Office in a Small City por Edward Hopper

O nome dela era Vanda

Álcool alterando o bom senso, definindo destinos. Cansativos rituais de acasalamento.
Mas, no momento incerto, depois tornado certo, o desejo é maior do que o mundo.

A festa, que pouco o entusiasmava, agora nem lhe interessava mais. O nome dela era Vanda. Dividida entre seus conhecidos, mal ele tivera tempo de pensar em algo que dizer-lhe, algo que o destacasse dos demais, além do detestável oi-tudo-bem? dos que acabam de ser apresentados a um palerma qualquer. Poderia ter dito: “É um prazer.”. Nesse caso, estaria sendo sincero. Mas não interessante. A menos que lhe lançasse um olhar fixo e ousado, sem piscar, além de enfatizar algo em sua entonação da voz. Que o destacasse, vá lá. “Estou impressionado, juro. Gostaria muito de levar você daqui agora mesmo, arrastá-la para aquele quarto ali, atirá-la na cama e foder com você com toda vontade, está ouvindo? Como se fosse a única coisa no mundo que valesse a pena, entendeu?” Sem dúvida, isso o destacaria entre os demais. Mas o outro perigo era que… (Ouviu uma gargalhada vinda de trás, mas não se deu o trabalho de mover a cabeça para ver quem parecia feliz.) O perigo era que… Era qual mesmo?

“Van, esse é o Bruno. E esse aqui é o…”

Após tê-la conhecido de perto, sentiu que se fazia, a corça, muito mais inalcançável, mais do que antes, quando não passava de uma sombra indefinida, e como se desde o primeiro momento ele desejasse, sem saber, alcançá-la. Ousadias avulsas. Resultado de superfície. Álcool alterando o bom senso, definindo destinos. Cansativos rituais de acasalamento. Mas, no momento incerto, depois tornado certo, o desejo é maior do que o mundo.

Moveram-se todos, deslocaram-se, entediaram-se educadamente uns com os outros, trocando de círculos, entre risadinhas e sinais de cumplicidade, verdadeiros e falsos, não importa. Júlio em algum ponto. Entre todos. Falando de suas preferências, seu trabalho… Sem se preocupar com o que fosse ou com o que estaria interrompendo, Lea irrompeu ao seu lado e pediu a ele que buscasse mais cerveja. Júlio suspirou mentalmente, obedeceu, foi até a cozinha quase sem perceber que de fato andava, porque já se sentia sem peso, quase flutuando, descontraído pelo álcool. A luz branca feriu seus olhos. Esbarrou em duas garotas que saíam com copos, por pouco não provocando um ridículo desastre doméstico.

“Um cada um. O gelo está racionado.”

Neca acabava de servir alguma coisa a um casal que ria muito, Júlio não entendia por quê – por que riam, bem entendido. Também pensou que não havia nada no mundo que o fizesse rir daquela maneira. Saíram em seguida. Ele ficou sozinho. Cascas de limão junto às garrafas vazias, copos melados de açúcar, caroços de azeitona, palitos, o lixo ia crescendo sobre a pia e a mesa de canto. Um pequeno vaso com delicadas flores de jardim não fora poupado: alguém tivera o cuidado de queimá-las, uma a uma, com a ponta do cigarro. Lixo, flores carbonizadas, o rastro humano. Da sala, outra gargalhada sarcástica, mais alta do que a música. Ora, não se importe, assim são as festas. Os azulejos alternavam flores estilizadas. Entre elas, um ramo curvo que fechava o arranjo lembrou-lhe grosseiramente a cauda de um escorpião. Embora não intencional, ocorria-lhe ver no conjunto de folhas, flores e hastes mal sugeridas a figura sinistra desse aracnídeo, da mesma forma como os supersticiosos veem propositadamente as coincidências numéricas e os místicos conseguem enxergar caçadores e virgens nas constelações. Anteriormente, não o teria percebido assim. Desde que se fizera interessado na linguagem dos símbolos, signos em literatura e elementos cinematográficos, foi cultivando aos poucos sua percepção das coisas, considerando artifícios e sutilezas, até sentir que estava finalmente amadurecendo nesses conhecimentos. Agora, via flores como escorpiões. Que mais fora fazer ali? Ah! Cerveja. A geladeira.

“Não, não”, ouviu de alguém de repente. “Essas de cima é que estão geladas.”

O som dos saltos no piso frio, apesar de alguma pressa característica, não se fazia distinto como se poderia esperar, que os demais ruídos da festa, diversificados e multidirecionados, chegavam facilmente a toda parte. Antes que ele se dispusesse a dizer alguma coisa, ela se adiantou em direção ao congelador, um rosto quase sem maquiagem, passando muito próximo ao seu, com isso exalando um perfume desconhecido e muito suave, confundindo-se com seu próprio cheiro de gente. Parte dos cabelos prendia-se pouco acima da orelha por uma concha minúscula que ele não havia notado antes. A concha o fazia pensar em uma pérola. Em algo submerso. Uma arca de segredos ou… – os que se contaminam com jogos de associações são como os poetas e os religiosos e, em certos casos, não têm cura. De seu ângulo, como a um passo atrás dessa súbita e aromática aparição carnal, tendo como cenário a estreita cozinha, Júlio podia ver sua boca ligeiramente entreaberta e a linha do maxilar redesenhada pela claridade quase irreal, partindo da geladeira aberta num único foco, que se projetava sobre o rosto dela, já iluminado. Os ombros nus pontilhavam-se de sardas pouco visíveis, os braços pareciam firmes. Júlio viu o perfil de um seio quando ela se inclinou, sentiu como se pudesse adivinhar-lhe a consistência.

“Obrigado”, ele disfarçando a voz trêmula.

Ao fechar a geladeira, ela roçou-lhe o braço com o ombro, casualmente. Foi o bastante para sufocar-lhe a garganta com saliva, o sensível. Não apenas porque a sensação de embriaguez subia-lhe aos sentidos, mas porque estava de fato encantado, o adolescente. Quem era ela afinal? Também dessa vez não lhe ocorreu nada de espirituoso, ao príncipe, que pudesse despertar a atenção da jovem, e isso o exasperou de certa forma, fazendo-o impotente. A desconhecida inclinou o corpo sobre a pia, esforçando-se para alcançar um objeto na prateleira do armário, um movimento insinuante e flexível, embora casual. Júlio não conseguia pensar em outra coisa. Estava embriagado, o animalzinho.

“Quer uma vodca?”

Ácido clorídrico? Claro. Vindo de sua parte… Aceitou, fingindo estar à vontade, pouco antes de Neca voltar à cozinha, com isso levando a cerveja por ele e prestando-lhe o conveniente favor de deixá-los ali, por mais um momento, sós. Graças à crise de inventividade que o constrangia, ao gênio, Júlio permaneceu em silêncio, sem oferecer-lhe ajuda, enquanto ela se esforçava para abrir a tal vodca. Ele não tinha certeza de seus próprios resultados, em se tratando dos procedimentos para vencer uma garrafa daquele tipo, e não queria correr o risco de algum vexame, o prático.

“E aí? Gostando da festa?”

Por sorte, ela se dispunha a falar. Aquilo já estava ficando maravilhosamente incômodo.

“Seu apartamento é muito bonito”, a bobagem que de imediato ele disse. Não era o que pretendia dizer, o filósofo. Não era o que de melhor ou menos tedioso se pudesse pôr à frente da língua em tal momento. Mas foi o que disse. foi exatamente o que, de simples e verdadeiro, disse. Não queria mentir.

“Obrigada”, ela sem se impressionar, sem erguer os olhos, ainda atenta ao lacre da vodca, que acabava de romper.

Pediu-lhe que apanhasse os copos no armário, na parte que ela não alcançava, e tirasse o gelo. A essa altura, ele resolveu que era preciso superar-se e dizer por fim algo mais convincente, se não muito engraçado, ao menos espirituoso.

“Ouvi dizer que o gelo está racionado.”

Ai de mim, pensou em seguida, nos moldes dos velhos personagens dos quadrinhos. Nem espirituoso, nem engraçado. Muito menos convincente. Ela não pareceu dar atenção.

“Obrigada. Pode deixar, eu sirvo. Vamos voltar?”

Antes que ele se atrevesse a propor um brinde, ela se virou, sem perceber o gesto mal esboçado, e Júlio teve de abaixar depressa o copo, a fim de não ser flagrado naquela pose ridícula, caso ela se voltasse, num relance. Foi melhor. Não lhe ocorria porcaria nenhuma a que brindar mesmo.

A sala, mais escura para ele agora. Aos poucos, as coisas foram outra vez emergindo para a nitidez, e ele foi acostumando os olhos às formas da penumbra, como vinha fazendo desde que nascera. Pararam, ele e a desconhecida, a um passo da porta, ao lado um do outro, assistindo à descontração alheia e a uns casais que dançavam lentamente ao som de uma canção bastante aborrecida – na opinião dele, claro. Ninguém pareceu percebê-los ali, junto à porta. Júlio perguntou-lhe se era aniversário de alguém. Ela disse que não e que nem sabia de quem havia partido a ideia da festa. Perguntou a ela se preferia a vodca com limão, ela disse que detestava limão. Em frente. Perguntou sobre suas colegas, se já as conhecia antes (antes do quê?), se estudavam juntas ou trabalhavam juntas, e ela disse que não, nem uma coisa nem outra, nenhuma delas e nada daquilo. Perguntou brincando se o seu pai não sofria um enfarte cada vez que deparava com as contas do condomínio ou aluguel de um apartamento tão confortável, ela disse que o pai não, mas a mãe sim, que o seu pai já havia falecido, e justamente vitimado por um enfarte.

Júlio pensou em seguir sempre em linha reta, rumo ao elevador, sem uma palavra, sem olhar para trás, mas não foi preciso. Ela lhe sorria de frente, explorando-lhe o rosto com olhos afiados, aparentemente divertida com os esforços dele, para não dizer, de uma vez, com as trapalhadas vergonhosas dele – seu constrangimento, enriquecido pelas gafes, só fazia ver o indisfarçável interesse por ela. E talvez por pena, ou fosse qualquer sentimento parecido com a solidariedade, ela aceitou dançar, enquanto ele procurava novas chances de remissão ao perguntar-lhe ainda sobre esta e aquela coisa, agora muito cautelosamente. De muito perto, Júlio apreciava os felizes resultados da genética no rosto dela, particularmente a boca, os dentes de oclusão normal, mas uns lábios que não se fechavam inteiramente, sendo o inferior ligeiramente mais avançado que o outro. A bebida dispersava-lhe as ideias, abandonando-o às sensações mais próximas. A consistência das coxas dela roçando as suas, o aroma indefinido entre os cabelos e a pele, o calor dessa garota em sua genitália. Os lábios úmidos de vodca, talvez estivessem gelados ainda. Estavam. Foi ela, não ele. Júlio não tinha certeza.

Outra vez um homem e uma mulher. Claro, por que não? Frutos de todos os encontros. Nada de novo sobre a terra, sei disso. Nada que não tenha sido dito que não será dito de novo, negado outra vez para repetir-se ainda, reciclado por força do encantamento e do desejo, nada que em cada literatura não esteja, desde sempre, previsto em seu alfabeto.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

48.  … e esquecer o resto – sequência

46. Assim são as festas – anterior

Leia algo sobre o desdobramento desse encontro: 54. Vanda pela manhã

Imagem: Fiona RaeMomento da vida. 2010.

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