Office in a Small City por Edward Hopper

Episódios de minha desastrosa inclusão social

Mas sempre alguém me chamava de volta ao assunto na mesa que nos servia.
Perguntavam o que pensava eu de certas notícias, eu ia mentindo como podia, claro, para contentá-los a todos.

Já disse que o teto era baixo e opressivo. O sanitário masculino não dispunha de vitrô ou de qualquer saída de ar, por isso retinha uns odores densos e acre-doces, cheiro de peidos e fezes recentes, tudo isso associado ao sabor de sabonetes ordinários, e todos nós tínhamos de suportar o ar viciado, recendente, por culpa de alguns mais prolíficos, especialmente o Heitor Expedito, que era, para dizer o mínimo, uma fantástica usina de gases. Nesse ambiente não de todo animador, fui aos poucos me envolvendo com os colegas. Não era fácil, porque eles raramente abordavam algum assunto do qual eu pudesse ou me interessasse participar.

“Eu gosto de dar descarga muitas vezes.”

“Eu não. Dou uma, mas certeira.”

“Lá em casa, todo mundo dá descarga pelo menos duas vezes.”

“Duas, acho pouco.”

“Acho o suficiente.”

“Eu não.”

Comentavam telenovelas também, infelizmente, mas foi minha primeira oportunidade de intromissão. Um escravo ali falava sobre sua filha adolescente, diferença de gerações e outras frases compradas, citando uma personagem televisiva que consultava a mãe antes de fazer qualquer coisa. A mãe era uma figura de classe média alta, amável e sábia. E vinha influenciando os jovens que, segundo ele, agora andavam mais ponderados e maleáveis.

“Como?!”, eu surpreso. “Quer dizer que eles fazem o que veem na televisão?!”

Sei que não fui feliz, e bastava olhar a cara dele. Mas isso me escapou mais por susto que por intenção. Ora, o que eu podia fazer? Eu não encontrava brechas – não assistia a nenhuma telenovela, por exemplo. E, naquele tempo, queria ser amigo de todo mundo.

“Tudo bem?”

“Bem.”

“Tudo ótimo?”

“Ótimo. Se melhorar, estraga.”

“Nem tanto. O dinheiro anda curto.”

“O importante mesmo é ter saúde.”

“É. Como os patrões.”

“Deus escreve certo por linhas tortas, meu amigo.”

“E põe torta nisso.”

“Pss! O doutor Aguiar pode ouvir.”

“Ele hoje vai sair mais cedo. Participar de uma homenagem ao governador.”

“Homenagem… ao governador?! Você está falando sério?”

Estranharam-me. Ainda não foi dessa vez.

“Semana que vem: feriado, hein? Dia de Nossa Senhora Aparecida.”

“Você vê? Até as religiões têm um lado bom.”

Avaliaram-me de alto a baixo. E eu logo entendi que não deveria me meter nesse tipo de conversa. Por isso, calei o bico quando um deles disse que a Igreja havia evoluído e era hoje muito mais aberta, que Deus não era um velhinho de barba branca nem o criador da vida microscópica, como todo mundo pensava nos tempos antigos, mas um espírito superior e onipresente. Claro, claro, meu amigo, também enquanto essa definição não sair de moda e não cair por terra, mas isso já é por minha conta, pois acho que ele nunca considerou alguma ideia por esse ângulo – esse tipo é um daqueles que se orgulham de estar sempre atualizados, vivendo em sintonia com seu próprio tempo, registre-se.

“Nós aqui com essa papelada toda, um dia a gente se acaba com um enfarte, e daí?”

“Daí o quê?”

“Pedreiro sim. Trabalha fazendo ginástica.”

“Carteiro é que sabe viver.”

“E lixeiro? Toma sol, circula pela cidade… Ganham pouco menos que nós e não têm que ficar enfiados por trás dessas mesas, dessas máquinas…”

“Bestas somos nós.”

“Quer trocar de lugar com ele?”, eu e minha língua incontrolável.

“O quê?”

“Quer trocar de lugar?”

“Com ele?”

“Com ele, é.”

“Não, eu…”

“Não?”

“Não, claro que não.”

Minhas perguntas sempre surpreendiam a todos. Nunca entendi por quê.

Na cozinha encardida, durante os intervalos de café, ficavam todos tagarelando, debatendo assuntos e casos sobre os quais, mesmo não os ouvindo claramente, eu podia jurar que não eram importantes. Também não me intrometi quando um deles mencionou um ex-escravo, demitido por justa causa, que vinha lesando o escritório à custa de fraudar recibos do correio.

“Pilantra tem que se foder mesmo!”

Os outros concordavam. Fácil. Não, mas eles não conseguiam ver que a questão não era toda essa. À parte o valor irrisório desses tais recibos, o fato é que somente os poderosos podem praticar a desonestidade sem perder seus cargos ou o respeito. Fiquei calado muitas vezes.

Mais tarde, levaram-me ao bar onde alguns colegas mais próximos se reuniam, e eu ali procurei ser espontâneo, natural e desprendido. Foi pior. Já tinham pedido a cerveja, e ninguém dizia nada. Um silêncio embaraçoso, e os tais ali disfarçavam, acendendo cigarros, olhando ao redor, quando resolvi, firme, puxar conversa. Ai de mim: outros dois falaram ao mesmo tempo, nós três, que abríramos o bico, interrompendo-nos súbita e reciprocamente. Ficamos cedendo a vez um ao outro, até que o menos tímido resolveu falar – e o infeliz começou pelo último assunto que interessava a alguém ali, via-se por todas as caras. Outros o interromperam também, e logo se fez um clima de descontração desorganizada. Que alívio.

Na confusão, era inevitável que eu ouvisse, mesmo de maneira entrecortada, o que conversavam uns outros na mesa ao lado. Não me esqueço de palavras como: “Neste país só não enriquece quem não quer, meu amigo.”. Outro, em dado momento: “É o mal desse nosso povo, essa gente não quer saber de trabalhar.”. E veja-se, ouça-se!

“Pra que investir dinheiro num empreendimento desses? O negócio é usar grana do governo. Você não conhece ninguém nessas fundações de cunho social?”

“Até que sim, mas não sei se ainda dá pra faturar uma boquinha dessas. Acho meio difícil, já tem muita gente metida nisso, você sabe, e eu acho que…”

“Lógico que dá! Lógico! Isso aí às vezes diminui um pouco, mas sempre volta. A coisa funciona, sim.”

“Olha, não se esqueça de que nós estamos nos anos oitenta, hein? Hoje a imprensa anda feito inseto escarafunchando tudo.”

“Sei, sei… Não é a mesma coisa, eu sei. Mas aposto como também não é tão difícil. A imprensa fala, fala. Mas, depois, tudo passa. A gente precisa é arriscar um pouco.”

“Tudo bem, mas se alguma coisa der errado, já sabe, vou dar é o seu nome, hein?”

“Pode dar, seu babaca. Qualquer estagiário de Direito consegue livrar a sua cara de um contratempo desses. Mas que coisa, rapaz, você ri, mas parece que está fora do mundo, nem parece que mora aqui, neste país.”

Eu escutava isto mais aquilo, não tanto com surpresa, mas ainda confuso. Admirava a confiança que tinham um no outro, a ponto de se revelarem assim, sem que eu compreendesse o que pretendiam de fato esses rapazes, esses homens, que esquemas e truques eram esses, aparentemente tão claros, embora nunca eu os houvesse conhecido, aos colegas, não aos truques. Principalmente, eu não compreendia por que todos queriam tanto, e obstinadamente, enriquecer.

No meio daquilo tudo, para quebrar um pouco a seriedade dos projetos comuns, Agenor, aquele das caretas, ele próprio, a quem chamavam Agenor, o Agendado, qual um monarca histórico, mas não que fosse o rei das piadinhas infames, apenas por culpa da proximidade dos sons, a sugestiva e tediosa aliteração que combinavam essas palavras, a que lhe dava nome e aquela a que esse homem qualificava, ele, o Agenor, retomando o fio, portanto, contou nesse mesmo encontro que tinha um amigo cleptomaníaco, ao que eu reagi com educada curiosidade, logo me tornando alvo da risadeira geral, pois tratava-se de um pega para permitir-lhe responder, em seguida, que o tal amigo, cleptomaníaco, havia colecionado todos os discos do Eric Clapton. Pois é. Ouvimos também que um colega, da primeira vez que foi fazer sua declaração de renda, listou sua piscina como patrimônio líquido. “Que falta faz um contador, não é?” Então ele repetiu a velha conversa de que havia se machucado com uma chave inglesa, daí porque tivera de tomar, não uma vacina antitetânica, mas uma vacina antibritânica. Tudo explicado, e bem explicadinho, para evitar dúvidas.

Mas sempre alguém me chamava de volta ao assunto na mesa que nos servia. Perguntavam, de alguma maneira, o que pensava eu de certas notícias mais faladas, e eu ia mentindo como podia, claro, para contentá-los a todos. O mesmo Agenor, após ter-nos contado que, quando pequeno, sua mãe, ao perceber que ele estava se tornando viciado em coca-cola, tivera de levá-lo a tratar-se com um pepsicólogo, brincou comigo dizendo que eu já estava ficando íntimo da turma. Ele tinha piadinhas para cada dez minutos de bar.

Vida dura, companheiro. Eu ganhando tapinhas no ombro, rindo das besteirinhas e fingindo como o diabo. Logo vão querer levar-me ao clube, pensei. Ai de mim.

33. Camelos, dromedários e o melhor de um mundo pior – sequência

31. Se é que eu suportava alguém… – anterior

Guia de leitura | Sobre o livro

Imagem: Helen Frankenthaler. Sem título. 1951.

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