Office in a Small City por Edward Hopper

Borboletas com relógio ao fundo

O personagem deve manter o leitor dividido entre o riso e a piedade.
Bons personagens são os que manipulam e confundem.

“Bercedes!”, gritou a velha. “Bercedes!”

A moça chegou em seguida, trazendo-lhe o chá. Desde que fora trabalhar naquela casa, Mercedes passara a renunciar a certas

Técnicas esgotadas. Truquezinhos baratos. Que tédio.

A morte não tem fim. Isso pensava Serafim Vital enquanto errava pelas ruas. Não se lembrava do que vinha acreditando para depois. Mal podia recordar situações recentes. Tinha ido ao banco. Sim, tinha ido ao banco. O caixa lhe dissera alguma coisa desagradável e grosseira, irritado com sua surdez, algo que o havia magoado. Não há mais velhos neste mundo, resmungava, ao esbarrar em jovens apressados. Invejava os jovens aidéticos. Ele, há muito, deixara de ir à farmácia, não tomava remédio algum. Tinha vontade de dizer a todos: “Desculpem. Me desculpem. Que posso fazer? Não consigo morrer. A morte não tem fim.”.

(ainda entre os jovens:) Um dia, fui um desses príncipes.

e decidira deixar-se morrer, desde que o médico lhe dera um ano de vida, quatro anos atrás. Já havia desmaiado de fome, numa praça esvaziada pela noite de inverno, aos pés do busto de Bilac. “Oh imortal!”, pensou dizer, como evocando a morte. Acordou ali mesmo, na manhã seguinte, pássaros e sol, presságio de primavera, gente transitando por toda parte. Levantou-se, encarou o poeta de bronze. “Imortal! Oh imortal!” Bateu a poeira do casaco. “Imortal, não é?” Saiu andando. “Mas morreu.”

Há alguns dias tinha ido

Aonde teria ido Serafim?

tinha ido visitar a filha. Levara um presente para o neto de cinco anos, um joguinho próprio para crianças de oito.

Explicando:

Há tempos não via a filha, que morava em outro estado. Ouvia deles, pelo telefone, que o garoto era precoce e habilidoso, inteligente demais para sua idade, como se diz de todas as crianças, mas com tal ênfase que o pobre Serafim de fato acreditara em tudo. Foi uma visita constrangedora e infeliz, pois o brinquedo inadequado não agradou ao genro, muito menos ao neto.

O personagem deve manter o leitor dividido entre o riso e a piedade. Bons personagens são os que manipulam e confundem.

… e havia sonhado com cães. Eles o estraçalhavam entre os dentes, e tudo ia ficando escuro, escuro. Ah, que doce sensação de fraqueza! A dor e o sangue, a embriaguez da morte… A vertigem…

e cada cão que lhe aparecia reanimava suas esperanças. “É você! Sei que é você! Chegou a hora!” O cão, negro como a noite, passava por ele, ignorando-lhe as súplicas, deixando-o à mercê da vida. A morte não tem fim.

E Serafim prosseguia

Com esse nome? Convenhamos.

O escritor recria o que vive, sente e pensa, embora o essencial não seja escrever. O que de fato importa é viver, sentir, pensar. Depois, é como se deixasse um bilhete à porta fechada do tempo: “Estive aqui.”.

Outra recaída. Que será de mim?

OUT SETAGO

Que é isso? Novela de ficção futurista? Batalhas estelares, saga de heróis, traidores e príncipes, povos e gerações de personagens que ninguém aguenta mais? Nada disso. É só o calendário que vejo a um canto da escrivaninha. Sim, deste ano. Tão distante dos tais futuros.

O HORIZONTE VISTO DA CRUZ

Que título! E todo livro sacrílego vende bem, há muitos cristãos que sabem ler. Na verdade, eu já tinha um trecho pronto em que Jesus escala a montanha e inicia um de seus sermões ante a turba ansiosa. Lentamente, o céu se carrega de nuvens, pondo a desabar uma chuva torrencial que faz dispersar a multidão. Jesus, assessorado por seus apóstolos, busca abrigo em uma espécie de caverna escura, entre as rochas. No dia seguinte, ele (Ele) volta à montanha e retoma o discurso mais ou menos de onde se lembrava havê-lo interrompido. A conjugação de verbos no tempo presente reforça a ideia de participação do leitor numa realidade remota, uma realidade em que… Bem, deixemos Jesus com seus problemas. Arcádio Raposo vai dizer que isso já foi feito, e é verdade. Outro cristo humano é mais do que os cristãos convictos podem suportar. E no Ocidente, pelo que sei, a maioria é cristã.

BORBOLETAS COM RELÓGIO AO FUNDO

A tragédia de duas colegiais que se amavam, mas contraíram a síndrome da… A tragédia de duas jovens amantes que enfrentam os preconceitos do mundo e… Duas mulheres que… Não consegui desenvolver o tema. Também não posso escrever algo sobre borboletas de verdade só para aproveitar o título. Mais tarde, condenei-me por outras covardias desse tipo.

A seta de Verena – Guia de leitura  

23. O capitão na corte dos cadáveres – sequência

21. Passeio (forçado) com Mônica – anterior

Sobre o livro

Imagem: Carolyn Pyfrom. Borboleta-cauda-de-andorinha morta. 2005.

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