Office in a Small City por Edward Hopper

Mais uns dias, por que não?

Uma intensa sensação de alívio supondo-se que nossa vida tenha se cumprido.
Porque nada precisa de nós. Nem as maiores instituições do mundo, nem os grilos mais próximos.

Não fui ao concerto nessa noite. Tentei escrever à luz de uma lanterna, mas não pude concretizar um verso sequer. Suspirei desanimado, cansado mesmo, não só desse dia, não só dos dias que se seguiram até aí, não só da viagem, mas um cansaço especial, nada físico, como se supõe – esse sim, do pior tipo.

Apaguei a lanterna, fiquei olhando as estrelas, sem pensar em nada, como normalmente se dá quando me ponho a contemplá-las, e também ouvindo os ecos do concerto, encobertos apenas pela insistência de uns grilos mais próximos. Um cansaço de entregarem-se os olhos às estrelas todas. E uma arrepiante sensação de alívio, de brandura, de leveza, o que provavelmente se alcance sentir supondo que nossa vida tenha se cumprido, enquanto tudo o mais, além de nós, ainda se cumpre. E se esvanece. Porque nada precisa de nós. Nem as maiores instituições do mundo, nem os grilos mais próximos.

Meus colegas voltaram cedo. Exaustos das caminhadas diurnas, adormeceram rapidamente. Eu não conseguia dormir. Nem esquecer Verena. Nem deixar de pensar em minha vida: tão sem graça, tão sem estrelas, a única vida que afinal era a minha, mesmo sendo tão pouco ou nada significativa. Senti vontade de chorar.

Quando avistei Verena e Romão, a distância, ocultei-me por trás da abertura de minha barraca e fiquei ali, espiando-os sem que me vissem, olhos acostumados à escuridão. Vinham de mãos dadas, conversando baixo. Entraram na barraca, em silêncio, fecharam o zíper. Pensei ter ouvido o estalar de um beijo. Depois, mais nada.

Pela manhã, perguntei de seu primo.

“Conheceu uma garota ontem à noite. Foi embora hoje cedo, de carona.”

“E você, até quando fica?”

“Não sei. Até o fim da semana.”

Cândido e Clemente queriam partir no dia seguinte. Pareciam fartos do lugar – e com razão. Contei a Verena que dependia deles, embora não pretendesse voltar ainda para a cidade, e ela, magicamente, convidou-me a ficar. À noite, eu lhes comuniquei a decisão de prolongar minha estada, o que eles mais ou menos estranharam. Falei que precisava de um pouco mais de ar puro, um pouco mais de meditação, de solidão, de distância das atribulações da cidade, que eu, poeticamente, claro, chamava mundo dos homens. Ainda assim, não entendiam que eu preferisse ficar. Mas não se opuseram. Flores de pessoas.

43. Por que deixar rastros? – sequência

41. Truque bem-educado – anterior

Guia de leitura | Sobre o livro

Imagem: Jessica Siemens. Arquitetura da devoção.

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