Você a abraçou, sentiu que a alcançava? Meu sonho acaba aí. Mas, em algum momento, eu disse a ela: “Sim, minha egípcia. Todos nós vamos morrer. E eu vou morrer… sem você.”. Ela me encarava, estranhamente carinhosa, mas com firmeza me perguntava: “Será que você não tem sangue?”. E ela disse isso mais de uma vez, eu me lembro. Do que está rindo, Lis? Minha egípcia… Que tipo de pesadelo foi esse? Não compreendo, Lis. Não sei. Não importa. Sonhos estranhos… Com a mesma personagem, não é? Sonhos são sempre estranhos. O problema é quando começam a se repetir. Preocupam. Incomodam. Lis não está interessada em pormenores, nem eu me animo a contar-lhe. Em vez disso, retoma o que nessa noite mais me incomoda e aborrece: nosso caso. E suas remotas possibilidades. Afaga-me os cabelos nas têmporas. E sobre o nosso plano? Ergo-me com um gesto rápido, procuro desastradamente os cigarros. Não me fale mais nisso! Não há motivo para que me comporte assim, para que eu a magoe assim, para que minhas mãos tremam assim. Não compreendo o que se passa e tento disfarçar meu nervosismo. Ela não reage, não responde. Deixa a cama, busca no espelho vertical a eternidade de seu corpo, essa mentira, e fica admirando-se em silêncio. O mesmo impulso que me inflama o sangue move-me a alcançá-la pelas costas. Aonde está me levando? Resiste, mas deixa-se levar. Solta meu pulso, isso me machuca! Abro a porta para o mirante. Que isso?! O que você quer que eu faça?! Ela entende que eu a posiciono ante a claraboia que conserva as trevas, como se a expusesse ao exame do olho vigilante dos faraós. Cessa a resistência, solto seu pulso. Uma brisa incômoda parece afetá-la. Lis cruza os braços a proteger os seios, suas mãos alcançando as espáduas. Vamos voltar lá pra dentro, está frio. Logo atrás dela, encaro a pálpebra turquesa, enquanto espero absurdamente uma reação, um movimento ou um gesto, as línguas de fogo que nos incinerassem ali mesmo, ante a indiferença de um mundo de múmias, como se a denunciasse e me denunciasse à sua dinastia de tradições inquebrantáveis, nossa clandestinidade, minha ousadia, sua adolescência. Vamos pra dentro, o que quer que eu faça? Não sei, Lis. Não sei. Num instante, recordo intensamente a princesa egípcia, em meu sonho, repetindo: “Será que você não tem sangue?”. Eu quase compreendia, afinal. Era preciso lutar. Mas eu não tinha toda a coragem que acreditava ter. E isso, a consciência disso, sem dúvida me enfraquecia. Uma obscura gargalhada de superioridade e escárnio atravessa o orifício negro, vinda da câmara-cela-cubo, dispersa-se e confunde-se ao silvo da aragem noturna. Antes que eu torne a perguntar por alguém, a bandeira basculante se fecha, com um golpe seco. A brisa atenua sua passagem até ausentar-se por completo. Volto a ouvir o rumor permanente da cidade, o mesmo silêncio entre nós. Lis procura meus olhos, interroga-me com os seus. Também com um gesto repentino, eu a abraço como se nunca antes a houvesse sentido dessa maneira. Uma atração incontida, uma poderosa sensação de alívio e felicidade, o desejo de aquecê-la e de protegê-la, que é uma das armadilhas do amor. Estou pronto a aceitar os riscos que nos espreitam, por que não? Lis, perdoe-me. Perdoe minha ira e meus sonhos de sangue, no fundo sou apenas um homem à procura, um gérmen. Venha comigo. Vamos para dentro.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

29. Engenho de limites – próximo

27. Ante seus olhos, quase um silêncio – anterior

 Lis aparece em um episódio de Estudo com cristais 4. Lis

 Leia mais histórias no limite do real: Sonho 1204. A estação orbital

14. Hoje, acabaram-se as xícaras

Imagem: Odilon Redon. Silêncio. 1905.

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