Office in a Small City por Edward Hopper

Adeus, Júlio Dias

O tempo, em minha crença precária, era vinculado às distâncias e não tinha estas garras a arranhar-me os olhos.
Estas unhas nervosas sobre o meu rosto.

Choveu o dia todo em que eu parti. Como a servir de fronteira entre duas fases de minha vida, a chuva fina insistiu em molhar todas as estradas, sem saber que devagar contribuía com os jogos do destino, embaçando também a estrada de ir. O coração pesava por tudo o que deixava para trás. Eu me sentia confuso, inseguro, também um pouco angustiado. Confuso quanto a mim mesmo. Inseguro por não ter ao certo o que me esperava. Angustiado porque sou mesmo assim. Sei também que não se deve dar importância a detalhes coincidentes, como a chuva de que falo. A chuva é apenas a chuva. Não deve misturar-se à minha angústia.

Capacete sobre a cadeira. Duas mochilas com roupas e objetos pessoais, ligeiramente inclinadas sobre a cama. Havia chegado o dia.

Eis um resumo do que me parecia ser tudo: não se pode ficar. É preciso partir. Deixar minha cidade, amarrar-me às mochilas e despedir-me, tudo foi estranho. O que acontecia? Como definir os sentimentos de quem parte? Há um mundo novo à frente, um desejo de abrir-se à conquista, uma vaga noção de abandono. Felicidade, tristeza? Não se pode escolher de uma forma tão simples. Eu estava ansioso e triste, contente e insatisfeito. Estava partindo. Atrás de mim, as coisas pareciam não existir como antes.

O quarto estaria vazio. Nesse dia, pareceu-lhe maior do que como sempre o sentira. A cama junto à parede, a pequena estante com livros inclinados, tudo em silêncio. O silêncio secreto das coisas.

Meu passado impalpável. O que eu havia sido até então esvanecia-se, apesar das lembranças. Um livro velho do qual eu conhecia todas as figuras, a cidade que me vira nascer era apenas um cenário, eu bem sabia, um lugar que poderia ter sido outro qualquer. Mas era aquela, precisamente aquela, a cidade que me pertencia. E à qual eu deixava de pertencer, talvez. Dela, os meus primeiros passos. Nela, o menino começou a perceber, com seus olhos calados, um pouco do mundo. O suporte de minha existência, minha primeira morada. O alicerce de meus sonhos… Que mais? Talvez tudo tenha sido apenas eu.

Jaqueta abotoada até o pescoço. Júlio levantou os olhos à vidraça de seu quarto, ao chuvisqueiro lá fora.

Minha mãe fitou-me com olhos miúdos após ter-me abraçado longamente. Desci os dois degraus da varanda e, sob a silenciosa chuva que me viu partir, eu lhe acenei pela última vez. Ela disse apenas: “Vai com Deus.”. E eu fui sozinho.

Eu não fazia ideia de como minha vida poderia ser outra. Claro, isso viria depois. Experimentava ainda o entusiasmo natural que envolve os sonhos de futuro, quando se supõe que o futuro seja algo diferente do que aquilo que se vive hoje. Quando o tempo, em minha crença precária, era vinculado às distâncias e não tinha estas garras a arranhar-me os olhos. Estas unhas nervosas sobre o meu rosto.

A cidade já se deixava tragar pelas dimensões da memória. O colégio onde estudara, as calçadas de pedra e a torre na qual era proibido subir. A vizinha que depenava frangos. O cinema com gosto de menta e ar condicionado. Um coleguinha morrera afogado no rio.

Às vésperas da partida, o pequeno bosque onde tanto de sua infância absorvera luz e fascínio. Homem humilde, temperamento calmo, o avô o conduzia por entre as árvores. Uma pedra ou um tronco caído: eles se sentavam ali, o avô respondendo às perguntas da infância. Júlio junto à pedra ancestral. Inalava o ar úmido das folhagens como respirando o que também o cercava, o bosque que nada retinha de seu passado tão verdadeiro, quando se embrenhava por aquelas sendas com a única intenção de presenciar a manhã entre as árvores. O pequeno Júlio passava por ele, olhos silenciosos perscrutando as coisas, vez ou outra abaixando-se, julgando ter encontrado algo no chão. Fixava-se no desenho rugoso dos troncos, no tapete de folhas, nos insetos das raízes – neles, encontrava indícios de que a vida era maravilhosa, ainda que indecifrável. Ou talvez por isso mesmo.

“Uma criatura tão frágil”, o avô com sua voz característica, observando um escaravelho, “por menor que seja, pode guardar um grande segredo.”

A luz tênue penetrava as copas. Desfazia-se em focos suaves, dando diversos tons aos arbustos, ao musgo dos troncos, às criptógamas. Júlio os copiava obstinadamente, aos focos e aos seus efeitos, com precários lápis de cor, sonhando gravá-los para sempre no papel, talvez um primeiro passo no sentido de interpretá-los um dia. Também para que não se perdessem e para que o impedissem de esquecer o arrebatamento, o frescor e a intensa realidade daquelas manhãs. A escola de pintura, os meninos que o ensinaram a fumar, outros desenhistas, pequenos intelectuais, o chafariz de carranca ao redor do qual se reuniam antes das aulas, o recanto entre as árvores, o artista que poderia ter sido… Era notável que sempre houvesse perdido tantas oportunidades. Pudesse, e diria a si mesmo, se naquele tempo o alcançassem as palavras: são inquietudes e alegrias tão íntimas que te constrangem e te calam. Tão caras que te pedem o preço do silêncio. Por isso conterás tua voz, evitando assim a propagação do que ainda não conheces inteiramente. Mas não queiras compreender tudo a um tempo. Não aceites a primeira resposta. Não digas a ninguém que este bosque é teu.

O menino se ia sem que eu percebesse, passava por mim. Adeus, Júlio. Pequeno Júlio. Você também era eu.

Distância do avô morto. As folhas no chão. Tudo retorna à terra, não há muito que dizer. Mas ali estava ele, o velho humilde e arcado, acenando-lhe devagar. Pensou que o chamasse pelo nome. Entre as árvores vivas. Adivinhava que, por trás da cortina de orvalho, ele sorrisse mansamente, a silhueta de névoa contra a luz diáfana, a ilusão dos focos. Intuía que também ele, à maneira dos escaravelhos, guardasse seu grande segredo. Podia jurar que sorria, a distância. A que distância? Os limites da lembrança, as asas do sonho. Focos dispersos. Lágrimas puras de menino perdido. Em silêncio, o fantasma sorria.

Sentado na cama, de um impulso brusco que mal pude dominar: às vezes me sinto muito sozinho e perco o controle sobre minha naturalidade. Espantava-me a sensação de absoluta ausência a que tudo se havia reduzido. Só o que via na penumbra – paredes do quarto, objetos, pôsteres e pequenos quadros – alcançava-me os sentidos plenamente, embora não significasse senão o que era, senão o que eu via: paredes do quarto, objetos, pôsteres e pequenos quadros. O que eram, como eram. Ao mesmo tempo, consumia-me o pulsar das metamorfoses iminentes, suspensas na trama antecipada de travessias possíveis, pois nada do que é e do que se vive resiste à mudança.

Último olhar à igreja matriz. Resquício monstruoso de outro tempo, quando ele, menino, era tão puro e por inteiro desfolhava-se ante o mármore sem vida dos altares. Relíquias, ornamentos, torres centenárias. Grande, a catedral, como era imensa. Grande, porque a construíram grande. Por isso agora ele passava por ela sem persignar-se. Acreditava em um jardim do céu, não na morte comum, com diagnóstico, e havia caído do alto de sua esperança. Um abismo tão fundo, a vertigem tão intensa, e ninguém estava lá para ver. Seu corpo arrebentou-se drasticamente – mas não se ouviu, ninguém ouviu, nenhum ruído. Ali perto da pesada escadaria, a velha torneira, mal amarrada num reparo improvisado, gotejava lenta e silenciosamente, formando uma pequena poça de lama no gramado baixo. Desde quando estaria assim? O despertar inconcebível da consciência. Não é preciso procurar por ela. A inteligência também acontece. Os processos se sucedem. Quando alguém vê, no espaço de um relâmpago, a si mesmo, é porque tudo já passou. Alguma coisa parecia querer cristalizar-se em sua memória, como quando se procura uma palavra conhecida e repentinamente esquecida. Estremeceu como se algo assim prodigioso se desse. De toda parte, as imagens convergiam e o conduziam ao seu centro secreto, as nuvens outra vez lançavam seus silêncios, a água pingava à sombra da torre, o que seria inverter as coisas: seu centro é que buscava realizar-se e se utilizava do que mais lhe acorresse ao redor.

Que noite era essa, de tempestades incipientes? Que mudança era essa? Febre. Calafrios. Mas talvez não estivesse doente. Corria em meu sangue, como em um laboratório infernal, a linfa de um novo organismo, um novo homem ante sua realidade seguinte, sem distinção mas entre estranhos pressentimentos, avesso da crisálida.

Meu vazio, não mais que o prenúncio de tudo o que haveria de atrair-me apaixonadamente sem nunca me completar. Parto ainda hoje.

[…]

Pela manhã, a testa suada. Resquícios de insônia e de torpores. Fechei a mão com a força de todos os músculos. Estava pronto.

Sempre pensei que estivesse pronto, que tolo eu era. A capital significava, para mim, o desafio de enfrentar o inferno. Tinha em conta minha inexperiência, minha saúde frágil, minha inabilidade diante de inúmeras situações, meu salário precário, e, justamente por isso, a cidade representava, para mim, uma das piores coisas do mundo. Parece engraçado para os que nasceram aqui. Ou para outros que para cá se mudaram, como eu. Mas não eram eu. Você também provou de um veneno infalível, mesmo assim está aqui. Júlio Dias, já lhe disse: meu verdadeiro nome. Sem grandes aventuras, experiências traumáticas ou tramas de duvidosa complexidade. Um homem apenas vivendo. Um homem perfeitamente normal.

 Os últimos dias de agosto

12. Bruno, o fantasma, e a medusa e… – sequência

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Guia de leitura

Paul Cézanne. Casas numa estrada periférica. 1881.

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