Office in a Small City por Edward Hopper

Sentimentos são defeitos nossos

Esperava, estratégica, o momento certo para tornar ao assunto.
Mas agora, sem que ele percebesse, ela se sentia trêmula.

“Na hora passou pela minha cabeça aquilo de ela encarar os sentimentos como defeitos nossos. Que era esse o problema. Era essa a nossa imperfeição, a nossa desgraça: ter sentimentos.”

Logo após dizer isso, Danilo olha de relance para um espelho na parede. Pensa ter visto alguma coisa brilhar ali. Mas não, baixa os olhos para o copo de vidro em sua mão, sem interesse pelo que vê.

“Interessante…”, diz Liana em voz baixa, praticamente sem mover os lábios. Pensa por um momento na evolução da vida, atravessando cegamente grandes períodos geológicos, uma imagem vaga em sua mente, e como os sentimentos só poderiam mesmo atrapalhar – mas, mesmo pensando com palavras, que é como sempre se pensa, não elabora nada mais do que uma nuvenzinha rápida de associações, que logo se desfaz.

“É, pra ela deviam ser, era assim que ela sentia”, Liana tentando entender, principalmente tentando ajudá-lo a entender. “Devia ser tudo muito pesado pra ela. Cada um tem um limite, não é? Pra ela, os sentimentos deviam agir como algo prejudicial, traumático… Ah, mas quem sou eu pra explicar isso tudo assim? Até certo ponto, eu entendo que ela não devia viver bem com o que sentia. Afinal, ninguém comete suicídio por nada, isso ainda desafia nossas expectativas, é sempre muito forte e incompreensível pra nós.”

“Incompreensível? É, mas…”

“Mas…?”

“Nada não. É incompreensível sim. Tem razão.”

Liana se oferece para encher o copo dele, estendendo a mão – ela não sorri mais, nem uma única vez, desde que ouviu a história do corpo, aquela situação macabra, seu namorado passeando com uma morta pela cidade, em algum lugar do passado. Espera, estratégica, o momento certo para tornar a esse assunto, tão racional como ela consegue ser, como profissionalmente sempre consegue ser. Mas agora, sem que ele perceba, ela se sente trêmula.

“Gostei do que você disse antes, sobre Deus ser todos os nossos sentimentos juntos.” Meio serena, meio nervosa. Pensativa.

“O quê? Eu disse isso? Ah… É mesmo. Cheguei a pensar assim, naquela idade. Fui sincero quando disse isso a ela. Mas também achei que isso pudesse fazer bem a ela, que pudesse ajudar. Ela parecia ter um conceito confuso sobre Deus.”

Liana quase ri.

“Ah! E quem não tem? Não conheço ninguém que fale alguma coisa clara sobre isso.”

“De qualquer forma, pensei que pudesse ajudar. Hoje, não sei. Não sei se isso ajudava. Se os sentimentos dela eram tão pesados, dolorosos, perturbadores, talvez ficasse pior pensar que Deus era esse tormento todo. Bom, enfim, são coisas da vida, falamos uma porção de coisas, e nem sempre o que nós dizemos se parece com o que nós somos de verdade, mesmo não querendo mentir. Porque, no fundo, eu não quero mentir. A começar por mim mesmo. Qual é a vantagem de se autoenganar? Deus não existe. São palavras nossas.”

Liana espera que ele continue. Ele não continua. Olha rapidamente para ela, volta-se para o copo, volta a ela (um segundo e meio isso tudo), fixando-se em seu rosto, quase sorri de boca fechada. Em vez disso, prende os lábios como se lhe dissesse: “Então… É isso. Pois é.”.

“Você… pensa assim hoje?”

“Há muito tempo.”

“Desde quando? Lembra?”

“Lembro. Lá pelo fim da minha adolescência, algo assim. Comecei a separar mitos de coisas reais. Mitos são mitos, eu dizia a mim mesmo. E todos os mitos são mitos. O Gênio da Lâmpada ou o Caipora ou a Fada Azul… Todos eles têm o mesmo valor. Não parece simples?”

“Sei, mas… Bom, tudo bem. Mas quando você disse isso a ela, já era adulto.”

“É, é verdade. Tem razão. Mas eu não menti. Foi uma ideia que eu tive por aquela época. Não pensava mais em um deus como uma pessoa, por isso.”

“Tudo bem, deixa, isso não me interessa muito. É que eu fico lembrando do que você contou. Sem querer, associo uma coisa com outra, sem querer mesmo. Acontece como se fossem ideias novas, um jogo de informações, conexões e… Não sei. Parece que algumas coisas fazem sentido, e outras… Espera um pouco, espera aí. Estou me lembrando de uma coisa agora. Uma coisa que você contou. Ela disse algo sobre alguém não existir naquele ano, não é? Desenhando nos lençóis, com um dedo, não foi isso? De alguém que ainda iria existir…”

“Ahn… Mais ou menos. Sei lá. Mais ou menos.”

“De ela não existir antes do ano de nascimento dela, e alguém que ainda não existia naquele ano, no presente. Não foi isso? Que dali a outros cem anos, tudo de novo, com outras pessoas… E nenhum de nós… Nenhum de nós… Não era isso?”

“Era. Não. Era sim. Sei lá.”

“Alguém que ainda não existia… Danilo, você não pensou nisso?”

“Nisso o quê?”

“Ela estava querendo dizer alguma coisa.”

“Querendo dizer alguma coisa? Como assim?”

“Ela estava tentando dizer alguma coisa, não percebe?”

“É nada. Era tudo confusão dela, ela era assim mesmo.”

“Danilo, pensa bem. Pensa um pouco”, Liana chega a tremer com o copo na mão.

“Querendo dizer o quê? Como assim?”

Uma gota, um fio de água escorre do queixo para o peito dela, ela detém esse fio com um dedo, interrompendo seu fluxo já na altura da barriga.

“Será que ela… estava grávida?”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

31. Pouco sobre Alan, muito sobre pouco – sequência

29. Alan nos deixa – anterior

Imagem: Edward Hopper. Onze da manhã. 1926.

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