Office in a Small City por Edward Hopper

Treze pode continuar

Depois do que Bruno lhe dissera, ou tentara lhe dizer, ele a examinava com redobrada curiosidade, como tendo à sua frente a encarnação de alguma dissimulada feiticeira ou de uma misteriosa criatura mítica, influenciado por uns adereços, colares e pulseiras étnicas.

Ruas obscuras, postes de lâmpadas anêmicas… – não terá sido um artifício romântico demais ter-se enveredado por aquelas antigas vielas justamente quando sentia agitá-lo uma agradável ansiedade, tal como certas pequenas dores promovem um arrepio de prazer? Ou talvez visse assim o que lhe acontecia encontrar a caminho do local combinado, por conta de qualquer alteração nos sentidos, a que muitas vezes se chama, por falta de cuidado, sensibilidade. Uma curva suave, além da perspectiva estreita, como a impedir que por ali circulassem veículos ou, pelo menos, forçando a que transitassem com dificuldade. Mas ali estava o bar, estendendo-se em mesas por um longo trecho da calçada, assim compensando os postes de lâmpadas defeituosas ou queimadas, e iluminando parcialmente outra curva que, mais à frente, acabaria por tornar-se, por um lado, um beco; por outro, o escuro jardim de uma grande e velha casa; por outro ainda, uma saída do inesperado recanto, tão disfarçado entre a assimetria daquelas travessas que se poderia dizer instalado ali de propósito para não ser encontrado em meio à metrópole conhecida. Júlio caminhava mais devagar, depois de haver esquadrinhado, num relance, todos os que ali se encontravam, à sua frente e mais ao fundo, tomando o cuidado de não encarar por muito tempo uma ou outra pessoa que também o estivesse observando em troca, já certo de que não a encontraria e pronto a superar os pequenos abalos íntimos, característicos dessas ocasiões, consequentes do que ainda há pouco Bruno o houvera prevenido. Deixou cair o que fora até então um cigarro, após uma última tragada, pisando-o em seguida e demorando-se desnecessariamente nesse movimento, que acompanhava de cabeça baixa, ainda sem saber no que pensar. Mais uma vez, ergueu os olhos ao que se via ali, o discreto movimento do bar e o rodízio lento dos que chegavam ou saíam. Treze fazia parte de um grupo indistinto quando ele a identificou. Ela o viu quase ao mesmo tempo, por pouco não lhe sorrindo em seguida, em lugar disso acenando rapidamente, só o bastante para que ele a percebesse. Apanhou a bolsa e levantou-se de onde estava. Moveu-se entre os de sua mesa, aproximou-se de Júlio sem que nenhum dos outros sequer a seguisse com os olhos ou se interessasse em saber quem era o estranho.

“Oi”, ela de uma maneira infantil e quase afetada.

“Olá, Treze”, Júlio intencionalmente mencionando seu nome, vendo em seus olhos que era de fato como se chamava. “Um lugar muito original, este. Quero dizer, bem à parte do que se conhece.”

“Não era aqui que eu pretendia ficar”, Treze fixando-o com um sorriso de lábios cerrados.

Depois do que Bruno lhe dissera, ou tentara lhe dizer, ele a examinava com redobrada curiosidade, como tendo à sua frente a encarnação de alguma dissimulada feiticeira ou de uma misteriosa criatura mítica, influenciado por uns adereços, colares e pulseiras étnicas, chegando a pensar numa esfinge como comparação, mas não, não exageremos.

“Não me importo”, Júlio quase sem pensar no que dizia, no fundo dando a essas palavras o sentido do que lhe ocorria até então, como se pensasse em voz alta.

“Se não se importa… podemos ir.”

Júlio não se refizera da surpresa ainda em curso, o fato tão incrível quanto verdadeiro que era ter encontrado Treze, tê-la à sua frente e não estar sonhando, pensando por um momento que, aos encontros, sempre valia a pena arriscar-se, enquanto detinha os olhos em sua boca e em seu queixo, de onde partiam as linhas a desenhar-lhe o rosto, aquele mesmo sorriso tornando tudo mais simples e menos intencional, embora já o intrigasse que ela, mesmo mostrando dentes muito bonitos, curiosamente preferisse sorrir daquela maneira, dilatando a boca numa reta onde se esperaria uma curva, contrariando a tendência dos retratos. Vendo-a nessa noite, ao relento, Júlio se convenceu de que ela teria sua mesma idade, que apenas se fazia passar por alguma adolescente, há vaidades desse tipo, mas claro que não ousaria perguntar-lhe coisa alguma.

“Aonde quer ir?”

“Onde se possa conversar sem ninguém por perto.”

“Esse lugar existe?”

“Não”, ela rindo dessa vez. “Quero dizer, sem ninguém que conheça a gente.”

Vontade de pousar a mão sobre o ombro dela, outro estranho impulso.

“Primeiro, nós temos que sair daqui”, de leve passando os dedos duas vezes sobre o peito dele, corrigindo-lhe o colarinho ou fingindo espantar algum pequeno inseto, com isso acariciando-o de maneira sutil.

Encorajado por seu gesto, Júlio estendeu a mão ao rosto dela, afastando timidamente a fina mecha caída ao longo da face. Quase podia adivinhar que os de sua mesa os estivessem vigiando, mas decidiu não se virar para ver.

“Aonde então?”

“Vamos por ali”, Treze avançando uns passos para que a acompanhasse, mas evitando que se dessem as mãos.

Caminharam juntos pelas ruas mais próximas, tão obscuras e calmas como pareciam ser as de toda aquela parte do bairro, tendo antes passado em frente ao velho casarão de jardim noturno, pelo beco que nada prometia, por fim tomando a rua que servia como saída ao recorte mágico, incrustado entre a trama do infinito mapa urbano. De sua parte, ainda que compartilhando o movimento de outros como eles e de alguns poucos veículos que surgiam e desapareciam entre as travessas, Júlio tinha a impressão de que eram, Treze e ele, as únicas pessoas àquela hora da noite. Como esperando por isso e faltando-lhes que apenas simplesmente o fizessem, Júlio passou o braço por sua cintura, como também ela se encostou a ele, desviando-se de sua própria bolsa, a tiracolo.

Estranhos ou comuns, singulares ou conhecidos impulsos, quando olhamos a noite, para além de nossas nuvens, perpassa um sentimento de vastidão e silêncio. Mas não que haja alguma harmonia nisso. Apenas uma opressiva indiferença, de um universo guiado por múltiplas eventualidades, inteiramente imune a tudo o que cultivamos com a razão, pois enquanto nos autodenominamos inteligentes e sensatos, merecedores de todo esse admirável equilíbrio de forças, o que apresentamos, na maior parte do tempo, são os mais desconcertantes sintomas de repetitiva insanidade.

Os últimos dias de agosto

25. Treze descuida-se de um segredo – sequência

23. Treze, uma abelha assassina? – anterior

Guia de leitura

Imagem: Imagem: Karin Jurick. Jantar ao ar livre.

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