Office in a Small City por Edward Hopper

Dona Norma e o último Coelho

São apenas histórias. Pouco importa sejam verdadeiras, o que vale é que sejam contadas e que alguém se identifique com elas.
Nem isso, nem é preciso tanto. Como todos os que contam, também corro o risco de me perder.

Houve da parte de Júlio um esforço diplomático para convencer dona Norma a aceitá-los como inquilinos, que o prédio nunca antes tivera um de seus apartamentos locados senão por pessoas idosas e famílias de estranhos e silenciosos costumes. Ela morava na primeira porta do térreo.

“Bom dia, senhora. Vi o seu anúncio e…”

Dona Norma o farejou com uns olhinhos rápidos. À primeira vista, parecia um tanto desalinhado, mas, olhando-se de mais perto, era possível supor que não fosse afinal grosseiro, pois sempre houve pessoas vindas de classes sociais não muito favorecidas que, apesar da precariedade das escolas e das dificuldades de seu meio, por algum misterioso motivo, cultivavam a boa educação e a integridade. De início, ela resmungou uma desculpa para despachá-lo. Somente famílias. Como ele insistisse, ela lhe despejou um pouco mais de suas firmes justificativas, o que Júlio assimilou com estratégica paciência, mantendo-se a proprietária irredutível em sua palavra final.

“Sinto muito.”

Júlio não estava disposto a deixar passar um aluguel daqueles. Encontrava-se outra vez em dificuldades financeiras e já havia esquadrinhado a cidade sem vislumbrar uma única oferta que lhe fosse acessível. Desdobrou-se em argumentos os mais convincentes, que ia inventando com espantosa agilidade. Fez-se confiante, seguro, capaz de persuadir um militar. Ela não se convenceu. Ele prometeu harmonia e disciplina, assegurando-lhe que os vizinhos não encontrariam motivos para reclamações, no que ela não acreditou, nem ele. Assumiu previamente a responsabilidade por quaisquer contratempos que os envolvessem, o que também não parecia significar muito. Finalmente sentiu que estava a um passo de conquistá-la com sua aparência discreta, a educação formal que fingia. Nada disso funcionou. Quando não dispunha de mais ideias e já se resignava sem esperanças, ela avisou: “Pagamento adiantado.”.

Sem conhecer as inclinações de Bruno, ela proibiu a entrada de estranhos, principalmente de estranhas, leia-se farras com mulheres, e advertiu que jamais incomodassem Pablo e Cândido.

“Com certeza, senhora. Com toda certeza, sim.”

Longe de ser uma invencível megera, dona Norma era uma viúva obscura que podia ter sido bela em sua juventude. Júlio soube mais tarde que ela fora uma costureira de subúrbio antes de se tornar, subitamente, zeladora – de seu próprio imóvel. O prédio fora herdado de um velho tio ganancioso que, na ânsia de adquirir cada vez mais propriedades, comprara, um após outro, todos os apartamentos e morrera por insuficiência cardíaca, num quartinho estreito onde, toda noite, ruminava sonhos de riqueza e migalhas de pão.

Você acredita nessa história?

Não havia nenhum testamento, mas Norma era de fato a única parenta viva do sovina. Fora encontrada por um advogado jovem e metódico, que lhe trouxera, à porta de casa, as chaves de um futuro inesperado, nomeando-a legítima proprietária de um imóvel que ela nem sonhava existir.

Uma história e tanto, não? Com menos do que isso, escrevem-se contos, novelas… Mas eu não caio nessas, nem você. Não é? O tempo é precioso.

A fachada conservava a pintura original, um ocre desbotado onde as chuvas consolidaram manchas verticais. Reentrâncias umedecidas de musgo, desgarrando-se das calhas, redesenhavam a mesma atmosfera solitária. No teto dos corredores, globos jaspeados, de forma antiquada, uns sem lâmpada. (No decorrer dos dias, fiquei com a impressão de que todos ali, como em muitos outros lugares, viviam acostumados aos seus cenários-hábitats, e de que eu era o único a assimilar o apelo fascinante dessas imagens todas.) Dona Norma mudara-se para lá, de acordo com seu destino. Ainda uma vida simples, agora com menos dificuldades. Ninguém sabia ao certo o que era feito da renda dos aluguéis. Pablo e Cândido não podiam consumir tanto. De resto

São apenas histórias. Pouco importa sejam verdadeiras, o que vale é que sejam contadas e que alguém se identifique com elas. Nem isso, nem é preciso tanto. Como todos os que contam, também corro o risco de me perder. Há romances inteiros, você sabe, alinhavados com casos, narrativas, conflitos medianos. Sagas de família, falsas biografias, memórias. Muitas vezes nós os confundimos com obras-primas, mesmo sentindo que iremos esquecê-los em breve. Talvez o volume nos impressione. E, aliás, como você sabe, eu detesto romances.

Por sorte, os moradores mal se viam entre si. O senhor João Coelho era o único com quem de fato falavam, além das amenidades obrigatórias dos cumprimentos e acenos rotineiros no acaso de encontros entre portas, escadas e corredores. “Como vão os senhores?”, assim os tratava. Solteirão invulnerável, de seus cinquenta e alguns anos, ele lhes inspirava um traço de admiração, talvez por ser mais velho e, ainda assim, independente. Um tipo de boêmio bem-comportado, que se vestia com discrição, dispensando especial atenção às aparências, tudo isso tendo como fundo o ar seguro de quem se acostumara a todas as situações da vida.

Maneira de dizer, concordo. Ninguém chega a tanto.

Souberam, por ele próprio, que era o último representante de sua família, único descendente com seu sobrenome por parte de pai. Que ainda existiam muitos Coelhos, mas esses todos já não pertenciam a uma mesma linhagem – a sua. “Os Coelhos vivem enchendo de gente este mundo.” Mas esse vizinho era um raro Coelho: avesso à promiscuidade (mas não ao sexo), confessava-se atraído pela extinção. Júlio nunca entendeu satisfatoriamente sua estranha relação com a arte, que a um tempo cultivava e negava, e isso fazia parte de suas dissimuladas inquietações. Encontrou-o certa vez atento à Sinfonia fantástica, de Hector Berlioz. “Todo artista jovem gostaria de ser conduzido ao cadafalso”, Coelho com algum cinismo. “Mas sua sinfonia conseguiu notáveis efeitos de dramaticidade.” Mostrou a Júlio a obra principal de Paul Dukas. “O desenvolvimento do tema é o ponto alto da peça. Os instrumentos vivem! E o conjunto soa às vezes como uma fábrica em atividade. Sim, é bela e terrível, senhor Júlio, a obra de um autêntico feiticeiro.”

Com o tempo, sob o verniz de suas despropositadas ironias ou mesmo confessado em tons jocosos, Júlio conheceu o vasto desprezo com que ele mensurava a vida. “Sinto um alívio enorme quando penso que não deixei filhos aos vãos combates do mundo”, ele todo solene.

Dona Norma ria-se de suas estranhezas.

“Como é que o senhor sabe se já não tem um filho por aí, com uma dessas vagabundas?”

“Eu sei que não.”

Contou à proprietária que há muitos anos submetera-se voluntariamente a uma vasectomia, tornando-se, desde então, o mais estéril dos Coelhos.

Quando voltava de suas noitadas

Está bem, ao diabo com esses personagens. Por que precisaríamos deles para prosseguir? Estamos aqui em busca de algo, espero que me ouça, não tenho outro compromisso. Nomes fictícios? Claro que não. Por que seriam? O fato é que se tornam palavras, espectros imperfeitos, só podem piorar as coisas. E nos aborrecem com essas suas aparições avulsas, essas pontuações inúteis. Essas ameaças de romance.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

6. Era ela, a minha maior inimiga – sequência

4. Quita, a estrela distorcida. Bruno, mal resgatado. – anterior

Imagem: Helen Allingham. A escadaria (detalhe inferior).

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Comentários

Uma resposta para “Dona Norma e o último Coelho”

  1. Avatar de Camila

    Perspicaz

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