Office in a Small City por Edward Hopper

Uau!

Quando ouvi a palavra, o código, as sílabas mágicas que me abriam seu nome, foi como se ela toda florescesse.
Quando só há imagens é porque não encontramos ainda as palavras.

O chá-mate escurecido, nunca o bastante que mesmo a manhã de nuvens não pudesse tornar claro, tinha um efeito extraordinário sobre meus sentidos. Eu fechava os olhos como quando se está embriagado ou como quando se sente que essa embriaguez está apenas começando. Porém, de uma maneira suave, não de todo lúcida, entre agradável e salubre, tanto que quando essa garota me revelou seu nome, alguma coisa estalou surdamente por trás de uns arquivos mentais, despertando meus precários conhecimentos de latim, e era como se a palavra, em princípio murmurante e amena, me ocorresse luminosa, alheia aos meus dias, mas infinitamente em meu íntimo esquecido, aliás, que eu não podia esquecer: o latim, a literatura, o pensamento, como tantas outras ferramentas para se vasculhar o passado e tentar compreender o mundo, eram parte essencial de minha vidinha secreta, minha personalidade submersa e inacessível aos cidadãos que por acaso me conhecessem, como fosse isso uma grande coisa. Quando ouvi a palavra, o código, as sílabas mágicas que me abriam seu nome e num instante faziam dessa figura uma pessoa, foi como se ela toda florescesse de uma vez, ainda que eu não pudesse evitar esse estranhamento, pois, quando só há imagens, é porque não encontramos ainda as palavras.

“Como?”

“Verena. Quer dizer verdadeira. Do latim. Veras, verenas.”

“Não é veras, veritas?”, lembrei.

“É… É isso.”

Verena descontraiu-me com sua espontaneidade. Ela usava uma saia curta, de bainha desfiada, blusa branca sobre a qual se destacava um jogo de colares de contas junto ao decote decorado com relevos. Brincos, pulseiras. Sapatilhas amarradas no tornozelo. E, quase como num sonho: um bracelete.

“E você, gosta dessas suas roupas?”, perguntou-me.

“Não tenho certeza”, respondi, e essa resposta muito me surpreendeu.

“E como está a cidade?”

“Como um formigueiro”, disse eu contente, orgulhoso de minha reação rápida, como se tal resposta fosse uma tirada de grande inspiração.

“Você também tem essa mania de comparar as coisas com bichos, natureza e tal?”, disse ela, esfriando um pouco minha alegria.

“Às vezes…”

Ela sorriu. Até então, eu não a havia flagrado uma só vez reparando nos fios de meu remoinho, que eu não podia imaginar em que estado de ereção se encontravam a essa altura, embora o vento os denunciasse, com certeza.

“Olha, eu não queria ser uma formiga. E você?”

“Não sei. Mas aposto que a minha mãe iria sofrer muito se eu tivesse nascido uma formiga.”

Pior, impossível. Ela não se incomodava com minhas piadinhas. Perguntava sobre mim, eu desatava a falar do escritório, das férias, da viagem, do festival… Mas Verena quase nada dizia dela. Isso me cativou muito, pois sempre gostei de gente que tem pouco a dizer sobre si mesma. Eu, por minha vez, confessei-me poeta.

“Não diga.”

“Se quiser, tenho uns lá, comigo.”

Isso mesmo. Pior, impossível. Busquei meus tais poemas na mala e os submeti à luz de seus olhos, envergonhado. Seu silêncio torturou-me por intermináveis minutos.

“Joga fora este”, disse por fim.

“Qual?”

Triste que era um de meus prediletos, principalmente a estrofe final.

Desde o pó das pirâmides,
uma confusa distribuição de brisas
visitando outros fantasmas:
a mais doce criatura elas afagam,
tornando então a dispersá-la em pó nas sepulturas.

“Por quê?”

“Porque todo mundo sabe disso.”

(Verena observou que não sopram ventos dentro das sepulturas, mas quem consegue convencer um poeta de tais detalhes incomodamente realistas?) “E os outros?”

Ela releu alguns em voz alta.

… não te quero a companheira de meu medo,
o ombro a que me abraço no fundo das horas…

… as coisas vivas, as coisas belas são minha religião:
não almejo ser eterno, que nem as estrelas são…
… enfeitiçava a praça a primavera de teus passos:
ah, custou tanto te encontrar tão pouco….
… estrelas ancestrais de que disponho
e única canção de amanhecer…
… em teu colo, deitaram-se os aromas,
adormeceram todas as palavras…

“Não são maus. Não que sejam maus, entende? Mas já fizeram muito isso. Um deles até rima.”

“Tenho também um soneto…”

“Um soneto? Sorte que é só um. Livre-se dele.”

Eu hesitava, quase tremia, mas no fundo estava decidido a mostrar o que fosse preciso para impressioná-la, embora não compreendesse as razões que me conduziam àquilo. Se ela não gostava de meus poemas, então por que eu não a descartava com um gesto, desejando que se fodesse de uma vez, como a uma boa piranha? O que me impedia de levantar-me dali, virar-lhe as costas e mandá-la a todos os diabos? Mas não. Eu queria muito que ela conhecesse minha obra magnífica.

“Acho que… você não viu este”, eu passando-lhe às mãos outro papel datilografado, com vincos já gastos pelas sucessivas dobras, rasuras de borracha, hoje mais aparentes conforme envelheciam, o papel tanto quanto as rasuras, sem falar no poema ele próprio, tudo porque eu já não aguentava mais datilografar outra e mais uma, mais uma e outra vez os mesmos versos.

“Qual? Ah, este?”

… beija-me com a boca de vinho,
que a noite já nos afasta de outra eternidade…

“Uau!”, disse ela.

Finalmente uma reação. Por um instante, achei mesmo que o poema a havia impressionado. Mas senti aquele seu uau com algo de mofa, quase uma carinhosa entonação de piedade. Ou eu não queria crer que ela pudesse trair sua própria espontaneidade e… Bem, em qualquer hipótese, o mais aconselhável era ficar com o que melhor me parecesse, para o bem de meu pobre ego.

Mas houve outras fases de minha poesia. Adolescente, apaixonei-me em segredo pela garota que trabalhava na feira livre, com seus pais, na barraca de verduras, legumes e frutas. Quando, de longe, avistava o vermelho vivo dos tomates expostos logo à frente, meu coração dava sinais de gostosa ansiedade, só porque iria vê-la mais uma vez! Essa garota e a cor intensa dos tomates, meu amor inconfessável e rico em fibras enchiam-me de fascínio e esperança. Sonhava casar-me com ela, possuirmos nossa própria barraca, como se assim eu ganhasse um dote por conquistá-la. Mas ela se mostrava, de maneira muito natural e tranquila, tragicamente desinteressada em mim. Então fiz estes versos (que ela nunca leu):

Não me tortures assim,
não me mates.
Diz que são meus teu coração
e teus tomates.

Imagine-se mostrar isso a alguém!

Verena nunca havia estudado literatura, por isso sua opinião era confiável e importante para mim. Passei o resto da manhã relendo os tais poemas e pensando nela.

À tarde, Cândido e Clemente foram nos convidar para um passeio.

“Vamos dar umas voltas pelas redondezas?”

Ela disse que não, obrigada. Eu, que já não aguentava mais andar pelas redondezas, também decidi ficar.

À noite, vimos que Verena chegava do concerto abraçada ao primo, rindo do que ele lhe cochichava, meio bêbado. Entraram na barraca, ouvimos uns gritinhos dela entre brincadeiras. Sorrisos. Gemidos.

41. Truque bem-educado – sequência

39. Qualquer coisa morna – anterior

Guia de leitura | Sobre o livro

Imagem: Jean-Léon Gérôme. Tarde de verão num lago. 1895.

por

Publicado em

Comentários

2 respostas para “Uau!”

  1. Avatar de Perce Polegatto
    Perce Polegatto

    Lídio, muito obrigado, já corrigi lá. Fiquei honrado em saber que veio conhecer meus textos, espero que esteja gostando. Em breve sairá a segunda edição desse romance, “A seta de Verena”, publicado aqui em capítulos. Estou muito feliz com a nova edição. Grande abraço.

  2. Avatar de Lídio Selenense

    Perce: o linque que deveria ir para Truque Bem Educado na realidade vai para Treze Descuida-se de Um Segredo…

    Mas a história promete. Já achei o Truque Bem Educado.

Comentar