Office in a Small City por Edward Hopper

Coelho, uísque e gelo, sonatas de piano

A música parecia esgotada. Bach e Mozart foram deuses. Crianças-prodígios, nasceram gênios.
Beethoven foi muito maior. Ele era um homem. E tornou-se um deus.

Pablo e Cândido os espreitavam, tão logo percebiam o ruído das chaves, o rápido rangido na porta de entrada. Mesmo habituados aos novos moradores, ainda lhes dispensavam uma discreta curiosidade, enquanto os observavam subindo as escadas. Bruno costumava irromper num gesto brusco que os fizesse recuar ou dispersar, acrescido de um buh! – muito breve e seco, naturalmente se Dona Norma não estivesse por perto.

“Boa noite, senhores”, Coelho os surpreendeu, vindo em sentido contrário, quase ao mesmo tempo em que, do topo da escada, esticava os olhos ao térreo.

“Que foi?”, Bruno desconfiado.

Coelho, suspirando: “Nada.”.

Parecia ainda atento, procurando confirmar a ausência da proprietária.

“O senhor estava esperando alguém?”, Bruno outra vez, com admirável espontaneidade.

“Bruno, isso não é de nossa…”

“Está certo, senhor Júlio”, o vizinho deixando escapar seu sorriso de boca pequena. “Eu poderia mentir, mas não é preciso. Acho que ela não vem mais.”

“O senhor desculpe, nós só…” Júlio fingindo algum constrangimento, agora ao lado dele no topo da escada.

“Acho que ela não vem mais”, Coelho como querendo contar-lhes, mesmo não sendo questionado. “Vou acabar sozinho outra vez. Bobagem. No fim, o que fazemos com as mulheres é sempre a mesma coisa.”

Bruno, rindo com cumplicidade: “Mas eu sei que o senhor, de vez em quando… Hein?”, apontando-lhe o indicador com um movimento de sobe e desce, simulando um pêndulo voltado para cima. Júlio cobriu os olhos com a mão direita. Em seguida, disfarçou, fingindo que massageava o rosto.

“Não, não, senhor Bruno. Não vá ficar imaginando coisas. Só uma ou outra amiga bem casada que vem aliviar-me um pouco a solidão e o tédio. Mas nada, nada sério. Claro que a proprietária de plantão nem desconfia, os senhores compreendem.”

“Claro”, Bruno reprimindo um arroto. “Isto aqui, um pombal de família…”

Coelho em voz baixa, maliciosamente: “Mas as famílias não sabem disso.”.

Riram ao mesmo tempo, calando-se em seguida, contra o silêncio que ecoava pelos apartamentos mais próximos.

“Não estamos seguros aqui”, ainda Coelho. “E é muito cedo para que homens de boa vontade se deitem para dormir. Os senhores, venham tomar um drinque comigo.”

Não por mais de um segundo, entreolharam-se, aos rapazes a mesma impressão de que não havia nada a perder e de que aquilo até poderia servir, quem sabe, a salvar a noite estúpida de mais um dia útil.

Ia dizer que dessa vez o víamos sem sua boina cinzenta, mas por que um personagem assim estereotipado (do tempo em que os personagens que deveriam parecer pitorescos tinham de usar coisas como boinas cinzentas ou panamás, ou monóculos, ou tinham de fumar cachimbos) seria menos realista do que seus pares eternizados nos clássicos? Nem se trata disso. Coelho era um de nós.

Sonatas de piano os esperavam sem que soubessem, antes preparando ambiente a outros encontros.

“O senhor tem muitos livros”, Bruno.

“É”, Coelho com um gesto. “Muitos têm.”

Voltando com o gelo, encontrou Júlio de pé junto à estante de discos, atento ao que ouvia.

“Sei o que está pensando, senhor Júlio. Não sabe se isso é um piano de Beethoven ou de Mozart. Na verdade, custou ao alemão libertar-se do austríaco. Mas, como o senhor sabe…”, gelo nos copos, “valeu a pena.”

Júlio voltou-se em sua direção, interessado, porém indiferente à sua retórica burlesca.

“O senhor acha que foi mais difícil para ele? Quero dizer, que já tinha em mãos as obras de seus antecessores?”

“Justamente por isso, senhor Júlio. Justamente por isso! A música parecia esgotada. Bach e Mozart foram deuses. Crianças-prodígios. Nasceram gênios. Beethoven foi muito maior. Ele era um homem. E tornou-se um deus.”

Júlio imaginou que Coelho (de quem não sabia ainda o primeiro nome) compusesse em segredo, talvez. Escrevesse. Ou pintasse. Ou…

“O que o senhor está ouvindo é uma amostra dos grandes repentes de audácia com que o jovem Wolfgang desafiou a música e a morte. Os príncipes que o desdenhavam não tinham verdadeiro poder. Ele sim. Mas era o seu segredo em vida. A transcendência era sua limitação.”

Falava por expressões faciais enfáticas mas sem exageros, próprias de um ator amadurecido. Um ator aposentado. Quem sabe? Os atores se aposentam? Por que nunca lhe ocorrera isso? Olhou ao redor, quase contou os cinzeiros, um cacoete mental como o de seguir com os olhos as linhas das portas e janelas, desenhando-as no invisível. Móveis, velho tapete. Retângulo em perspectiva, volume: livro sobre a poltrona.

“Ah, isso?”, Coelho atirou o livro a um canto da sala. “Outra historinha urbana com marginais armados, não sei como pude cair nessa. Na verdade, não pretendo terminá-lo, embora já tenha ultrapassado a página cinco. O senhor sabe, crimes discretos ou sanguinolentos, os autores urbanos pensam que podem nos impressionar, que fazer? Claro, há também os regionalistas com tocaias, vinganças pela honra e pistoleiros de aluguel. Ora, não há violência maior do que Dostoiévski, creia-me. Especialmente quando nada acontece.”

“O senhor deve gostar de literatura”, Bruno outra vez estupidamente, ele que mal saberia dizer Dostoiévski até o fim.

“Ao contrário, senhor Bruno. Quase tudo me aborrece. Não encontro um pensamento novo, uma ideia sequer que me desperte a curiosidade. Sabe, sou meio azarado com livros. E os livros que reafirmam o que já pensamos são inúteis, claro. Segure seu copo.”

“Não é possível que não tenha encontrado um pensamento ao menos curioso em todo esse acervo”, Júlio com incipiente desconfiança.

“Algumas pistas, sim. Mais gelo? Literatura é coisa de neuróticos, veja. Escrever um romance, por exemplo, por que fazer isso? Mesmo que eu viva cento e cinquenta anos e cinco meses, não compreenderei isso. Um homem deve ter sofrido muito para tentar autoafirmar-se ou consolar-se com uma coisa dessas. Ou ser suficientemente ingênuo, elegendo-se idealista, quem sabe.”

Júlio passou um dedo pelo lábio inferior, parecia sério ainda. E curioso.

“Mesmo assim… O senhor lê. E se interessa. Despreza os artistas, e guarda suas coleções.”

Bruno mexia o gelo com um dedo. Era claro que aquela conversa já o aborrecia progressivamente. Coelho sentou-se na poltrona, frente a eles.

“Bem observado. Mas não é difícil observar isso. As coisas não são como eu esperava, que posso fazer?”

“Não entendi.”

“Comecei pelos grandes livros. Os clássicos, depois os menos clássicos. Os muito representativos, os que marcaram só uma geração. Supunha que eram de fato muito bons. Com o tempo, vi que não eram tão bons. Cheguei a pensar que eram apenas bons. Então…”

“Então…”, Júlio não podendo evitar.

“Então entendi que nem mesmo eram bons.”

“O quê?”, Júlio o fixou com indisfarçável estranhamento. “O senhor está falando sério? Quero dizer… Pode me dar um exemplo, ao menos, de um…”

“O senhor tem aqui uma adega subterrânea?”, Bruno cortando o curso da história, certamente porque em nada lhe interessavam os clássicos ou os menos clássicos, talvez por não estar ouvindo mesmo ou apenas para poder participar da conversa. Não daquela conversa.

“Adega? Subterrânea? Ahahah… Quem me dera, senhor Bruno. Nem precisaria ser subterrânea. Provavelmente o alçapão daria no quarto da proprietária, no térreo, quem sabe como funcionam as plantas destes pardieiros…”

“O senhor estava dizendo…”, Júlio outra vez, discretamente, como insistindo em reaver o que já lhe ia escapando. “Tinha esperanças de que…”

“Esperanças? Eu?”

“Digo… De que os livros…”

“Ah, certo. Seja. Tinha esperanças de que os tão talentosos criadores, os artistas do idioma, os poetas, os gênios pudessem mostrar-me algo além da vida, mas tudo foi, aos poucos, consolidando em minha mente uma grande fraude. Tudo vem sendo feito há muito tempo, já há mais de trezentos anos, oito meses e duas semanas. Por que continuam escrevendo, não sei. Há sempre alguém sonhando com a carreira artística, mudando-se para capitais culturais ou vivendo em meio à efervescência dos movimentos, vaidades e ambições só comparáveis às carreiras militar, religiosa, esportiva… E outras mais que se digam. Aos que ainda acreditam na arte, homens como Modigliani ou Van Gogh são o fim da inocência.”

Júlio estranhou que ele distorcesse tão facilmente aquilo que procurava ver.

“Há os que não se arruinaram. E falando em pistas, o senhor parece ter quase tudo da ucraniana”, Júlio entrando em seu brinquedo de adjetivos pátrios.

“Ora, o senhor já leu essa Clarice na escola. Agora me diga, senhor Júlio: como podia uma mulher tão inteligente ter medo de baratas?”

Júlio revia as prateleiras, de onde estava. Agitou o gelo no copo. Quase sorriu.

“Era uma mulher.”

Coelho mostrou-se divertido com a resposta.

“Claro, claro, veja. A chave do mistério. As baratas do mundo a desafiavam, de certa forma a condenaram à literatura. E nós, homens, nos beneficiamos disso.”

“Espera aí, espera aí, do que é que vocês estão falando afinal?”, Bruno ligeiramente ressentido. “Baratas do mundo, ucraniana… No fim, o que a gente quer mesmo, de verdade, é ter uma dessas datilógrafas na cama, cacete! Não é possível que vocês sejam muito diferentes de mim.”

“Não, não somos.”

“Bruno não faz ideia…”

“Mas eu o entendo, senhor Bruno. Tudo o que queremos saber, seu amigo e eu, por vias diretas ou indiretas, é o que estamos fazendo aqui, neste mundo e neste tempo, o que parece não incomodá-lo, por sorte. As mulheres têm parte nisso. Os livros também. É uma longa história, acredite.”

Longa história, sem dúvida, Júlio ruminava em silêncio. Quase uma longa noite. Coelho bebia mais avidamente, por vezes esvaziando seu pequeno copo em dois tragos. Demorava a embriagar-se. A solidão, da qual se orgulhava e sugeria aos olhos alheios impressões de independência e liberdade, parecia reprimi-lo a ponto de fazê-lo falar muito em presença de alguém, mais especificamente o que pretendia dizer, trazendo, à tona dos uísques, seus mal dissimulados conflitos, que eram o fundo de sua aparente felicidade. A certa altura, separou um volume encadernado, dirigindo-se obliquamente a Júlio.

“Ouça, ouça estes versos: (abriu o livro) Nunca ouviste passar o vento. O vento só fala do vento. O que lhe ouviste foi mentira. E a mentira está em ti. (Folheou o livro.) E estes: O rio da minha aldeia não faz pensar em nada… (Fechou o livro.) Ora, é tão covarde e simplório crer em Deus quanto afirmar que não há mistério nenhum. Nesse caso, por que esse sujeito escrevia e reescrevia tudo isso? Eu sei. O mundo está cheio de tipos assim, dizendo que nada vale a pena. Esses mesmos, os que repetem com ceticismo que a vida é uma ilusão, lutam por suas ilusões. É o mesmo que não dizer nada.”

Júlio esquadrinhava com os olhos a estante, pensava. Redesenhava seus ângulos e divisões, o tédio sinalizava a retomada de uns seus velhos vícios mentais. Aquilo tudo já começava a aborrecê-lo. Por pouco, não perguntara: “E o senhor, que pensa? Tem alguma esperança?”. Mas não queria prolongar o assunto.

“Veja este outro agora, ouça isto…”

Atento a Bruno: estava ali apenas por preguiça, estranhando ainda o ambiente. Era patético vê-lo cercado de estantes de livros, escorregando as costas no sofá, quase sem se dar conta disso. Talvez também esperasse algo da conversa, não da mesma maneira que Júlio. Júlio, quase sempre, nada esperava de alguém.

O que eu buscava era bastante simples: a razão da existência. Não, não acho que me perca tanto. Da mesma forma como, em Física, é preciso expor o enunciado antes da formulação da pergunta, sinto que é necessário discorrer sobre tais e tais temas, repetir Brunos e Coelhos, para que finalmente se alcance a questão, já acrescida dos detalhes que a compõem. Razão da existência? Não, não é bem isso. Mas algo parecido, menos exato, mais absurdo ou… Desvios, outra vez. Ainda é cedo. E talvez nunca seja tarde. Mas é preciso, mesmo que o meu diário, como muitas vezes penso, seja um resumo do que não pude encontrar. Sim, não tenho nenhum problema quanto a admitir isto: tudo que escrevi são registros do que eu não pude encontrar.

 Os últimos dias de agosto

20. Um segredo, entre outros– sequência

18. Agenda de não-planos – anterior

Guia de leitura

Imagem: Michael Loew. Composição.

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