Office in a Small City por Edward Hopper

Retomadas e recaídas: de volta ao baile de máscaras

Pouco me importava ter nascido no passado ou no futuro, pois estaria sempre no presente.
O que, principalmente, realmente importava era vencer a neblina. A neblina.

Quando por fim recobrei a calma (eu estava chorando) e ergui os olhos para o mundo, senti que havia alguém, e voltei-me para ver. O menino esquivo e silencioso que eu havia perdido entre as ruínas. E não estava enganado quanto a reconhecê-lo: era o menino que eu fora, era eu próprio esquecido no tempo.

Não tão explícito. Ridículo. Riscar as últimas frases.

“Ela é bonita, não é?”, perguntou-me sem sorrir.

Não respondi.

“Você não vai ao baile?”

“Não”, falei com tristeza. “Minha irmã não está lá.”

“Quem é a moça de azul?”

“Eu… pensei que fosse ela”, respondi.

O menino, que nunca sorria, fez um gesto para que eu o seguisse.

“Quero que veja algo.”

Levou-me a um lugar também conhecido por mim, mas do qual me esquecera com o passar dos anos: um pequeno bosque, região de árvores esparsas, margeando a trilha pela qual eu costumava caminhar, quando criança.

“Este caminho ainda existe?”, indaguei surpreso.

“Ainda existe este caminho. O caminho que nunca passa. Não há pontes sobre os rios sujos nem esperança para os meninos que se destroem. Mas este é o caminho que lhe era destinado.”

Olhei outra vez para a trilha, as árvores que não imaginei pudesse rever algum dia.

“Lembra do cão?”

(Ainda não terminei o trecho com o cão, que é a chave para se compreender o resto do texto. Paciência.)

Quando ele disse isso, senti uma pontada no peito, como se aquela lembrança fosse por demais dolorosa, e eu desejasse afastá-la.

“Nunca mais vou esquecê-lo.”

O menino quase sorriu de minha ingenuidade.

“Talvez. Mas a culpa não foi sua. Talvez não existam culpados. Lembra que ninguém vinha brincar com você? E se julgava forte entre a solidão dessas árvores. Quando o cão nasceu, você já vivia. Você lhe dera carinho em sua infância, mas ele não se lembrava disso, era muito pequeno. Viveu e morreu, mas você ainda vive. Uma vida passou pela outra, e houve amor alguma vez. Ele estava certo quando lhe pediu que não se esquecesse de certos sentimentos. Talvez seja a única maneira de nos salvarmos.”

Senti que estava a ponto de chorar, desta vez movido por uma estranha felicidade.

“E a minha irmã gêmea? E a garota de azul?”

“Azul”, disse ele. “Da cor de seu sonho. Quem sabe? Volte lá. Volte a ela. Dance. Ficarei aqui para que possa vir novamente. Assim, encontrará sempre alguém com quem brincar.”

Olhei seu rosto liso e notei que algumas rugas começavam a marcar o meu. A juventude se ia. E o que mais eu desejava era agarrar a vida com todas as forças que eu não tinha.

Voltei ao jardim e ao baile, que não tinha mais portas para mim. Ela ainda esperava, quando me aproximei. No fundo de seus olhos claros, meus olhos cansados. E o convite que era só e especialmente dirigido a ela:

“Venha dançar comigo.”

Acaba assim. Convincente? Sim, perfeito. Para meninas apaixonadas e jovens poetas. Eu havia prometido a mim mesmo que não pensaria em dinheiro. Outra personagem rasa, só uma representação, outros olhos azuis, resquícios inconscientes dos contos de fadas, princesas e jovens nórdicas, preciso libertar-me do que ainda podem tais intensos padrões, o que aos poucos percebo, conforme vivo e penso. Conforme escrevo. E quero escrever algo que preste. Retomo meus arquivos de rascunhos, considero-os. Entre meus projetos, guardo há certo tempo as seguintes propostas: um conto em que três objetos, uma bolsa, um isqueiro e um relógio, aparecem e desaparecem do texto, unindo seus personagens e direcionando a narrativa. No último parágrafo, quando, por força de uma cena chocante, o leitor já os terá esquecido, os três ressurgem, em sequência, na frase final, com isso causando a incômoda sensação de que as coisas não se haviam passado como aparentemente se passaram, e tornará claro um dos episódios iniciais. Uau, hein?

Outra, tão ousada quanto ridícula: três contos com o mesmo título. Mas não com o mesmo tema.

Um texto redigido em português arcaico, não este:

Era uma vez um homem honesto e de bom coração, que levava uma vida simples, como semeador de trigo, e seu nome era Gentil. E havia um seu amigo de infância, que se tornara salteador de estradas sem qualquer motivo aparente, e seu nome era Rui. Separaram-se ainda muito jovens e nunca mais se viram, até o dia em que Rui, fugindo aos homens da lei, viera esconder-se, por coincidência, no celeiro de Gentil. Reconhecendo-se, abraçaram-se como irmãos e contaram um ao outro do que haviam feito pelo tempo que os vira separados. Gentil entristeceu ao saber da vida de crimes que o outro levava. Ouviu sobre seus furtos e assaltos, viu que seus olhos brilhavam com a luz da maldade ao descrever detalhes de sua profissão. Nem por isso Rui deixou de admirar as terras do amigo. Gentil havia prosperado, ao cabo de tantos anos de trabalho, e aconselhou o amigo a que deixasse de viver daquela maneira e tentasse também ser feliz. Só ele não sabia que Rui era também feliz, pois vivia de forma a satisfazer seus desejos inomináveis, sua índole aventureira e seu espírito sem rumo. Ainda assim, impressionado pelas palavras do amigo semeador, Rui cuspiu para o lado e concordou em mudar, tencionando com isso descansar um pouco de suas fugas sem fim e de seus dias em cárceres sujos, onde era espancado e seviciado pelos milicianos, que também tinham lá seus desejos inomináveis. Gentil ensinou-lhe o trabalho das semeaduras, o plantio e a colheita, os segredos da terra. Dera-lhe um pequeno lote de campo cultivável e estivera ao seu lado até que aprendesse tudo. Cansado de ser honesto, Rui sentiu que era hora de partir. Viu lágrimas nos olhos do amigo ao anunciar-lhe que não suportava mais aquela rotina enfadonha e sem futuro. Gentil não compreendia que Rui se recusasse a ser feliz como ele, mas só não sabia que o outro era também feliz.

Encurtando:

Rui voltou muitas vezes, arrependido, muitas vezes partiu. Anciões, Gentil apontou com a bengala o lote que o velho salteador concordara finalmente em cultivar até o fim. Acordavam muito cedo, trabalhavam o dia todo e, à noite, recolhiam-se para descansar e começar tudo outra vez no dia seguinte. Numa noite de lua, Gentil pôde ver, pela janela, a silhueta alquebrada do amigo, manquejando pela estradinha torta que era sempre o seu caminho de volta. Lembrou com tristeza a partida de Rui e, nem mesmo à hora da morte, logrou compreender que o amigo, como ele, era também feliz.

Foi meu avô quem me contou essa história dos tempos do Império. O que posso fazer? Já disse – não disse? – que estou doente.

O CAMINHO DAS ÁGUAS

enquanto eu buscava a água especial para minha sede, algo maior, mais difícil, que vivia por trás das coisas. E sentia crescerem os poderosos sentimentos dessa busca que

mas pouco me importava ter nascido no passado ou no futuro, pois estaria sempre no presente. O que, principalmente, realmente importava era vencer a neblina. A neblina. A

e reuniam-se ao redor de um lago muito transparente. Mergulhavam em suas águas e brincavam, ignorando minha chegada. Aproximando-me um pouco mais, tive uma triste surpresa: os felizes não tinham braços. Eram todos mutilados. E quando

“Por que está triste?”

“Porque não posso brincar com vocês.”

O que me impedia de

Sim? Não.

As águas eram claras, mas outras. Eu não era um mutilado, nem o seria jamais. Consciente de minha condição, atingiu-me, com a velocidade do raio, o brilho do entendimento. Compreendia exatamente o que era preciso fazer, o que podia esperar daquelas águas e o que elas esperavam de mim. A luz parecia palpável, como um objeto imenso. A outra margem perdia-se na neblina. Eu estava a um passo de mim mesmo. Diante de minha própria imagem, clara, refletida na superfície. E mesmo enxergando como antes, vi um rosto sem olhos, e era o meu rosto. De certa forma, eu era também um mutilado. As águas me chamavam: a elas eu pertencia verdadeiramente.

De pé, junto à margem, nu

Nu,

Nu, junto à margem

Eu estava nu, de pé, junto à margem. Divisei pela última vez a extensão da água infinita, e então, tendo completado parte de minha busca, precipitei-me definitivamente na claridade cega, submergindo para sempre a intensidade de tudo o que eu fora um dia.

Não? Talvez.

Sei o quanto desejei participar da vida, embora não pudesse contar aos outros meu grande segredo. E

já não me fascinavam como antes, mas ainda alcançavam-me os olhos dispersos com certa intensidade

era uma colina que se abria a um maravilhoso vale em tons de azul e verde, abismo suave, horizonte de montanhas. Deitei-me de bruços, junto à borda, e fiquei ali, balançando os pés no ar, como um menino vagabundo. A paisagem se transformara, mas eu não conseguia firmar-me nela. Não sabia mais se tinha os olhos abertos ou

então passaram a Lua e o Sol, estrelas e pássaros. Rostos de pessoas que eu conhecia de todos os tempos de minha vida, algumas cuja espera já havia terminado. Acho que sorriam. Acho que não. No entanto

Quando acordei, tudo era escuro lá embaixo. Não havia lua nem estrelas. Um afago de mão. Ela estava ao meu lado na relva, sentada sobre as pernas e

sentada sobre os joelhos como

um pouco de lado, as pernas

(imaginando Mônica)

as pernas dobradas, os pés

meio deitada sobre

as pernas

os pés

“Que aconteceu?”

“Um sonho, talvez.”

“As paisagens. Os rostos. Tudo tão real…”

“Acabaram-se as paisagens. Agora é noite, ou quase noite.”

Beijou-me os olhos e a boca. Os cabelos castanhos

ruivos, da cor da franja do milho

a franja queimada do milho

(imaginando Verena)

o vento leve que vinha do vale sobre os seus

os cabelos negros que

Uma brisa sem nome cobria-lhe a testa de fios dispersos conforme

deitados frente ao vale, trocamos

sorrindo pelas paisagens que viriam, o dia que esperava nascer depois da espera, nossa porção enfeitiçada de universo, nossa estrela que não havia chegado ainda.

Não? Não.

Estou só e escrevo. Tenho a impressão de que sempre foi assim. E de que sempre será assim. Não me dirijo a alguém, mas sinto ser ouvido (lido) por uma multidão de amigos. Sei que isso não passa de uma doença que

Que é isso? Um diário? Vamos, homem! Você não está de todo vencido. Multidão de amigos, vejam só.

A seta de Verena – Guia de leitura

 20. Persistência dos labirintos – sequência

18. Sem rumo, entre rascunhos lamentáveis – anterior

Sobre o livro

Imagem: Carl Spitzweg. O poeta pobre. 1839.

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