Office in a Small City por Edward Hopper

Cães de caça entre a Lira e Leão Menor

O suor da testa era ácido descendo por meus olhos.
Ninguém jamais saberia de tudo.

Eu olhava o cadáver: que fazer com esses restos? “Que fazer de vocês?”, eu o olhava.

Trouxera-o de fora ao jardim dos fundos, já não podia voltar atrás. Terra ainda úmida, não seria difícil abrir uma cova precária, nem aquilo merecia mais. Logo voltariam a relva, as ervas rasteiras e umas flores inúteis, sempre casuais e ridículas. Ferramentas. Preparava-me para iniciar o serviço quando uns ruídos, vindos de dentro, puseram meu coração em pânico. Do que me esquecera?

Percorri a casa até o estreito quarto sob as escadas, rastreando os sons como se pudesse farejá-los, por fim encontrando, bem ali, a mulher de quem me havia esquecido, ou nem tanto. Algo parecia errado.

“Não esperava que a senhora viesse hoje…”, disse eu aparentando calma.

Essa mulher gorda, encardida e fétida, tramava viajar antes do fim do ano, esperava que eu não me incomodasse com sua vinda inusitada, por ter se antecipado ao dia de costume, e assim adiantar o serviço, com a roupa da semana. Acabou de dobrar a última peça, fui pegar o dinheiro. Mas eu já me arrepiava, alerta: não podia deixar que ela saísse pelos fundos ou pelo corredor lateral, como sempre fazia.

“Por aqui, Dona Imaculada, faça o favor. Já tranquei o portão menor.”

Desejei-lhe uma boa viagem e um feliz ano novo, quase às pressas, mas acho que ela não percebeu nada.

“Igualmente ao senhor, muita saúde. Se Deus quiser, não é? Se Deus quiser…”

“Ah, Dona Imaculada! Se todos fossem assim, como a senhora…”

“Graças a Deus. O que não falta por aí é gente ruim de pensamento, gente sem fé!”, disse ela, pondo-se a caminho.

“Sem dúvida, senhora. Sem dúvida.”

Tranquei toda a frente, voltei aos fundos.

Chamar cadáver a essa putrefata geleia de fibras sobre ossos, que estranho vocábulo. Haverá uma palavra para definir isso? Podia ver a trama de uns tendões escuros que ainda resistiam junto a porções de tecido esponjoso, aparentemente gosmentas, como se há pouco servissem às suas funções. Olhava-o em silêncio, aliviado por estar tão perto de livrar-me desse crime hediondo, múltiplo e quase infinito – mas certamente não para mim. Cerrava os dentes, considerando meu sórdido segredo.

O cabo da enxada queimava-me nas mãos, logo deflagrando bolhas e ferimentos nas palmas. O suor da testa era ácido descendo por meus olhos. Ninguém jamais saberia de tudo. Ninguém poderia avaliar meus esforços para sepultar os que me enganaram e roubaram, a que me humilhou e me traiu, os que esperavam que eu morresse, toda vez que caía doente. A enxada crescia no espaço, tornava a cair, com fome de abismos. Todos esses que um dia cultivaram alguma vantagem à custa de minha verdadeira fé e de minhas ingênuas esperanças na vida, olhem outra vez para mim, eu que podia sonhar. A ferramenta agora forjando uma vala de proporções humanas, quase no formato próprio a conter justamente a estranha figura sem olhos. E como dirigindo-me ao vento contrário, vocês me mataram com sua ganância, com seu egoísmo e com sua lenta rotina de pecados. Nenhum de meus crimes será maior que alguns dos seus, principalmente aqueles que passaram impunes, e foram quase todos. Eu trabalhava e trabalhava, enquanto fugia outra tarde entre os mesmos ciclos, o sonho infernal de haver vida e memória, minha tarde de brisas sem remorso.

Por fim, voltei a terra a seu nível, antevendo, ao ano novo, outra temporada de verdes que cobrissem mansamente o incômodo contorno na relva. Tinha as mãos sujas de terra quando, movido por uma súbita crise de riso, levei-as ao rosto como se o lavasse. As risadas foram se atenuando, cedendo lugar a uma intensa impressão de felicidade que parecia impregnar-se por todo o meu sangue. Untava com barro a testa e o queixo, o contorno dos olhos e a boca, como se tornasse a esculpir-me diabolicamente, remodelando tudo o que a noite vinha aos poucos testemunhar, eu, outro ser entre infinitos, herdeiro de indomáveis tormentas primordiais, lava vulcânica de origens, oceanos e vastidões sem controle. Identifiquei Hércules e a Serpente. O Corvo e a Fênix. Cães de Caça entre a Lira e Leão Menor. Centauro, Escorpião e o Cisne no firmamento rico em arranjos recentes, feito ao meio pela faixa esbranquiçada da espiral, o braço da galáxia sugerindo-me o leite que nutre nosso universo em formação, cada homem uma híbrida composição em proporções de leite e terra, quem sabe elementos propícios à fissão e à fusão, um êxtase que não podia dividir com os inocentes, com os que nunca cometem crimes. E mal podia crer, ante aquele espetáculo silencioso, que entre mil maravilhas e vastos sinais, se movessem pessoas tão estranhas, distorcidas por suas próprias sutilezas, caprichos e ambições temporárias.

Olhava ainda a constelação austral da Fênix, como a vira pela primeira vez quando menino, numa dimensão à parte e imune às leis dos homens, ali onde ninguém poderia encontrar-me – um lugar que somente alguns ousaram visitar e conhecer, como as terras mágicas de mitos muito antigos, mas que atravessaram também o tempo em busca de meu sangue. Já era uma noite fulgurante e intensa quando ouvi a campainha.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

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Imagem: Lea Kelley. No auge de sua mortalidade. 2008.

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