Office in a Small City por Edward Hopper

Páginas claras, penumbra

Seus sentidos já pressentem o que há de vertigem sob esta superfície, e assim prossigo.
Sei que contar não ajuda muito. Contar é já fazer esquecer. Ainda assim, preciso que me ouça.

Você também provou de um veneno infalível, tornando-se desde então essa figura silenciosa, sobrevivente como eu. Duas vezes, diz. Em tudo está um passo além de mim. Na segunda, arrependeu-se a tempo. Você vê: o veneno já estava surtindo efeito. Quanto a mim, conheço de memória esses sabores traiçoeiros, imprecisos: amargo a princípio, torna-se gradualmente doce, como se… Tem razão, Augusto, não faz diferença. Isso de um veneno ser amargo ou doce.

Tenho ainda as primeiras palavras que lhe disse: não há nada de muito importante, embora afirmem o contrário. Sim, Augusto, é verdade. Ainda sou o mesmo. Este lugar, o movimento avulso das pessoas, as mesas que são este café e esta noite, tudo transpirando fugacidade e ausência, não passam de uma mentira, você sabe. O real? Exatamente. Eu mesmo, enquanto lhe falo, sou movido por um impulso doentio que não me cabe compreender, mas que se esforça por ser sua própria resposta, abrindo caminho entre o consistente, o concreto, o efêmero. Certo, as palavras são areia. Mesmo assim, eu me sirvo delas. O objetivo maior? Ainda é cedo. Mas se sou eu próprio uma questão colocada ao mundo e não puder fornecer uma resposta a mim mesmo, estarei reduzido às respostas insuficientes que tanto consolam e acalmam a maioria, à qual pertenço de certa maneira, digamos… fisicamente. O que tenho sido através de outros, inclusive, o lugar onde moro… Parece que tudo nos cerca, eis a sensação. Em outro lugar, eu seria outro? Se fosse outro, seria outro, não é? As ideias grosseiramente simples são as mais complexas, você diz. Por isso ninguém sabe responder às perguntas das crianças. E eu, que me havia proposto encontrar o que não deve ser procurado, como um bebê se esforça por alcançar o objeto que o atrai… – sinto que estou me perdendo. Comparações outra vez. Como quando buscava em Vanda algo que eu suspeitava acima dela, por trás de seu corpo, ou que talvez só eu quisesse ver, quando subíamos da piscina ao apartamento, seus mamilos a um tempo retraídos e eriçados, mais escuros que o rosa de serem o centro de cada seio, a pele aí mais clara que as extensões sob guarda do sol mas diluída junto ao desenho das alças por uma constelação de pequenas sardas, o corpo à sombra, com algo ainda de fresco e úmido contra o calor contido, eu assimilando de sua nudez uma resposta perdida, uma trilha de heranças e instintos sob suas penugens, por vezes abrindo-a com dois dedos antes de resvalar por seu túnel, tendo-o há pouco iniciado sob o passeio da língua ansiosa, a voz dela pouco emergindo do silêncio, “O que você quer de mim?”, “Não sei, Vanda…”, nem saberia depois, minha língua agitada e muda, a saliva gosmenta servindo também a facilitar-lhe outras intromissões, mesmo onde de sua parte confessava um estranho equilíbrio entre a dor e o prazer, o que se traduzia na reação de pressionar-me involuntariamente e sempre mais, antes de tornar à inércia que lhe impunha a exaustão, ela outra vez estirada de costas, feita um xis instalado ali no final, no vértice das pernas abertas, no centro de tudo a boca rubra, absolutamente alheia a qualquer pergunta mal realizada, respostas esquivas, escapando entre o descontrole que produzia a volúpia, como escapam as soluções e os sinais sob o poder do sono. Antes que as coisas passem, e o tempo escorregue por nossos dedos. Antes que tudo escorregue por entre nossos dedos e… Antes que… Acha que estou me perdendo? Tudo bem. Eu sempre me perco. Mas estou calmo, está vendo? Olhe minhas mãos. Que mais posso fazer? Que lhe importam a régua e o esquadro, os ângulos exatos com que se constroem os lugares? Em outro lugar, eu seria outro? Se fosse outro, não estaria sentado aqui, talvez não contasse, apenas vivesse. Ou não será diferente? Você me olha agora com alguma atenção. Seus sentidos já pressentem o que há de vertigem sob esta superfície, e assim prossigo. Sei que contar não ajuda muito. Contar é já fazer esquecer. Ainda assim, preciso que me ouça.

Do diário de Júlio Dias.

É preciso contar. Sempre que o torvelinho de situações, que é o mundo, e a passagem dos dias, que é os próprios dias, se tornam estranhamente incômodos, é preciso contar. Eis minha necessidade, meu caminho. A sequência de imagens e sensações frias que dão continuidade à vida cotidiana, mescladas à confusão de outras tantas vidas, são às vezes tão espessas como uma neblina ancestral de mil sentimentos, penso. E é certamente esse plasma indecifrável – vida, mundo, neblina – o que exige de um homem que se desfaça em palavras, seu único recurso. Assim, desde seu íntimo abissal e apesar da morte, ele registra seu depoimento.

Plasma de mil sentimentos, veja só. Vamos, não seja tão implacável. É o texto de um jovem sonhador. Reconsidere, há muitos como ele. Parecem poucos, porque se disfarçam e têm medo, enquanto não se convertem ao mundo, um mundo que… Está bem, não vamos cair nessa, aí está o perigo.

As civilizações, como os seres vivos e as estrelas, nascem, florescem e morrem. Tudo o que uma vez foi prosperidade e império não é hoje mais do que o silente passado, o musgo. A hera. O limo sobre as pedras.

Sei que me entende. Essas ruínas podem ser revistas por qualquer criança que se debruce sobre uma enciclopédia e, sob esse aspecto, todos os tempos se parecem. Mas a preocupação de um homem com os eventuais conflitos que cercam a existência poderá ser reencontrada sem o menor risco de tornar-se antiga. Pois será sempre um homem reencontrando outro homem. Quer saber se esse homem sou eu? Não me olhe assim. Talvez seja você. Uma vez registradas na combinação de tipos enigmáticos que são as palavras escritas, tais confissões passam a existir como um objeto. Passam a ser suas. E estão condenadas ao plano assustador da eternidade.

Choveu o dia todo em que eu parti.

Lirismos, leia-se exageros, à parte, as anotações em um diário podem ser a chave de caminhos não suspeitados. Páginas claras, penumbra. Pois é assim que se registra o que desde já se perdeu. É preciso contar.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

3. Caminhavam mais lentamente… – sequência

1. Os últimos dias de agosto. Abertura – anterior

Imagem: Michael Loew. Delineações no espaço (detalhe central). 1955.

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