Office in a Small City por Edward Hopper

Qualquer coisa morna

Ela tinha os olhos claros, vivos e brilhantes.
Parecia inteligente, além do mais. E a beleza, como a inteligência, também assusta.

Pela manhã, ergueram uma barraca em frente à nossa. Um grandalhão de barba e cabelos negros, curtos. Um rapaz magro mas musculoso, loiro de cabelos escorridos, corpo rígido, bermuda desfiada. Uma garota clara, robusta e corada de sol. Cândido perguntou:

“E essa aí, será que transa?”

“Se ela transa?”, careteou Clemente, como se bem a conhecesse. “Deus meu! Transa quando está de mau humor. Senão, faz o diabo, faz de tudo!”

Com o pouco, quase nada, que tínhamos que fazer pela manhã, ficava difícil disfarçar. Nenhum de nós se atrevia a cumprimentá-los, e era inevitável que nos olhássemos uns aos outros, de relance. A garota pôs água a ferver, os outros dois iam abrindo mochilas e tiravam, de dentro delas, roupas, objetos pessoais e outras tralhas não identificáveis.

“Deve ser chá de beladona”, cochichou Clemente, de certa forma conclusivo. “Aquelas coisas…”

“Se o mago estivesse aqui, tenho certeza de que ele nos orientaria e nos ensinaria algo sobre esse chá”, lembrou Cândido com estranha segurança.

Fiquei pensando que o tal líquido poderia causar problemas cardíacos, obstruções no aparelho respiratório, perda de neurônios, disfunções de memória e até câncer, mas logo espantei, com um decisivo piscar de olhos, tais nuvens escurecidas de minha mente, com medo de estar caindo na conversa deles. De verdade mesmo, eu queria era que o rabo daquele mago pegasse fogo.

Era cedo ainda, de uma manhã sem sol, úmida de orvalho e brisas. Nesse clima, qualquer coisa morna, especialmente um chá, provocava-me desejos avulsos e água na boca. Como se lesse os meus pensamentos, a garota sorriu para nós/mim.

“Quer um chazinho?”

Meus amigos recusaram de pronto, agradecendo com sorrisos e gestos que mais lembravam rápidos acenos de despedida, cotovelos presos ao corpo, só as mãos se agitando à frente do peito, num movimento rápido de desenho animado, como limpadores de para-brisa em modo acelerado. Mas eu perdi o medo e acerquei-me dela, ou melhor, de seu chá.

“Chá do quê?”

“Experimenta.”

Estendeu-me uma caneca de latão fosco, de bordas um pouco mais grossas que o mais do utensílio, talvez resultantes de umas marteladinhas discretas, e eu sorvi pequenos goles de uma deliciosa infusão que me pareceu a um tempo estimulante, maternal e conhecida. Era chá-mate.

“Gostou?”

“Muito, obrigado.”

Eu estava comovido. O chá ainda quente, mesclado ao ar puro e rarefeito que me penetrava as narinas, relaxou-me os nervos, despertando-me para não sei que sentimentos estranhos e alentadores. Sentia-me contido em mim mesmo, vivo. Como se cada gota desse líquido me percorresse as fibras até a espinha dorsal da alma, sem perdão do lirismo, que qualquer exagero cabe em uma sensação assim, qualquer recaída de ingenuidade ou de pureza, embora eu jamais alcançando descrevê-la de fato.

“Não paga nada pra sentar, fica aí um pouco.”

“Ah… Tá”, encantado, agora sentado.

“Como anda o festival?”

“O festival?” Eu nem pensava no festival. O que era isso de festival mesmo? “Mais ou menos”, disse eu, disfarçando tanto quanto podia, com dois gestos de mão. E o tufinho traseiro de meus cabelos, que eu sentia ereto e à mercê do vento, só agora eu me lembrava dele. Em outras circunstâncias, eu costumava molhar a ponta dos dedos para vencê-lo, mas num momento como aquele isso não seria possível.

“Ah, o Romão”, disse ela apresentando-me o barbudo. Ele apertou-me a mão delicadamente, o que me surpreendeu. Parecia menos simpático, mas também acessível. “Meu amigo do peito. O outro é o meu primo.”

“E aqueles são o Cândido e o Clemente”, eu já ia apontando com orgulho.

“Quem?”

Eles tinham sumido de vista. Fiquei feito um trouxa, com a mão no ar, olhando em volta.

“Ahn… Meus amigos. Cândido e Clemente.”

“Ah. Sei.”

“Devem ter ido dar uma volta.”

“Pronto o chá, prima?”

O rapaz aproximou-se, sem camisa, ela arranjou-lhe uma caneca, serviu-lhe um chá e recebeu um beijo rápido na boca. Ele agia como se eu simplesmente não estivesse ali. Voltou aos fundos da barraca, onde passou a remexer alguma coisa. Estranhei que ele não me cumprimentasse. Eu usava camisas estampadas, de mangas arregaçadas no antebraço, e queria apertar a mão de todo mundo.

“Esse meu primo…”, sorriu a garota, com um movimento mínimo de cabeça, como a desculpar-se. Mas desculpar-se do quê? Do beijo avulso – que me fez engolir em seco, embora eu não tivesse nada com aquilo – ou de ele ter sido grosseiro comigo? Eu não entendia nada. Só continuava fingindo que não queria olhar para ela, voltando-me para a caneca, para o restinho de chá que eu não havia tomado ainda.

“Muito bom…”, eu gemia.

Ela me observava com uns olhos claros, vivos e brilhantes. Cabelos castanhos, verticais, mas desfazendo-se em linhas sinuosas e pequenos cachos, como se, a partir de certo ponto, estivessem embaraçados ou despenteados. Rosto de nariz estreito, sorriso fácil, boca tão harmoniosa que, a princípio e desproporcionalmente, me impressionou. Parecia inteligente, além do mais. E a beleza, como a inteligência, também assusta.

“Seu nome, qual é?”

“Verena.”

40. Uau! – sequência

38. Os jovens peregrinos e o profeta – anterior

Guia de leitura | Sobre o livro

Imagem: Kay Wyne. Momentos calmos.

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