Office in a Small City por Edward Hopper

Paradoxo do registro e do esquecimento

Somos todos muito exagerados, não vê? Não temos essa importância toda.

É tudo muito rápido.

“Você vai escrever sobre nós?”

Homens e mulheres, meus colegas de escritório. Todos à minha frente, mais ou menos juntos. Mais ou menos quietos. Mais ou menos tristes.

“O quê? Escrever sobre vocês? Por que faria isso?”

“Pela eternidade.”

“Para nos eternizar.”

“Que bobos. Para que serve a eternidade? E daí, se formos todos esquecidos? Vivam as suas vidas, enquanto podem. Eu vou vivendo a minha, como posso.”

“Não fale assim”, pediu nosso supervisor. “Não fale assim, pense um pouco. Escreva algo sobre nós, deixe um sinal, um relevo. Uma mancha, que seja. Será mesmo que tudo isto aqui vai desaparecer? Que todos nós…?”

“Depois de tudo que fizemos?”, acrescentou o aprendiz, com menor tempo de casa.

“Faça isso por mim”, pede a mais elegante de minhas colegas, dando um passo à frente.

“E por quê? Por que eu faria isso por você? O que você ganha com isso?”

“Para que eu não morra.”

Fico olhando para ela. Por um tempo.

“Que bobagem. Para que não morra? Não se importe com isso. Eu também vou morrer. Não se importe de morrer.”

“Acha que não vale a pena escrever sobre mim? Não valeu a pena eu ter sido tão bela? Eu ter-me feito tão bela? Eu ter, ao menos, acreditado nisso?”

“Se valeu a pena? Talvez sim – enquanto valeu a pena, eu acho. Mas a sua beleza tem que passar. Porque todas as outras passaram.”

“E sobre mim?”, o mais velho entre nós, erguendo um dedo, como um aluno que pede licença. “Lembra do que eu lhe contei sobre tudo o que passei, lembra? Sobre todo o meu sofrimento? E então? Não vale uma linha da sua escrita?”

Movo a cabeça em negativa, com os olhos fechados, quase sorrindo, como se com isso lhe passasse a ideia de que aquilo seria inútil, de que não teria propósito algum escrever sobre os sofrimentos dele, ou sobre os sofrimentos de outros, quaisquer que fossem.

“A minha escrita é que não vale o seu sofrimento. A minha escrita não serve para nada, além de ser a minha escrita. Somos todos muito exagerados, não vê? Não temos essa importância toda. É tudo muito rápido.”

“Lembra do que eu passei e do que eu sofri? Vai deixar que tudo isso seja esquecido? Todo esse sofrimento não merece um fio de história? Acha que tudo isso deve passar também?”

“É claro. Sim. Deve passar.”

Um colega de minha idade:

“Somos como irmãos. Vivemos um mesmo tempo. Vamos apodrecer ao mesmo tempo. Canções e imagens, o nosso país, nossa mesma língua. Escreva sobre mim. Diga que eu lhe disse isso.”

Penso um pouco. Enquanto reflito, todo gesto parece suspenso. Tudo ao redor parece quedar paralisado.

“Não, não vou escrever sobre nenhum de vocês. Só sei contar coisas sobre mim. Sou limitado. Sou preguiçoso. Não me interesso por muito mais do que isso. Não espero que me compreendam. Não me importo se me compreendem.”

Um de meus desafetos toma a frente, indicador em minha direção.

“Você vai pagar por isso!”

Vejo que eles estão agora muito ocupados, em suas funções. Tenho que voltar aqui amanhã. E no dia seguinte. Cumprir também minhas funções. E no outro dia, depois do dia seguinte. E no outro dia ainda. Talvez para sempre, nos outros dias todos.

Acordei em agonia, taquicardíaco. Isso é que é pesadelo. Não parece, para quem espera imagens e sugestões mais tenebrosas. Mas é, sim, garanto que é. Um dos piores. É claro que melhorei as palavras, as falas, em função do registro. Mas, em essência, foi mais ou menos isso o que sucedeu. Bem aqui, sobre o tecido amarrotado de meu travesseiro. Um autêntico pesadelo. Imagine-se: voltar lá no dia seguinte e no outro também…

36. Fraudes por uma boa causa: a minha – sequência

34. Ácaros e outros micro-organismos – anterior

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Imagem: Amedeo Modigliani. Almaisa. 1917.

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Comentários

Uma resposta para “Paradoxo do registro e do esquecimento”

  1. Avatar de Ana m b D cancian

    Você me parece ser ótimo….breve eu o lerei com mais tempo. Bjos. Adorei!!!!!!

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