Office in a Small City por Edward Hopper

Apodrecendo ao seu lado

Ela já não tinha mais sangue circulando, não tinha a pele morna de antes.
Eram os últimos momentos de sua beleza.

Ana Lúcia era, para ele, um prêmio.

“Ela era, pra mim, um prêmio. Compreende?”

“Um-hum…”

“Ouviu o que eu disse?”

“Um-hum. Ouvi. Ouvi sim.” Um suspiro, outro gole de água.

“Pareceu indiferente…”

“Hummmm!”, Liana começando a falar enquanto ainda engole, como se de repente se lembrasse de algo. “Hum!” Esse hum, agora, mais breve e em tom de alerta, significando: olhe, preste atenção. “Não sei como vocês, homens, conseguem ver as coisas assim. Não importa a situação, é sempre um prêmio, uma conquista, um… Pra vocês, o que mais vale é se sentirem capazes disso, mais do que propriamente… viverem isso.”

Como previsto, essa hora iria chegar. É o problema de contar muito, de se confessar muito. Acaba acuado desse jeito, em algum canto do tabuleiro.

“Puxa, você se envolveu tanto com ela… Pensou tanto nela, sofreu por ela e no fim… um prêmio?”

“Também não sei como ficar explicando essas coisas. Você me confunde.”

“Ah, eu confundo você? Sei.”

Danilo tenta não se irritar com a superioridade dela no terreno da argumentação. Ele fala, espontaneamente, nesse caso, como o homem vulgar que é, representante biológico da metade masculina do mundo. E, num instante, tem a impressão de que acabou inserido num jogo do qual tem dificuldade de compreender as regras. Melhor fugir, fingir que não percebe, mudar de assunto. Ou vai perder sempre.

“Quando eu estava entre colegas, quando a Ana também estava entre nós, eu percebia que ela me olhava com um mínimo sorriso de boca fechada, quase invisível, algo nos extremos dos lábios, mas muito pouco, o que me deixava em dúvida: eu estaria vendo coisas? Ela estaria mesmo olhando pra mim?”

“E era, pelo jeito…”

“Isso que eu estou dizendo eram as primeiras vezes, antes de tudo começar, entendeu? O caso é que ela parecia estar rindo, em silêncio, de mim. Da minha ingenuidade. Da minha falta de jeito. Da minha incapacidade de me aproximar de uma mulher, a ponto de desistir facilmente, como melhor opção. Esses sinais de sorriso dela, que não se firmavam, e o olhar… (isso também, o olhar) não eram propriamente uma manifestação de malícia. Eram a malícia. E isso me parecia irônico, até paradoxal: a malícia não declarada, guardada em silêncio. Tentando não se revelar. Estava intimidado com aquela situação que só eu percebia ali, entre a conversa e as atitudes de todos. Olhei também, pra ela, muitas vezes, tentando não ser visto, tentando esconder a minha curiosidade e a minha dúvida, e me surpreendi quando ela não desviou o olhar. E um sorriso completo, lindo, cruzou seus lábios.”

“Você se lembra de tudo, não é? Incrível.”

“Não é difícil. São imagens. Elas não se desfazem, sabe como é? Às vezes parece que vão tornar a acontecer de outra maneira. Mas claro que não acontecem.”

“Não entendi muito bem. Mas e daí? E o seu… prêmio?”

“Um prêmio sim, mas vocês, mulheres, é que não compreendem. Uma recompensa. Uma compensação, melhor assim? Por todas as masturbações solitárias, por todas as vezes em que nos apaixonamos pelas mulheres das revistas, que nos sorriam ou nos sopravam com olhares e corpos insinuantes que estariam para sempre fora de nosso alcance. E estavam mesmo. Eu não tinha certeza se amava a Ana Lúcia, ainda hoje isso de amar me confunde, imagine naquela idade. Acho que seria pedir muito de mim mesmo. Mas quando falo em prêmio, não é a vingança de um troglodita frustrado. Eu queria possuí-la, é claro. Mesmo que suavemente. Transar com ela. E isso era o mais importante naquela fase, naquela idade, com aquele arsenal de hormônios. Porque a primeira vez que eu levei uma mulher pra cama… Ah, que expressão idiota! Levar pra cama… Que bobagem ficar falando nisso tudo.”

“Não era isso que eu queria ouvir. Você parece estar fugindo. Eu só perguntei como aconteceu. Só isso. Você estava contando, continua daí.”

Danilo pega água. Inerte depois de um gole. Olhando para o copo.

“Que foi?”

“Só estava pensando… Pensando na Ana. Como ela teria resistido ao tempo se estivesse viva.”

Liana também fica olhando o copo na mão dele, como se ali se desenrolasse alguma imagem mágica, entre reflexos cintilantes.

“Talvez estivesse mais bonita do que eu.”

“É, mas… Eu me refiro aos problemas, aos tormentos dela.”

Liana finge não ouvir, deixa passar. Bobagem se incomodar com isso agora. Inadvertidamente e ainda observando, aérea, os movimentos dele, toca um de seus seios, mão aberta, pressão suave, e o solta em seguida, gesto mínimo de autoafirmação. O que importa, no final das contas, é a que sobreviveu, é a que está viva. A outra, seja linda o quanto for, e daí? Fosse.

“Sendo mais direta: como você saiu do motel? Quem você chamou? Quanto tempo ficou ali com ela, morta?”

“Não era propriamente um motel, não foi num motel. Foi no Hotel Marte, numa baixada do Centro Velho. Quando adolescente, eu passava por ele, observava aquela fachada envelhecida, imaginava como seriam os quartos lá dentro. Aquilo me agradava muito, parecia aconchegante. Acho que era alguma influência de filmes franceses, que eu ficava vendo na TV, na Sessão Coruja. Claro que eu não pensava nos cheiros característicos de um lugar assim, talvez de quartos sem sol e amaciante de roupas, não pensava no mofo nem nas superfícies engorduradas, enfim… Quando passava por ele, eu me via entrando ali, subindo aqueles poucos degraus da entrada, subindo ao quarto com alguma colega de classe. Imaginava muitas delas comigo. Era fácil. Não havia restrições em minha imaginação. Gostava de visualizar as reações diferentes, as falas possíveis, as surpresas e as negações. Mas… havia algo comum a todas, que eu não ficava imaginando intencionalmente, por isso me parecia estranho.”

“O quê?”

“Era que todas elas, de alguma forma… me sorriam.”

“Ah, que bom. Então, foi ali…?”

“Foi ali, sim. Tenho os jornais, os recortes guardados… – bom, já disse isso. O Hotel Marte. Aquela fachada velha, umidade nas paredes. Faixas verticais escurecidas, desenhos de chuvas. Eu o estava reservando, desde os meus quinze anos, para o futuro, para o dia em que me acontecesse uma mulher real, se possível parecida com uma daquelas mulheres das revistas, quem sabe, não é?”

“Ahahah… Desculpe. Continua. Desculpe.”

“Então… Eu pensava que as coisas poderiam se realizar, apenas isso. Naturalmente. De um jeito ou de outro. Era só o tempo passar. Havia homens e mulheres por toda parte. Em algum momento, isso podia me acontecer, como não? Aquilo tudo estava à minha volta, ao meu alcance, era real. Até os dezoito, dezenove anos, eu vivi assim, entre fantasmas. Nós subimos as escadas, eu olhava a bundinha dela bem à minha frente, estava engasgado de tesão. Entrei com ela, fechei a porta, ela mal deixou a bolsa em algum lugar, eu a abracei por trás, suspirando como um ator de cinema, e isso, misteriosamente, a neutralizou. Ela entrou rapidamente em cena, participando desse teatrinho ansioso que eu podia inventar para não ficar falando e falando de coisas que eu não sabia falar.

“Então… Eu pensava que as coisas poderiam se realizar, apenas isso. Naturalmente. De um jeito ou de outro. Era só o tempo passar. Havia homens e mulheres por toda parte. Em algum momento, isso podia me acontecer, como não? Aquilo tudo estava à minha volta, ao meu alcance, era real. Até os dezoito, dezenove anos, eu vivi assim, entre fantasmas. Nós subimos as escadas, eu olhava a bundinha dela bem à minha frente, estava engasgado de tesão. Entrei com ela, fechei a porta, ela mal deixou a bolsa em algum lugar, eu a abracei por trás, suspirando como um ator de cinema, e isso, misteriosamente, a neutralizou. Ela entrou rapidamente em cena, participando desse teatrinho ansioso que eu podia inventar para não ficar falando e falando de coisas que eu não sabia falar. Segurei os seios dela por cima da blusa. Peguei com jeito os peitinhos lindos dela. Ela tinha uns peitinhos que…”

“Sei, sei. E você fez o quê? Chamou alguém?”

“Chamar alguém? Como assim?”

“Depois do tiro, é claro.”

“Ah… Bom, eu… Primeiro eu fiquei sem saber o que fazer. Estava muito assustado. Devia ter chamado alguém da portaria na hora, tentar levar a Ana para um hospital, mas… eu vi que ela não estava mais viva.”

“Viu? Viu como?”

“Não respirava, é claro. Estava fria. Não reagia.”

“Fria? Em tão pouco tempo?”

“Não lembro direito. Foi a impressão que eu tive. Chamei o nome dela umas duas, três vezes, era só uma necessidade minha, ela não tinha como responder. Fiquei olhando pra ela, passei a mão pela testa, pelos cabelos dela…”

“Ela estava nua?”

“De calcinha. Uma calcinha branca. Ela tinha vestido a calcinha porque logo a gente iria embora, ela estava começando a se vestir.”

“Triste, hein? Mas você falou… da camiseta dela, cheia de sangue…”

“Camiseta? Não… Não, não falei não. Ela não tinha se vestido ainda. Bom, eu comecei a pensar que logo alguém bateria à porta, alguém do hotel, logo em seguida, em primeiro lugar, porque, depois de ouvir o tiro, um tiro daqueles… Mas os minutos foram passando, o tempo foi passando, e ninguém apareceu. Mais tarde, dias depois, eu imaginei que o tiro pudesse ser confundido com algum outro estampido. Claro. Ali perto tinha umas oficinas de motos, essas coisas. De vez em quando, aqueles estouros de escapamentos, entre outros ruídos infernais, eram piores do que tiros. E pela geometria meio truncada, mal recortada do hotel, o som poderia parecer ter vindo mesmo de algum outro lugar.”

“Entendi. Pode ser. E então?”

“Depois de uns quinze minutos ali, sem saber o que fazer, percebi que ninguém tinha se incomodado com o tiro. E decidi me arriscar numa coisa que eu pensei. Peguei uma toalha, limpei o sangue no corpo dela. Peguei as roupas dela, fui vestindo a Ana como pude…”

“Você o quê?!”

“Fui vestindo as roupas nela. Pus a calça, fui puxando e subindo pelas pern…”

“Não, não, espera aí, espera aí! Você está de gozação comigo, eu não sou tão tonta assim, que isso, Danilo?”

“Mas eu… Foi o que eu fiz. Você perguntou…”

“Você… Você… Não acredito!”

“Eu não sabia o que fazer. Tive essa ideia e, pelo jeito…”

“Não é possível, você não é normal. Como não chamou alguém? Como não chamou a polícia ou…”

“Porque fiquei confuso. Fiquei com medo. Não veio ninguém. E eu tinha que sair dali. Enfim… Bom, se não quer acreditar, que se dane então!” Sai irritado da cama, vai até a porta de entrada, volta, sem saber para onde ir. Ali, ele não tem para onde ir.

“Eu estou chocada com isso. Chocada!”

“Sei.”

“Danilo, você não percebe que é uma coisa estranha pra se fazer? Não entende isso?”

“Entendo muito bem. Entendo sim. É uma coisa estranha mesmo. Eu pensei muito nisso depois daquele dia. É estranho mesmo. Mas foi o que eu fiz, agora já foi feito, como fica?”

Liana o olha em silêncio.

“Você me assusta, sabe?”

“É mesmo? Você quis saber. Quer que eu conte a verdade ou o quê?”

“Você entendeu. Não precisa falar alto assim, não grita assim comigo. Quero sim! Quero saber a verdade, é tão difícil?”

“Parece difícil pra você, é isso que eu estou dizendo. Desculpe, você está me fazendo lembrar de tudo, e isso me… me…”

Liana está atenta, algo preocupada, mas pelo menos ele está contando a verdade, ela está conseguindo isso dele, é uma maneira de conhecê-lo melhor, e isso também lhe interessa muito, é claro. Melhor continuar assim, tentar conduzi-lo nesse ritmo, nessa frequência. Melhor não espantá-lo agora, deixar que prossiga.

“Tudo bem. Não importa. Tudo bem mesmo. Só me diz como isso acabou.”

“Certo. Tudo bem. Eu… peguei as minhas coisas, me vesti. Conferi tudo antes de sair. Pendurei a bolsa dela em mim, a tiracolo. Passei um braço pelas costas dela, levantei seu corpo, fui saindo abraçado a ela, as pernas dela se arrastando, desci as escadas, era o primeiro andar, fui até o carro no estacionamento dos fundos. O estacionamento, pra você ter uma ideia, tinha um portão pesado de madeira que a gente mesmo tinha que abrir e fechar, e o chão era de lajes tão antigas que o mato crescia entre os trincados e as junções delas. Essas lajes eram muito gastas, desbotadas pelo tempo. O chão parecia sem cor, se é que isso é possível. Tinha perdido a cor.”

“Bom, mas isso… E daí?”

“Deitei ela sobre o capô, de bruços, os pés tocando o chão, sem vida, peguei a chave, abri a porta, coloquei ela sentada no assento do carona… Foi muito difícil, sabe? Eu demorei um pouco nisso. Por sorte, não apareceu ninguém, em nenhum momento. Aquele hotelzinho era mesmo pouco frequentado. E era um dia à toa, uma hora à toa, não me surpreenderia se só o nosso quarto estivesse alugado. Tranquei a porta do carro, voltei à portaria pelo corredor interno. O rapaz estava ouvindo rádio, baixinho, algum jogo de futebol. Eu disse a ele que estava saindo, perguntei quanto ficava o quarto, minha mulher já estava me esperando no carro, estava tudo certo lá em cima, falei do que consumimos, uma água, uma coca-cola, uma barra de chocolate. Não é que o cara me cobrou, agradeceu? Me apertou a mão falando pra eu voltar sempre e ainda disse que alguém do time dele tinha acabado de fazer um gol fodido, de craque. Incrível o que essa gente é capaz de fazer, não é? Deus do céu, quanta incompetência!”

“É. É. Foi o que eu pensei.”

“Se ele tivesse subido ao quarto pra conferir, teria encontrado aquela puta mancha de sangue na cama, no carpete… Volte sempre, imagine. Eu arrisquei, foi muita sorte.”

“Sim, muita”, Liana sem sorrir. “Você fez muito bem. Agiu certo. É isso mesmo o que se deve fazer nessas horas. Como advogada, eu aconselharia. Devo deduzir que você a levou em casa, entregou o corpo para a mãe dela…”

“Que isso, ficou louca?”

“Não. Espero que não.”

“Como ela parecia estar dormindo ali, do meu lado, fiquei rodando com o carro enquanto pensava no que fazer. Nas ruas, ninguém notava. Cheguei a parar em vários sinais vermelhos, os motoristas nem olhavam para os lados, eu é que olhava para eles. Essa é a nossa realidade, essa gente insensível, egoísta, cada um preocupado só com a sua própria vida, mais nada. É a nossa realidade.”

“O que você fez com o corpo, Danilo? Me fala.”

“Eu estava chocado com tudo aquilo, não conseguia pensar direito. Estranhava a minha própria calma silenciosa, a minha reação de autodefesa, querendo, não sabia como, me proteger daquela tragédia de um instante, negar tudo a mim mesmo, queria acordar na minha cama, aliviado com o fim de mais um pesadelo… Mas não acordei, é claro.”

“É claro.”

“Mesmo enquanto dirigia, eu olhava pra ela de vez em quando, como se ainda tivesse que ter algum cuidado com aquilo. Com ela, quero dizer. Nossa, como era estranho. Ela ia sentada, caída de lado, o pescoço todo apoiado no ombro direito, a cabeça encostada entre o assento e o vidro da porta. O cinto de segurança impedia que ela caísse para a frente. Quando parava o carro, eu olhava pra ela, ali, com mais tempo. Que estranho. Parecia estar dormindo mesmo. Eu quase podia adivinhar sua respiração profunda – muito estranho mesmo. Mas eu não conseguia deixar de pensar que, a cada minuto, suas células estavam se deteriorando imperceptivelmente. Que ela passeava, sem saber, entre os vivos, os que teriam ainda um dia seguinte, outra manhã pela frente, no calendário. Pra ela, já não existiam calendários, a Terra não girava mais. Tique-taque, tique-taque, e uns fungos microscópicos devorando seus tecidos ali mesmo, imagine. Lembrei daquilo que ela tinha falado uma vez, sobre um ano antes de nascer, um ano depois de morrer… Já tinham se passado alguns minutos, quase meia hora. Mais de meia hora, acho. Já era o ano depois da morte dela, a contar dali. Ela não pertencia mais à cidade. Não tinha mais endereço. Não era mais uma cidadã de seu país. Não tinha mais voz, não tinha mais cultura, formação escolar… Nunca mais teria que ir ao dentista. Estava livre da língua portuguesa…”

Liana não consegue evitar um ahn rápido e aspirado, de leve surpresa, como se subitamente tomasse consciência do que ele vinha contando até então, do que ele vem difusa e morbidamente contando até agora, antes de dizer:

“Danilo… Você ficou… (Não, não pode ser!) rodando com ela… morta?”

“Pois é. Então… Eu tinha que dar um jeito de transportar o corpo…”

“O quê? Transportar o corpo?! Danilo, não pode ser. Você já tinha feito isso antes? Tem noção do que está me contando? Que história é essa de transportar o corpo, que loucura é essa?”

“Às vezes eu tinha que parar em alguma esquina mais iluminada (eu estava no centro da cidade, lembra?). Então as luzes de alguma vitrine próxima montavam uma espécie de jogo de cores e sombras sobre a figura dela, algumas delas piscando, intermitentes. Aquilo me parecia meio bonito, meio grotesco, dependendo das sombras que produziam – porque os olhos dela sumiam, sabe, só ficavam duas manchas escuras e arredondadas sob o supercílio, bem aqui, entende?”

“Eu sei o que é o supercílio!”

“Num outro ponto, um enorme painel luminoso projetava um azul suave sobre a cabeça dela. Metade do rosto ficava às escuras; a outra metade, à mostra, tornava-se estranhamente infantil, delicada, a extremidade dos lábios parecia formar uma covinha, querendo sorrir. Ela estava linda. Mas aquilo era uma ilusão. Eu sabia que era uma ilusão, porque quase pensei estar ouvindo música. Hoje acho que era música mesmo, vinda de algum lugar ali perto, não sei. Não sei mesmo. Não tenho certeza.”

“Que coisa…”

“Muitos anos mais tarde (olha só, que coisa!), eu passei a associar naturalmente essa lembrança àquela música do Eric Satie, uma das Gnossiennes, a primeira, sabe? Você conhece essa música?”

“Conheço”, diz ela sem nenhuma vontade. Não tem certeza se conhece. Tanto faz. E ele nem a ouve responder.

“Eu não podia mais saber que cor ela teria de verdade, sob aquelas luzes. Ela já não tinha mais sangue circulando, não tinha a pele morna de antes. Eram os últimos momentos de sua beleza. Eu continuei rodando, sem saber ainda o que fazer, para onde ir exatamente. Enquanto isso, ela ia vibrando e se agitando com o movimento do carro, às vezes iluminada, às vezes um volume de sombra por emergir das trevas. Lembro que uns rapazes deram uma gargalhada muito alta num carro ao lado, eu me assustei um pouco, eles deviam estar bêbados, não era comigo, claro, logo foram embora, numa arrancada. A vida se cruzava por toda parte, entre fluxos de tráfego, pedestres nas calçadas, nas faixas de segurança… Todos sempre se deslocando em busca de alguma coisa, vivos, tentando se realizar de alguma forma. Enquanto isso, em silêncio, ela apodrecia ao meu lado.”

Liana toma toda a água de seu copo. Quase se engasga. Não sabe para onde olhar.

“Danilo, olha… Imagino como foi difícil. Que situação horrível…”

“Ela não caiu nenhuma vez para a esquerda, em cima de mim, porque o cinto de segurança…”

“Não, espera, escuta. Não tem problema isso. Não fala assim, olha, isso não é o mais importante, são detalhes que… A situação toda, por si só…”

“Mas os detalhes são importantes, não são? Você mesma diz isso.”

“São. Não. Às vezes. Depende.”

“Eu continuava chocado com aquilo tudo, sabe? Atordoado. Quase neutralizado. Com breves surtos de taquicardia. Depois, uma calma preocupante. Ela era, pra mim, um prêmio, entende?”

“Um-hum. Certo. Eu entendo. O que fez com o corpo, Danilo? Isso é o que eu quero saber agora, só isso. Olha pra mim. Só isso. O que você fez com o corpo da Ana? Pode me contar?”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

 28. Todos nós, de vez em quando… – sequência

26. Um puta abraço, os dois – anterior

Imagem: Clyfford Still. Sem título. 1955.

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