Office in a Small City por Edward Hopper

Você ainda tem essa arma?

Liana pensa por um instante que Ana Lúcia não seria dele. Nunca.
Mesmo pensando nela como uma menina fácil.

“Não. Eu a joguei fora naquela noite. Não podia ficar com ela, imagine.”

“Por que não?”

“Por que não? Ora, porque… Porque não. Se a polícia conseguisse um mandato e revistasse a minha casa e eu…”

Mandado. E a polícia? Não perguntou nada sobre a arma?”

“Ah, claro que sim. Claro que sim. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que contar tudo, e foi o que eu fiz. Por isso mesmo é que fui inocentado. Certo? Afinal, tudo o que eu disse a eles era verdade. A perícia e as investigações confirmaram isso. No fim de tudo, o laudo foi mesmo o de suicídio. E o caso foi arquivado.”

Pronto, não é possível que ela não entenda. Claro que entende. Entendeu. Esse breve silêncio mostra isso, que ela entendeu sim. Isso deve deixar tudo esclarecido, interrogatório, perícia, laudo… – tudo, tudo. O que ela pode perguntar mais? Puxa, sinta só esse contato do corpo dela junto ao seu, que nudez agradável, que pele gostosa, que cheirinho bom e, aliás, como ela está bonita hoje.

“Mas…” Liana ergue um pouco a cabeça, soltando-se do ombro dele.

Esse mas interrompido provoca nele um arrepio de incômodo. Lá se vai o contato, a nudez agradável – e outras coisas agradáveis, pelo jeito. Mas o quê?

“Como eles verificaram isso, se não tinham mais o corpo na cena do crime? E a arma… não tinha sumido?”

“Liana, mas que coisa!” Paciência, paciência, lembre-se de como ela está bonita hoje. “A polícia tem suas técnicas, sabe lidar com essas coisas. Eles analisam a trajetória do tiro, a pólvora nas mãos dela, da vítima, a ausência de sinais de violência e outras coisas, outras mil coisas, você sabe. Também, os caras que fazem os interrogatórios costumam ser experientes o bastante para perceber se alguém está mentindo ou não, eles não são bobos. São treinados. Tudo isso foi publicado, está publicado, passo a passo, nos jornais da época. Eu guardei o que pude. Fiz uma pasta com os recortes, até gostaria que você visse, gostaria mesmo.”

Ela relaxa, torna a acomodar a cabeça no peito dele, perto do ombro. Apenas pensa, muito de longe, que parece estranho ele ter guardado esses tais recortes sobre o Caso Ana Lúcia. Por que se prendia assim, a isso, por tanto tempo? Mas não continua filosofando nessa linha, desiste em meio à suave confusão de detalhes, um pouco de sono e ao agradável contato com o corpo dele. Sim, ela admite: uma certa preguiça de pensar em tudo, apesar da curiosidade.

“Então está certo. Eu vou ver sim. Vamos marcar um dia, tudo bem?”

“Claro. Ótimo. Assim eu não preciso ficar contando tudo de tudo. Você pode até levar pra ler, se quiser. Foi um caso que chamou a atenção da imprensa por uns dias. Uns dias, uma semana, não mais. E ainda bem, porque eu não aguentava mais aquilo tudo.”

Liana olha para um lugar qualquer, meio de lado, a parede oposta talvez, algum objeto, ele não sabe. Mas está mais tranquilo agora, vendo-a assim, também mais calma. Relaxada. Distraída.

“Num outro dia, o irmão dela foi me procurar, olha que situação…”

“Irmão? Irmão dela?”

“É. O irmão dela foi falar comigo. O que tem?”

“Você disse que ela era filha única. Tinha sido criada pela mãe solteira…”

“Não, eu não disse que ela era filha única. Não, não mesmo.”

Liana em dúvida. De fato, não se lembra de ele ter dito isso.

“Tudo bem, deixa. E aí? O que ele queria?”

“Ficamos conversando. Coisas sobre ela, claro. Sobre aquilo tudo. Então, num determinado momento, ele perdeu o controle: começou a chorar e tentou me agredir, tentou dar um soco na minha cara, eu me desviei por instinto, me protegi com o braço, tentei, como pude, segurar os braços dele, pedindo que se acalmasse. ‘Calma, não faz assim!’, eu dizia. ‘Eu pego uma água pra você, dá um tempo, se acalma, isso não adianta nada agora, não adianta ficar me xingando desse jeito, não sou nenhum assassino.’ Ele conseguiu se acalmar, e aí eu fui…”

“Ele te chamava do quê?”

“Assassino. Ele gritava: ‘Assassino! Você matou a minha irmã! Matou a minha irmã!’”

Psss…! Mais baixo… Que isso!”

“Ah, me desculpe…”, levando a mão à frente da boca. “Não percebi.”

“Se alguém ouviu…”

“Ninguém ouviu não. Ninguém ouve nada direito num lugar assim.”

“E o que ele dizia?”

“‘Assassino! Você matou a minha irmã, desgraçado! Ela adorava viver! Ela adorava namorar! Agora que ela estava na faculdade…’ Mas ele não tinha noção dos problemas dela, das questões internas que atormentavam a Ana praticamente o tempo todo. Ele só via as aparências: a faculdade, os casos que ela tinha… Adorava namorar, veja se tem cabimento. E daí? E daí que gostava de namorar?”

“Ele achava mesmo que você…”

“Não sei. Parecia que sim. Que ele estava em dúvida. Ele não me conhecia. Eu podia entender que ele estivesse em dúvida. Ela andava com cada tipo…”

Liana pensa por um instante que Ana Lúcia não seria dele. Nunca. Esses tipos que a atraíam não têm nada do perfil de Danilo – principalmente quando o imagina em outra idade, jovem e despreparado. Provavelmente o que ela queria era só ver a tal arma, queria conhecer uma coisa diferente. Era como se pagasse o preço dessa curiosidade, dando a ele uma noite de sexo, o que para ela não parecia ser muito difícil. Devia ser uma putinha manipuladora, mais nada. E como os homens são tontos o suficiente… A tal arma é que era o atrativo da coisa toda, é o que dá a entender. Ela quis pagar o preço, correr o risco. Ou nem mesmo teria pensado nisso assim, desse jeito. Seria um preço baixo, talvez. Acabou pagando um preço alto. No fundo, Liana não consegue criticá-la de verdade. Mesmo pensando nela como uma menina fácil, inconstante, desmiolada. O que sente é um carinho secreto por ela, um sentimento básico de empatia, alguma solidariedade. Uma garota assim acaba mesmo sendo usada por todos.

“Quando ele se acalmou, eu disse: ‘Você sabe que não fui eu. Que eu não matei a sua irmã, não sabe? A polícia apurou tudo. Você sabe. Não sabe?’ Ele não respondia. Não parecia convencido. Alguns pontos não haviam sido inteiramente esclarecidos, esse era o problema. Havia impressões digitais minhas e dela na arma, é claro. Se eu fosse o culpado, teria limpado as minhas, teria usado luvas, depois deixaria a arma na mão dela. Certo? Na opção por uma coisa e outra, a hipótese maior era a de suicídio, foi assim que a investigação concluiu.”

“Deve ter sido uma notícia e tanto. E daí em diante… Como foi o funeral e…?”

“Eu não fui ao enterro dela nem nada. Estava completamente arrasado. A faculdade toda chocada com essa história louca. Por pouco tempo me tornei famoso, o que é horrível. Parei um tempo de frequentar as aulas, todo mundo me olhando. Sorte que me inocentaram logo. Nesse ponto, eu tenho que admitir: a polícia foi muito competente.”

“Sei. E os seus amigos… não conversavam com você, não te apoiaram?”

“Alguns, sim. Bom. Não lembro direito.”

“Como? Não lembra disso?”

“Lembro. Não eram propriamente amigos, eram conhecidos, colegas de classe. Gente com pena de mim.”

“Sei, sei. Mas…”

Não: de novo esse mas arrepiante! Dessa vez, Liana não diz nada. Mas pensa: essa teria sido uma boa estratégia também, não limpar as digitais para não parecer forjado, artificial. Para parecer o mais realista possível. Seria muito estranho que a arma dele não tivesse as digitais dele.

“Mas…”

É alguma outra coisa. Ela não acabou ainda.

“Você disse que tinha jogado fora a arma.”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

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33. Júnia – anterior

Imagem: Lea Kelley. Animosidade crescente. 2010.

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