Office in a Small City por Edward Hopper

A Walther PPK

Eu via o metal refletindo uns pontos de luz que vinham de algum lugar a que nem prestei atenção.
Os olhos dela, no motel, brilhavam como o metal.

Hidratado ou não, Danilo sentiu sua boca seca, com gosto de pedra ou areia. Ficou quieto. Depois, quase sorriu. Depois, pareceu irritado.

“Grávida? Não, não. Não acho não. Porque ela… Ah, não começa a fazer drama. Isso é bom pra novela de horário nobre. Que grávida o cacete!”

“Drama? Mais do que isso, isso da morte dela?”

Danilo, não querendo admitir frente a Liana, põe em dúvida essa possibilidade – na qual, sinceramente, nunca havia pensado. Ana Lúcia podia estar grávida, por que não? Início de gravidez, imperceptível fisicamente. Mas o fato é que ele não se sensibiliza com isso. Não lhe importa a mínima se ficar sabendo, hoje, que ela estava grávida quando morreu. E se, na época, soubesse disso, certamente teria medo. Seria esperar demais daquele jovenzinho desajeitado. Talvez não tivesse saído com ela de jeito nenhum – e, com isso, todo esse transtorno teria sido evitado desde então. E ela, provavelmente, estaria viva. E ele, provavelmente… Bem, mas isso tudo é o passado. O conhecido e velho passado. Já era.

“Não, que grávida nada. Se for ficar interpretando cada coisa que ela falava… Daqui a pouco nós vamos ter de concluir que a arma era algo excitante nas mãos dela, lembrando uma vida perigosa e aventureira, como nos filmes, sabe como é. Armas associadas à sedução, ao sexo, ao poder…”

“E geralmente são. De forma indireta. Sugerem poder, claro.”

“Pois é. Mas os olhos dela brilharam quando ela pegou a arma com as duas mãos. Ficou olhando aquela coisa por todos os lados, admirando nem sei o quê. Depois, pegou com uma mão só. Assim, com uma mão só, está vendo?”

“Entendi, entendi. Que chato.”

“Ela continuou virando a arma, apreciando uns detalhes, contemplando um lado e outro, curiosa e encantada. ‘Que linda…’, ela repetia, em voz baixa. Não sei se alguma vez na vida ela tinha visto uma arma de tão perto. Parecia uma criança com um brinquedo mágico. Conforme ela girava e virava aquela pistola automática, eu via o metal refletindo uns pontos de luz que vinham de algum lugar a que nem prestei atenção, alguma fresta que eu nem tive a paciência de confirmar. Tudo isso montava uma cena inusitada. Os olhos dela, no motel, brilhavam como o metal.”

“Motel?”

“Hotel.”

“Ahn… Mas… por que esse ritual todo?”

“Ritual? Como assim?”

“Por que ela ficou olhando a arma desse jeito? Por que ela ficou fazendo isso?”

“Porque… Sei lá. Porque estava admirando a beleza daquilo, acho. Essa parte toda foi logo no começo. E isso a excitou, à maneira dela. Ela logo me agarrou com força, começamos a trep… a fazer amor daí em diante, com muita vontade, rapidamente, sem trégua, até nenhum de nós aguentar mais, no limite de nossa capacidade biológica e…”

Ele quase se excita ao contar isso, sem disfarçar algum estúpido orgulho masculino. Também quase se envergonha em seguida. Liana, analítica, não se move.

“Não entendi. Ela se excitava com essa tal arma. E isso a levava a esses ímpetos de sexo selvagem?”

“É. Pareceu que sim. Não espero entender isso, não me peça pra explicar.”

“Não, nem pensei que pudesse explicar. Você às vezes não compreende coisas até mais simples. O que me intriga é isso de ela fazer da arma parte do jogo, da excitação dela e tal. Você sabia disso? Não se surpreendeu?”

“Ahn… Não. Eu já sabia que ela estava muito curiosa. Imaginei mesmo que fosse examinar a automática com aquele fascínio. Acho que ela nunca tinha visto uma arma de verdade. E era uma Walther PPK, realmente bonita, dessas que…”

“Era uma o quê?”

“Uma Walther PPK. A mesma usada nos filmes do…”

“Para. Espera aí. Deixa eu entender uma coisa.” Liana coloca o copo ao lado da cama. “Era uma Walther PP… o quê?”

“K. E dava gosto ver a Ana Lúcia com aquela felicidade ansiosa. Parecia uma criança, feliz com seu brinquedo, como eu disse, que era como eu a percebia no momento. Ela disse: ‘Olha só (leu): Walther PPK… Que linda…’, ‘É Uólter,’ corrigi. Mas ela nem me ouviu. Estava encantada. Tinha lido Válter. O inglês dela não era aquelas coisas, você pode imaginar.”

O inglês não era o caso, nem poderia ser: Danilo não sabia que a arma era alemã, portanto a pronúncia devia ser mesmo bem próxima de Válter. Um entendido, sem dúvida. Corrigindo os leigos.

“Para de novo. Espera aí.” Liana com a palma da mão aberta, logo à frente do peito dele, como se fosse parar o trânsito, pausando as palavras. “Eu vou dizer… o que você… quer me dizer, mas… não quer me dizer. A arma… Essa automática… Essa…”

“Walther…”

“Que… se… dane…” pronunciando isso no mesmo tom, sem alterações na frequência das pausas. “Que você sabia o nome… não era dela. Essa coisa PPK… era… sua. Você a levou. Não ela. A arma… era… sua.”

Danilo respira fundo, impaciente.

“Era sua, então. Entendi certo? A arma… era sua.”

“Ah, puxa, eu já sei o que você está pensando. Já vi que eu não posso contar mais nada. Tudo acaba se complicando, não é? Que merda! Conto uma coisa, você entende outra. Explico uma coisa, você vem com a mesma dúvida de novo. E pensar que nós dois estamos num motel, tentando viver um bom momento, pagando por isso…”

“Danilo, a arma era sua? Era sua, então. Danilo, você me… Calma, Liana, calma…” Ela se levanta, anda pelo quarto, falando consigo mesma. “Calma, Liana, vamos ver, vamos pensar…”

“Ei, que isso? Ficou maluca? Ah, mas que coisa…”, ele meio entristecido, meio indignado.

“A arma era sua, não dela.”

“Era minha. Não dela. Muito bem. Perfeito. Portanto… o quê?”

“E por que você tinha uma arma? Desde quando?” Liana pergunta isso olhando para os lados, como se falasse com alguém nas paredes. “E por que a levou carregada, se era só pra mostrar a ela e… ?”

“Eu tinha comprado de um amigo que vendia essas coisas, ele tinha uns contatos. Aliás, vários de meus colegas conheciam contrabandistas, traficantes… Alguns eram, eles mesmos, contrabandistas. Eu não resisti, ela era linda, era como eu via no cinema. Cheguei a pensar em começar uma coleção. Mas, naquele tempo, não tinha grana pra muita coisa. A gente tinha combinado de eu levar a arma, ela estava louca pra ver. Eu não queria admitir que talvez fosse por isso, quem sabe, que ela tivesse topado sair comigo. Ela me pediu pra levar. Não tinha nada de mais nisso.”

“Calma, Liana… Calma…”

“Para com esse drama, que coisa irritante! Eu não podia imaginar que ela fosse fazer aquilo. Acredito mesmo que ela não tivesse planejado nada, deve ter sido coisa de momento. Deve ter surtado, se deprimido de repente com um daqueles pensamentos enigmáticos dela e… Enfim, como é que eu vou saber?”

“Liana, vamos ver…” Ela agora coçando a cabeça com as duas mãos, lateralmente, revolvendo os cabelos.

“Você está engraçada, sabia? Falando seu próprio nome assim, desse jeito. Para com essa bobeira, vem cá, vem…”

“Danilo, olha. Acho que eu quero ir embora agora. Outro dia a gente conversa, certo? Outro dia, que tal?” Começa a juntar suas roupas.

Danilo sai da cama, aproxima-se dela.

“Que foi, minha linda? Que isso? Você… está impressionada com uma coisa que aconteceu há mais de vinte anos, é isso?”

Ela não diz nada. Apanha a saia no cabide, a calcinha do chão, uma das sandálias…

“Liana, para com isso”, Danilo a abraça de lado, ela fica onde está, sem olhar para ele. “Vamos conversar, só isso. Preciso esclarecer isso tudo, eu sei. Nós não podemos sair assim, desse jeito, você com todas essas dúvidas na cabeça. Eu às vezes me confundo, às vezes minto também, tento omitir alguma coisa quando acho que isso só vai criar mais confusão. E você pensando e entendendo tudo errado, desculpe dizer isso, assim, mas você está entendendo tudo errado. Vamos sentar, vem cá, eu conto tudo o que você quiser. É sério, eu não vou mais mentir, tudo bem?”

Ela desiste, solta as roupas, volta à cama, levada pela mão dele.

“Tudo bem. Estou ouvindo”, muito, mas muito sem vontade.

“Aliás, eu já contei tudo, não foi? O que falta? O que você ainda quer saber? Que tal se eu te mostrasse os jornais num outro dia? Você pode ir lá, na minha casa, vamos tomar um café por lá, que tal? Hein?”

“Olha, não é isso. Se você contou tudo, eu não sei. O problema é que começou de um jeito e acabou de outro. O que você acha que eu devo pensar? Você leva uma arma a um encontro, uma arma carregada, está sozinho com a garota, ela é encontrada morta, ensanguentada, você esconde o corpo…”

“É, tem razão, tem toda razão. Uma situação complicadíssima pra mim. Foi mesmo muito complicado pra mim. Os policiais investigaram tudo, tudo em minúcias, me interrogaram muitas vezes, mas muitas mesmo, a perícia coletou muita coisa, e no fim confirmaram que ela tinha se suicidado. Meu azar foi só estar junto.”

“Foi azar então?”

“Outra coisa que também é possível: um acidente.”

“Ahn?! Acidente?”

“Ela pode ter pensado que a arma estivesse descarregada e, de brincadeira… simulando alguma cena… algum gesto… acabou… acabou…”

“Muito estranho, hein? Não sei…”

“Quer saber como foi a investigação?”

“Não, não agora…” Ela leva a mão à testa, como se anunciasse uma dor de cabeça repentina.

Ele a abraça com carinho, afagos nos cabelos.

“Isso, fica assim comigo. Relaxa…”

Sente que ela se acalma – ou persiste a má vontade.

“Ficar com você assim me faz bem. Me faz tão bem… Sabe, Liana, tudo o que uma vez me atormentou no passado agora não é mais nada, agora que eu tenho você. Você comigo. A gente lá fora com essa nossa vida atribulada, cheia de responsabilidades, compromissos… E aqui, no motel, com você, tenho uma sensação tão boa de que estamos longe de tudo que nos pressiona, que nos ameaça, que estamos a salvo por algum tempo.”

Ela parece prestar mais atenção a essas últimas palavras. Ergue quase nada as pálpebras, em conjunto com as sobrancelhas. A salvo? Por algum tempo? Não, não. Ela está mesmo sugestionada, exagerando em sua percepção, forçando os significados. Danilo já disse tantas coisas parecidas com isso antes, sem que ela nunca tivesse atribuído nenhuma ambiguidade à sua fala, e agora, só porque… Se cada palavra que ele disser for associada a algum… a alguma… Calma, Liana. Calma.

“Desculpe. Me desculpe. Sei que deve ter sido horrível.”

“É…”, ele suspira. “Eu não queria contar logo de cara que eu tinha uma arma. Podia parecer estranho, você sabe. E que minha ex tinha morrido tragicamente. Imagine: um mês atrás, a gente mal se conhecia, eu e você.”

“Ela não era sua ex.”

“É… Pois é. Isso mesmo, não era mesmo. Viu como as palavras escapam, nos atropelam?”

Mas, no fundo, ele quase engasga com a saliva. Liana se mostra cada vez mais observadora. Cada vez mais atenta. Torna a tocar em um detalhe de algo que ele já contou minutos atrás, para então questioná-lo de surpresa. Mas não, não parece intencional. Ela de fato costuma se lembrar das coisas um pouco mais tarde, atina com uma interrogação pendente, revê uma passagem não inteiramente esclarecida, quer saber como completar as conexões que ela mesma vai desenhando em sua mente. O que mais ela vai querer saber agora?

“Você… ainda tem essa arma?”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

33. Júnia – sequência

31. Pouco sobre Alan, muito sobre pouco – anterior

Imagem: Lea Kelley. Tarde demais para chorar. 2007.

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Comentários

Uma resposta para “A Walther PPK”

  1. Avatar de Perce Polegatto
    Perce Polegatto

    Opa, muito obrigado pela dica. Eu não sabia mesmo.
    Abraços.

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