Office in a Small City por Edward Hopper

Engenho de limites

O luar quebrava o último ângulo dos ladrilhos.
Na cama, eu aguardava o sinal sem fim das ausências, a bruma quase irreal que sucede as agitações em marcha, os pesadelos e os grandes conflitos.

Posso contar tudo, pensava eu com atrevimento, agora que disponho de técnicas adequadas. Certo de haver conquistado o estilo próprio a meus projetos, lancei-me ao trabalho com ansiedade, contra a noite a luminária ofuscante, e despertei sobre os mesmos papéis pouco mais tarde. Eis o que sou, um organismo. O corpo nada espera da literatura: quer hoje deitar-se para dormir, amanhã para não ser. As palavras, eu creio… As palavras, como eu dizia… O sono guiou-me às cegas para a cama.

Teria despertado com o mínimo ruído? Fui pela casa escura, julgando discernir do silêncio um rumor, uma respiração que crescia. Um ritmo, um ronco. À frente de surdos estrondos e estampidos abafados, um zumbido contínuo parecia atravessar o luar de ladrilhos. Detive-me e ouvi.

          “Como você se sente?”                                     “É, como se sente?”

                                         “Afinal, depois que tudo passar…”

          “Pensa então que pode contar tudo?”

                                                            “Sim, é o que parece.”

         “Que saiba, portanto: é talvez mais, ou pouco menos, do que vozes e rumores, é talvez a alma extraviada das coisas e algo desse que sonha poder contar tudo.”

                                     “O quê? Então pensa que pode contar tudo?”

          “Que importa afinal?”

Os ruídos harmonizavam-se e cresciam. Prenunciavam uma cadência maior, embora obscura, um mecanismo em franco funcionamento por trás do qual as coisas se moviam e conversavam. Organizavam-se. Aproximavam-se umas das outras, por necessidade ou por amor. Dominavam o mundo.

Quando me senti cercado pelos ruídos que podia suportar, o trovão contínuo que se arrastasse, a máquina ensurdecedora, a monstruosa locomotiva negra e sem rosto invadiu a sala, pondo as paredes a tremer com violência, atravessando e sobrepondo a todos os sons seus dínamos devastadores, enquanto eu, escondido a um canto, protegia os ouvidos do que seria seu limite e seu inferno, e como carregando-os consigo, tornando tudo ao silêncio, no rastro de sua passagem.

O luar quebrava o último ângulo dos ladrilhos. Na cama, eu aguardava o sinal sem fim das ausências, a bruma quase irreal que sucede as agitações em marcha, os pesadelos e os grandes conflitos, protegendo-me sob o cobertor, como um menino se guarda sem seus anjos, antes que volte vibrando, amplo e benigno, o trem da manhã.

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Imagem: Cui Gutai. Celebração nacional. 2007.

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