Office in a Small City por Edward Hopper

O meio-dia cinzento

Sentia-se outro, a partir do nada.
Fazia daquela chuva uma referência gratuita para ser agora e à frente, para tornar a viver, prosseguir sem qualquer passado.

O meio-dia cinzento do intervalo de almoço trouxe a chuva de surpresa que os forçou, a Júlio e aos outros, aos cidadãos desse dia, ao refúgio sob toldos e marquises. De onde estava, podia ver a rua subitamente molhada e a pressa dos que corriam e se deslocavam em busca de algum abrigo. Um sussurro distante, a princípio – como se as águas não viessem do alto, mas estivessem passando por ali. Agora, um rumor crescente. Cortinas líquidas, tênues mas gradualmente densas, isolavam as fachadas do lado oposto, quando o vento as dispersava ou punha em movimento, com ligeiros golpes, nuvens de gotículas quase abstratas. Por intenso que se dava o ruído das águas, além das calhas e condutores, agora despertos e falantes, mal se podiam ouvir vozes humanas além das mais próximas, dois homens comentando o imprevisto, uma garota lamentando pés encharcados, alguns se divertindo, outros praguejando. Júlio estreitava os olhos contra a chuva, como contra o sol. A água de que somos feitos, em grande parte, alguma lama ancestral… Não, não iria pensar assim, prometera a si mesmo fugir das associações baratas. Muito depressa, as ruas vazias de gente. Como se a chuva os houvesse dissolvido a todos. De certa forma. Mas não é a chuva o que dissolve as pessoas. E sim o que ocorre por toda parte. Reações químicas, por exemplo. O tempo todo. Só isso basta para que se compreenda, para que se constate uma realidade, para que se identifique um dos vários limites que nos condicionam. A chuva é apenas uma aliada, um demarcador dos dias. Uma mensagem antiga. Uma lembrança, um lembrete. De que tudo se desfaz e declina ao passado: ruas, a própria chuva, pessoas que se deslocam, lentas ou ansiosas. Formigamento de situações avulsas, a vida toda assim, desde sempre perdida. Poucas passagens podem ser consideradas importantes – mesmo isso e essa palavra não configuram um exagero? Em poucos minutos, tão depressa como se dava a chuva inesperada de verão, uma pessoa podia evocar os acontecimentos principais de sua vida, talvez se dando conta de que tudo o mais era lixo, entulho cotidiano, cascas de tempo imprestável e corroído por tantos momentos gratuitos, inevitáveis, obrigatórios. Palavras, voz rascante das intempéries, aliadas das chuvas. Ironicamente, Júlio registrou em seu diário esse meio-dia específico, a chuva que passara a fazer parte do que ainda havia a dizer sobre sua maneira de observar e absorver o mundo, a dissolução das gentes, o que normalmente precedia as velhas nuvens sobre seu rosto, suas estranhas perguntas, e de tais pequenas transformações ainda se alimentava. O mais, o que não fosse isso, era sempre e apenas o lixo involuntário de sua vida.

Caiu-lhe uma impressão surpreendente de que a sua existência, de que ele próprio havia encontrado seu fim em algum intervalo do passado, entre um fator de mudança e um evento, entre uma recordação e outra, algo nos jornais, nos dias de seu país ou em seus dias de gente. Só não podia identificar o ponto em que isso teria ocorrido. Sentia-se outro, a partir do nada. Fazia daquela chuva uma referência gratuita para ser agora e à frente, para tornar a viver, prosseguir sem qualquer passado. Não estava feliz, nem era disso que cuidava. Mas podia, naquele momento, sair dali, do abrigo improvisado, caminhar tranquilamente sob as águas como se nada, absolutamente nada pudesse lhe fazer mal.

O mais era a chuva passar. Voltar ao trabalho. Aceitar-se como o mais perigoso inimigo. Então não podia ser uma pessoa apenas, um homem como os outros, e continuar vivendo? Talvez fosse tarde demais, e ele já estivesse muito envolvido com o que o afligia e com o que o atrelava à vida. A banca de revistas e os periódicos em certa disposição recordavam-lhe subitamente o dia nublado quando pedira ao pai que o fotografasse, outra vez exumando fósseis, outra nuvem e sua sombra, outra ordem de silêncios. Apesar de sua inspiração acidental quanto a zerar o passado sob as chuvas, tornara-se o mais amargo dos homens, sentia isso. E já não podia enganar-se com o sonho mais simples.

O mais amargo dos homens, vamos, há o que seja pior, não sejamos tão românticos. Outros também corriam da chuva, não o adolescente com cadernos, voltando do colégio ao fim da tarde, que vinha todo molhado e entendia, por simples dedução, que seria inútil alterar-se, apressar-se ou tentar correr. É assim que me sinto hoje: encharcado, irremediavelmente. Não adianta correr, como os outros, aos abrigos mais próximos, mais oportunos, não há o que ainda esteja a salvo ou mereça ser protegido, o fio de cabelo que não tenha sido tocado pela tempestade. Mas não pense, por isso, que vou acabar como um daqueles alcoólatras do cinema, que, ao chegar em casa, deitam ao chão as estantes de livros e quebram tudo o que encontram sobre a penteadeira. Meus sintomas de dissolução são silenciosos e só em mim produzem ruínas. De resto, era apenas um dia.

Os últimos dias de agosto

16. Suínos, símios, restaurante – sequência

14. A grande notícia trágica – anterior

Guia de leitura

Imagem: Michael Alford. Guarda-chuvas 2.

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Comentários

Uma resposta para “O meio-dia cinzento”

  1. Avatar de Elisângela Alves Gusmão
    Elisângela Alves Gusmão

    Uauuuu, que imagem bela você traduziu “as dissoluções humanas”. Amo a chuva e sua prosa é simplesmente poética.

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