Office in a Small City por Edward Hopper

Eu, um mentiroso crônico

Perdi oportunidades. Rompi contratos.
Sempre fui inoportuno e desastrado, porém, estranhamente, essas perdas nunca me incomodaram muito.

Sou o que ninguém quer ser

Tornei-me um mentiroso crônico e devo isso a Verena. Foi ela quem fez esclarecer parte de minha aversão pelos meios literários, acadêmicos e outros de rotina não menos aborrecida. “Você é ou não é um artista?” Eu me acreditava poeta. Ela me ensinou Gauguin. Ajudou-me a vender quase todos os livros, e isso me fez mais livre, primeiro porque eu me via na obrigação de conservar aqueles volumes todos, zelar por todas aquelas resmas encadernadas. Também compreendi que a literatura subentendida no cinema e nas histórias em quadrinhos era muitas vezes superior à dos livros. E não era o caso escrever, antes ter o que dizer, tendo antes tido o que pensar. Verena advertiu-me: jamais seria um verdadeiro escritor se continuasse lendo daquele jeito e, pior que isso, acreditando nas Letras como tábua de salvação para a humanidade. Ou para mim mesmo, afinal. O fato é que ela mudou tudo em minha vida.

Decidi ser um escritor e não mais trabalhar como escravo. Vivo sem dinheiro, é verdade. Mas o que escolhi. Conservei intacta minha inteligência, meu maior, meu, atualmente, único bem. Fracassei financeiramente, profissionalmente e até socialmente, o que menos me importa. Perdi oportunidades. Rompi contratos. Na verdade, nunca atentei aos dias marcados, aos calendários de vencimentos, aos cálculos de vantagens, aos meses propícios, aos planos bienais. Sempre fui inoportuno e desastrado – porém, estranhamente, essas perdas nunca me incomodaram muito. Sou a minha própria vida, a única, e descobri a morte – finalmente entendi isso. Sei que ninguém me inveja. Eu me importo com o que ninguém se importa. Sou o que ninguém quer ser.

Já me disseram que fiquei mais triste. Não, mas não se trata disso. É que, aos poucos, fui erradicando de minha vida o que se parecesse com alegrias momentâneas, fúteis e, assim, dispensáveis. Restou muito pouco. Quem já viu alguém assobiando enquanto trabalha ou cantarolando enquanto joga cartas perceberá prontamente o que digo. Da última vez que fiquei feliz por ter arranjado uma namorada – Verena, eu pensava –, saí assobiando desse jeito. Depois, jurei desviar-me de qualquer situação que me fizesse parecer mais idiota.

A seta de Verena – Guia de leitura

26. A tudo, faltava um algo – sequência

24. Um último projeto em ruínas – anterior

Sobre o livro

Imagem: Carl Spitzweg. O rato de biblioteca. 1850.

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