Office in a Small City por Edward Hopper

Cenas infantis

Certa vez, sonhei com a glória. De outra vez, sonhei com o amor.
 Nas duas vezes, acordei sozinho.

John Atkinson Grimshaw. Velha casa inglesa, luar após a chuva. 1883“Estas ruas, o bairro. Chuva e as casas fechadas. A noite alta. Tudo em tons de azul, e é como se não caminhássemos lado a lado.”

“Nada encontramos.”

“E continuamos perdidos.”

“Perdidos. Você é engraçado.”

“Quantas noites…”

“Esta chuva que não para.”

“Não para.”

“É preciso ter coragem, lembra?”

“Lembro, claro que sim. Mas parece que a coragem é uma qualidade dos sórdidos.”

“Não importa. É preciso ter coragem, de qualquer maneira. Noite alta, as casas fechadas. Sou apenas um corpo que anda. Por que a noite me aflige assim?”

“Como posso saber? O que será, para você, talvez um prêmio, poderá ser, para mim, um castigo.”

“Certa vez, sonhei com a glória. De outra vez, sonhei com o amor. Nas duas vezes, acordei sozinho.”

“Mano, mano… Como despertar deste pesadelo, senão morrendo, o que é a própria essência de meu medo?”

“O homem quer suicidar-se e também quer viver. Quer mostrar-se bom com relação ao próximo, sem descartar a hipótese de destruí-lo, se lhe convier. Quer aprender a amar no sexo oposto o que odeia em si mesmo. Precisa de inimigos para motivá-lo e de amigos que tolerem suas vaidades. Por fim, tornam-se todos um crânio sem remissão.”

“Vejo um crânio que diz: por aqui, a vida passou.”

“Passou… Você é engraçado.”

“Sol, chuva. O amor…”

“Tão rápido?”

“Tão rápido.”

“Tudo isso. E esta chuva que não para.”

“Não para.”

“E a morte?”

“A morte? Tudo se resolve. O crânio repete: por aqui, a vida passou. Angústias e lembranças reduzindo-se a nada.”

“Os sonhos morrem conosco?”

“E se resolvem também.”

“Esta é uma noite de muitos presságios. Chuva em tons de azul, ventos desconhecidos.”

“Conte. Conte tudo.”

“Falo a mim mesmo. É o bastante.”

“Absurdo.”

“Não importa.”

“Que será de nós?”

“Você é engraçado. Você fala como quando éramos estudantes, lembra?”

“O adolescente desastrado ao qual aconselhavam morrer. Mas não: eu estava me saindo bem, embora ninguém o soubesse. O silêncio sempre me serviu de escudo.”

“Bons tempos.”

“Bons tempos.”

“E hoje?”

“Há muitos mundos no mesmo mundo. Você pode vê-lo pelos olhos dos arrivistas ou dos monges contemplativos.”

“Uma vez, acredite, cheguei a pensar que eles estavam certos.”

“Quais? Os primeiros ou os últimos?”

“Os… Acho que… Ora, não tenho certeza. Não me lembro. Você é engraçado. Não importa.”

“Certa vez, sonhei também, mano, veja só, que Deus não existia.”

“Mesmo? E como eram as coisas? A vida, o mundo. As sociedades, a história, o mundo dos ricos e dos pobres. A natureza, o universo…”

“Tudo exatamente como é.”

“Não importa, está bem. De resto, mal há tempo de que um se levante, para que outro comece a cair.”

“Estas ruas, o bairro. As casas fechadas…”

“Sonhei que andava ao sol, entre muitas pessoas. Elas se descarnavam, como se evaporassem, e rapidamente viam-se esqueletos que caíam e ali ficavam, sob o sol a pino. Uns deitavam-se num instante, desmanchando para sempre. Outros resistiam exemplarmente – por fim, caíam também. Pessoas belas e feias. Tristes e alegres. Ricos, pobres. Famosos. Solitários. Todos caindo em ossos, com grande naturalidade. E aquela que eu pensei pudesse me amar, também ela…”

“Tem certeza de que foi um sonho?”

“Não. Eu disse máscaras?”

“Não, não disse máscaras.”

“Posso corrigir-me. Se aquilo eram máscaras, não há o que eu queira chamar de falso. Nunca vi tão dura realidade como a de meu sonho. Meu sonho de ruas e cidades, gente sob o sol e sol sobre a vida…”

“Você disse sonho. Você é engraçado.”

“Também não sei mais em que fase deliro ou até onde vejo de fato. De fato… Papai usava muito essa expressão.”

“Nossos pais. Onde estão nossos pais?”

“Morreram ontem. Hoje, não são mais. Nada do que foram. Que, desde mortos, transformaram-se em sonhos antigos.”

“Sua morte é o que ficou.”

“A morte não fica. Morreram ontem. Agora, nem sua morte é alguma coisa.”

“Posso provar o contrário. Posso trazer-lhe as cartas, os álbuns fotográficos… Quer que eu lhe traga alguma coisa?”

“Não.”

“Fósseis, não se pode deitá-los fora. Caem outra vez na terra, as chuvas os desnudam após milênios de secretos silêncios. E se dão a nós, reclamam que os justifiquemos.”

“Portanto, quando eu morrer, não se esqueça de dizer, aos que ainda se interessarem, que, no fundo, nunca tive medo. Que eu, diante de tudo o que pudesse afligir-me ou desafiar-me… Que eu sempre, apesar de tudo… E que eu… Pensando bem… Não diga nada.”

“Veja! Estão demolindo a casa. As janelas, o pequeno portão…”

“Eles têm ordem para isso?”

“Quem precisa de ordem?”

“Não podem fazer isso!”

“Acho que podem. Não interfira.”

“Solte-me! Não posso permitir que…”

“Não. Deixe que a casa se vá. Deixe que tudo se vá. São tantas noites…”

“Certo. Tudo bem. Estou melhor agora. Mas parece que a última pancada foi a mais forte.”

“Impressão sua.”

“Lembra daquela febre que quase matou você quando menino?”

“A febre, sim.”

“Valeu a pena ter sido salvo?”

“Não sei. São tantas noites…”

“Tantas noites…”

“E esta chuva que não para.”

“Não para.”

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

21. As duas vidas de Edmundo Campos – próximo

23. O final dos contos de fósseis – anterior

Leia mais histórias inspiradas em sonhos: Sonho 1204. A estação orbital

Imagem: John Atkinson Grimshaw. Velha casa inglesa, luar após a chuva. 1883.

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Comentários

2 respostas para “Cenas infantis”

  1. Avatar de Maris Ester A. Souza
    Maris Ester A. Souza

    Adoro essa sua forma de escrever, Perce, este trabalhar com as palavras! Seus textos, sempre tão atuais! Parabéns! Como sempre, perfeito!

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Maris, muito obrigado. É uma honra ter uma amiga e uma leitora como você.

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