Office in a Small City por Edward Hopper

Agenda de não-planos

Talvez estivessem todos procurando voltar.Talvez não avançassem, como fazia supor a realidade. Talvez não viajassem ao futuro nem as agulhas apontassem o norte.

Júlio questionava, embora não o agradasse, o que fazia ao lado de um tipo displicente como Bruno, dividindo com ele um determinado endereço. Fora isso, sacrificando cada dia pela continuidade de sua vida orgânica, enquanto no fundo procurava evitar os estranhos objetivos cultivados pela maioria, qualquer objetivo que antes também parecia ser seu. Antes… do quê?

Embora considerasse sua sexualidade normal (normal, que palavra!), nem mesmo esperava que alguma mulher o acompanhasse por mais tempo, pois sentia que, mais cedo ou mais tarde, teria de render-se a ela, contar-lhe que o mundo era outro como o via, que sua estranha escassez de ambições não se alinhava no plano das renúncias, mas integrava uma personalidade habituada a grandes abismos, revelados entre um e outro pensamento, algo que desde sempre dificultara o seu aprendizado e ainda hoje o desafiava surdamente, pondo à prova a sua própria decifração, ainda que lenta. Olhava os próprios pés percorrendo o calçamento. O mundo era sólido, alicerçado. Cidade de muitos recursos. Um colega de quarto, umas vezes engraçado, outras apenas mais um sujeito vivendo. Um endereço, uns vizinhos sem interesse. Emprego fixo, colegas de escritório presos aos tais objetivos dos quais conseguiram convencê-los de alguma forma. Nenhum plano para si próprio. Nada para os próximos meses, para o futuro imediato, o ano seguinte ou este mesmo, que ainda se arrasta. Agenda de não-planos, repensava: não pretendia casar-se ou formar família, não esperava aperfeiçoar-se profissionalmente, não o tentava a ascensão social, e seu aspecto físico não lhe permitia cultivar vaidades dessa ordem, não mais que o tolerável, entenda-se. Mas suspeitava que seu passado, sim, o houvesse conduzido àquela noite e aos dias que atravessava como uma sombra, disfarçada aos olhos alheios. Algo de estranho turvava sua memória, quase podia afirmar isso. Como seria voltar para saber? Lamentava às vezes que sua capacidade pessoal houvesse sempre sido desviada por essas nuvens mal encobrindo seu rosto e seu entendimento, mas acreditava, ao mesmo tempo, haver atingido casualmente um grau de lucidez (do que considerava lucidez, sua maneira de ver alguma coisa onde outros não viam) que o poupava, ao menos, de ser facilmente convencido pelas promessas e mesmo pelas concretas recompensas por toda parte ofertadas aos homens. Após ter desmontado peça por peça o quebra-cabeça dos conceitos e supostos objetivos, ficara sozinho ante um mundo desgastado e repetitivo, entre limites de espaço e tempo, que eram o famoso universo, que eram também seus limites como indivíduo e o punham circulando como todos, outro obscuro espécime voltando para casa.

Bruno caminhava paralelamente. Terminaram os cigarros quase ao mesmo tempo. Talvez não avançassem, como fazia supor a realidade. Talvez não viajassem ao futuro nem as agulhas apontassem o norte. Talvez estivessem todos procurando voltar.

Júlio fecha os olhos, à noite, à margem do sonho, e tanto retornam como já desaparecem a garota na faixa de pedestres, o quase-acidente, o homem muito velho na mesa do café. Talvez amanhã, talvez um mês à frente, talvez vinte ou trinta anos depois, essas imagens retornem com a mesma nitidez e em sua mesma sequência. E tudo, desde esta primeira noite, já teria se dissipado, inevitavelmente.

 Os últimos dias de agosto

19. Coelho, uísque e gelo, sonatas de piano – sequência

17. O número zero e as dez mil coisas – anterior

Guia de leitura

Imagem: Walter Ellison. Estação de trem. 1935.

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